Uma das partes mais românticas do jornalismo desportivo - na ótica daquele que vos escreve -, é a procura incessante por desculpas e «lógicas» que nos permitam justificar uma ida ao passado. Nada melhor para isso que um confronto entre duas equipas com um histórico tão próprio e peculiar como Sporting e Manchester City.

Pensar no confronto destas duas formações é lembrar automaticamente a eliminatória de 2011/12, na competição vizinha. Depois de uma vitória com contornos Xandónicos em Lisboa, uma aula de saber sofrer em Manchester. No fim? Vitória dos leões.

Quem sabe se esta terça-feira não estaremos perante o «calcanhar de Diomande», ou qualquer outra forma artística de enviar o esférico para o fundo das redes inglesas. E que Ederson tenha a mesma pontaria de Joe Hart (caso também decida subir até à área leonina, o que não seria uma surpresa conhecendo o brasileiro).

Posto isto, e numa altura onde este teste, além de contar para a matemática europeia dos leões, funciona também como diagnóstico dos olhares ingleses a Rúben Amorim - injusto, diga-se -, nada melhor do que falar com um dos intervenientes dessa heroica eliminatória. Eis Daniel Carriço.

«Não fomos bafejados pela sorte»

zerozero (zz): Vamos puxar a fita atrás. Que memórias vêm à cabeça se lhe pedir que se lembre da caminhada europeia em 2011/12 e daquela eliminatória com o Manchester City?

Daniel Carriço (DC): «Lembro-me muito bem dessa eliminatória. Tirando a minha estreia na Champions League com o Sporting, foi um dos meus primeiros sucessos a nível europeu. Foi muito marcante essa eliminatória com o City. Não só por ter sido a eliminatória que nos permitiu chegar a uma fase depois adiantada da competição, mas também por ser um dos grandes colossos europeus. Ainda não tinha chegado o Guardiola, mas já tinham uma equipa muito forte e inclusive venceram a Premier League nesse ano

zz: Dorme-se bem antes de uma noite europeia dessas?

DC: «Depende muito de quem é o adversário [risos]. Nesse caso era o City. Sabíamos o valor deles e preparámos muito bem a eliminatória. Foi uma das chaves, foi ter preparado bem a eliminatória.»

zz: Na altura já foi com o Ricardo Sá Pinto, certo?

DC: «Preparou muito bem tanto o jogo em casa como fora. Tínhamos adversários com grande nome. Recordo-me de Agüero, Dzeko, Balotelli, David Silva... Muitos nomes sonantes da Premier League e do futebol europeu. Só conseguimos passar essa eliminatória porque jogámos em equipa. Fizemos ao detalhe aquilo que tínhamos preparado e acabou por correr na perfeição.»

Duelo intenso com Kun Agüero @Getty Images

zz: Dia do sorteio... Manchester City. Uma equipa que tinha acabado de derrotar o FC Porto - equipa que dominava internamente - por 4-0 (6-1 no agregado). Como se reage?

DC: «Não fomos bafejados pela sorte [risos]. Foi um sorteio azarado, mas o Sporting também é uma equipa muito grande. Se formos ver os confrontos entre equipas portuguesas com as inglesas... Creio que temos tido algum sucesso ao longo dos anos. As equipas inglesas não gostavam muito do típico futebol português, espanhol ou italiano. Somos equipas mais certinhas, mais táticas.»

«Agora, com a nova era de Guardiola, Arteta, entre outros, já têm outro estilo de jogo, mas eles eram uma equipa de muita transição, de box-to-box, mesmo com o Mancini como treinador. Essa eliminatória foi um grande momento. Foi o primeiro passo nessas grandes caminhadas europeias da minha carreira, apesar de ter ficado a faltar essa final tão desejada por parte dos adeptos e do nosso plantel.»

zz: Como é a semana de preparação antes de receber um gigante do futebol europeu?

DC: «É diferente. Existe uma expectativa muito grande e alguma ansiedade. São jogos onde todos os jogadores querem jogar. Todos os jogadores do plantel estão ansiosos para que o seu nome entre no onze. Toda a Europa está de olho em ti. Todos temos essa ambição de jogar contra os melhores jogadores. Desde criança que sonhamos em jogar nesses palcos, seja na Champions League, seja na Europa League. Defrontar os melhores jogadores, chegar a esse nível... essa era a minha ambição com 23 anos.»

qO David Silva era dos melhores daquela posição, tanto na história do futebol inglês como no europeu. Esses jogadores têm de se sentir incomodados.
Daniel Carriço

zz: Totalista nas duas mãos com 23 aninhos, perante aqueles craques todos... missão difícil?

DC: «Foi uma tarefa muito coletiva. Se te focas só no individual com esse tipo de jogadores... fica bastante complicado. Tem de haver muitas entreajudas, muitas coberturas. Taticamente tínhamos de fazer um jogo muito completo. Recordo-me que nessa eliminatória joguei a médio defensivo com o Schaars, que era um jogador que entendia muito bem o jogo. Tivemos que nos complementar muito bem ali no meio-campo.»

«Creio que o Xandão e o Polga eram os centrais, e ali entre os quatro teve de existir muita comunicação porque esses jogadores têm muita mobilidade, e eles tinham muitas opções. Entrou o Dzeko e o Balotelli, jogadores com características diferentes de Agüero e David Silva. [David Silva] Um jogador.... dos melhores daquela posição, tanto na história do futebol inglês como na história do futebol europeu. Um jogador incrível a jogar entre linhas.»

Últimos Resultados

Sporting vs Manchester City
2 Jogos, 1V 0E 1D (DG: 1-5)

Últimos Resultados:
21/22: SCP 0-5 MCFC
21/22: SCP 0-0 MCFC
11/12: SCP 1-0 MCFC
11/12: SCP 3-2 MCFC
10: SCP 2-0 MCFC

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«Elevámos os nossos níveis de agressividade ao limite, porque esses jogadores têm de se sentir incomodados. Se eles jogam com tranquilidade e lhes dás tempo e espaço, são jogadores que decidem na perfeição. Eles tinham de sentir que a equipa contrária era agressiva, que não os deixava pensar e ter espaço. E nessa eliminatória fizemos exatamente isso. Cumprimos com o plano de jogo e acabou por dar resultado. Ganhámos em casa.»

«Estão contentes por quê? Em Inglaterra não têm hipóteses»

zz: Primeira mão da eliminatória. Tudo a zeros no regresso dos balneários. Livre para o Sporting. Matías Fernández para cobrar. Defesa incompleta de Joe Hart e... Xandão! Como se reage a isto?

DC: «Acho que se perguntasses a alguém no início do jogo quem seria o marcador e como seria o golo... ninguém apostaria que o Xandão ia fazer um golo de calcanhar [risos]. Recordo-me que estava ali no lance, nas imediações, há uma recarga e o Xandão fica de costas para a baliza. O mais normal é tentares rodar, ou tentares rematar de outra forma, mas aquilo saiu-lhe na altura e saiu muito bem. Fez um golo que fica na história: o calcanhar de Xandão.»

«Recordo-me que no final desse jogo estávamos contentes, estávamos felizes por vencer o jogo. Sabíamos que ainda havia a segunda mão, mas estávamos felizes. O Agüero chegou ao pé de nós e disse: «Estão contentes por quê? Ainda vão a Inglaterra e lá não têm hipóteses». Não respondemos porque sabíamos que era a realidade, que ia ser muito difícil. Felizmente, as coisas acabaram por lhes correr mal.»

zz: Chegam ao intervalo da segunda mão a vencer a eliminatória por 0-3!

DC: «Exatamente. Logo na primeira parte entrámos forte. Surpreendemos o City. Eles não esperavam que conseguíssemos fazer golos em casa deles. Esses dois golos foram o que, na verdade, nos permitiu estar com outro conforto, porque sabíamos que eles depois na segunda parte iam colocar a carne toda no assador. Recordo-me que nos últimos minutos faltavam as forças, o cansaço era muito. Acabámos por sofrer até ao final para passar a eliminatória.»

zz: O City empata a eliminatória na segunda parte, apesar da vossa vantagem pelos golos fora, e já perto do final acontece aquele mítico lance do Joe Hart na vossa área. Como foi esse momento?

DC: «Na segunda parte a nossa capacidade física estava limitada, porque foi um jogo praticamente inteiro sem bola. Eles com muita bola, a carregar, a carregar, e acabámos os últimos minutos a sofrer imenso. Recordo-me bem desse lance com o Joe Hart. Estava perto da jogada, nem sei se fui um dos responsáveis, mas estava mesmo muito desgastado fisicamente.»

Joe Hart cabeceia o esférico @Getty Images

«Por norma, quando o guarda-redes contrário sobe, tu ficas em desvantagem numérica na área, ou em igualdade, e as coisas igualam-se ali um bocadinho. O guarda-redes é sempre um elemento que pode desequilibrar, e foi o que aconteceu. Felizmente para nós e para todos os adeptos Sportinguistas acabou por não conseguir fazer o golo.»

zz: Está a tentar organizar a defesa e a garantir que os adversários estivessem marcados e, de repente, vê o Joe Hart a ir em direção à vossa área. O que se pensa nesse momento?

DC: «Pensas, «Olha, mais um.» [risos]. Tínhamos de aguentar até ao fim, e estava a acabar. Olhava para o ecrã gigante para ver os minutos e pareciam não passar. E vês o Joe Hart a vir para a frente e tens de defender... Não só o Joe Hart, mas todos os outros elementos com um jogo aéreo fortíssimo como o Dzeko, o próprio Balotelli, os centrais, Kolo Touré e Savic, ainda havia o Yaya Touré.»

Esférico passa caprichosamente ao lado do poste @Getty Images

«Foi difícil. Defendemos o jogo todo, o desgaste era muito. Os níveis de concentração no final do jogo também já não eram os mesmos, devido ao desgaste físico e mental. Para bem do Sporting e de todos nós, eles acabaram por não conseguir fazer o golo.»

zz: Apito final. Como foi a reação dos jogadores do Manchester City?

DC: «Estavam incrédulos. Recordo-me durante o jogo haver discussões entre o Kolarov e o Mancini. O Mancini a dar indicações para dentro do campo e o Kolarov quase a mandá-lo passear. Estavam muito ansiosos e nervosos. O City tinha a obrigação, com o plantel que tinha naquele ano e com todo o orçamento que possuíam, de vencer a competição.»

«Por norma, não nos podemos equiparar a essas equipas, esses colossos, porque são equipas realmente com outro tipo de orçamentos. Não que não se possa fazer história, porque já aconteceu em casos anteriores e foi o que fizemos nesse ano. Conseguimos fazer história, mas a nossa ambição era chegar à final.»

zz: Aquele golo do Llorente aos 88'...

DC: «O Llorente que acabou depois por ser meu companheiro de equipa no Sevilla. Somos amigos e eu adorei também partilhar o balneário com ele, mas esse dia foi muito triste para nós. Depois de todo o trajeto, após estarmos ali tão próximos de atingir uma final... sofrer no último minuto foi muito doloroso.»

qO Viktor Gyokeres é um Wolfswinkel com update, com atualizações [risos]
Daniel Carriço

zz: Uma campanha «heroica» tendo em conta o momento do clube. Como foi a receção em Portugal depois do jogo em Manchester?

DC: «Uma tremenda felicidade. Recordo-me de chegarmos a Lisboa e os adeptos estarem à nossa espera para a receção. Foi um dos primeiros momentos, a nível europeu, onde senti uma felicidade enorme.»

«O Rúben Amorim tem uma identidade própria»

zz: Agora dando um salto até à atualidade. Consegues fazer uma comparação com o momento atual? Se é verdade que o City está mais forte, não menos verdade é que o Sporting nada tem a ver também. Se calhar tinha-vos dado jeito um Viktor Gyokeres na frente, não?

DC: «Muito, muito jeito [risos]. Tínhamos um neerlandês, o Wolfswinkel, que também fazia muitos golos e estava numa fase incrível.»

zz: Ele marcou um dos golos no Etihad!

DC: «Ele marca no Etihad e fez bastantes golos, mas acho que o Viktor Gyokeres é um Wolfswinkel com update, com atualizações [risos]. É um dos grandes nomes a jogar em Portugal e na Europa. É um dos grandes avançados a nível europeu. Já o demonstrou na nossa Liga, agora está a demonstrá-lo também na Champions League.»

Rúben Amorim e Pep Guardiola em 2022 @Getty Images

«Este Sporting atual e o City atual são muito melhores do que tanto o Sporting na nossa época, como o City da época de Mancini. O Amorim e o Guardiola conseguiram formar duas equipas tremendas, com as devidas diferenças.»

zz: Depois daquela eliminatória em 2022, em que Guardiola levou a melhor sobre Rúben Amorim, sente que o técnico português está mais preparado para enfrentar o catalão?

DC: «Acho que sim, são aprendizagens. Tens de passar por esses jogos, por essas vivências, para perceberes o que é que correu menos bem e o que é que talvez poderias ter feito de diferente para conseguir equiparar-te a essas equipas. E acredito que o Rubén Amorim teve essa aprendizagem.»

«É um treinador muitíssimo inteligente que prepara os jogos de forma exímia. Não só dependendo do rival, porque há muitos treinadores que preparam as equipas só consoante o adversário. O Ruben Amorim tem uma identidade própria, uma forma de jogar, tem muitas armas.»

«A equipa que joga muito bem a sair desde trás, em construção. Depois também tem a arma do poderosíssimo Gyokeres, que caso estejam a ser muito pressionados podem explorar na profundidade e nas costas da defesa contrária. E isso pode ser algo que o Sporting pode explorar, porque o City é uma equipa que gosta de pressionar muito alto, para roubar logo a bola e mandarem com a posse de bola. O City detesta estar sem bola.»

Duelo intenso com Edin Dzeko @Getty Images