Talvez tenhamos mesmo de nos deixar de paninhos quentes, de cuidados com as palavras, caldos de galinha, da falsa ou verdadeira modéstia, de olhares temerosos para históricos onde surgimos sempre do lado errado e que nos toldam as ambições. Portugal é, sim, neste momento uma das melhores equipas de andebol do mundo, disse-nos há dias Gustavo Capdeville e não era apenas o whishful thinking de quem se quer motivar antes de enfrentar a Suécia, campeã europeia em 2022 e bronze em 2024, ou a Espanha, terceira nos dois últimos Mundiais, campeã europeia em 2018 e 2020. Era a realidade de quem já conhece bem as suas forças, de quem já não se atreve a colocar entraves à ambição.
Depois do empate frente aos suecos, esta equipa que anda há cinco anos a fazer história pelo desporto português bateu pela primeira vez a Espanha, a primeira vez na história, reforce-se e realce-se. E o 1 de dezembro do andebol português é mais do que uma vitória, vale um bilhete inédito para uns quartos de final do Mundial, coisa nunca antes vista numa modalidade que há 10 anos vivia em crise e esgatanhava-se, tantas vezes sem sucesso, por um simples apuramento para as grandes competições.
Nesta Batalha de Aljubarrota, Paulo Jorge Pereira é Nuno Álvares Pereira, o génio tático dos embates ibéricos - ele que até mora no país vizinho -, mas por estes dias Portugal não tem de vencer apenas na astúcia, nas táticas do quadrado da vida, no fazer mais com menos - ainda que isso ainda seja uma realidade. Há verdadeiro talento aqui, uma maneira de jogar que consegue desamarrar o jogo rápido e físico dos nórdicos e, agora também, a qualidade técnica, tática e a ratice daqueles que mais se aproximam de nós e contra quem sempre tivemos dificuldades. Bater a Espanha é um marco, ponto. É a prova provada, talvez a prova final, que a seleção portuguesa de andebol já não precisa só de sonhar. A cada competição, há uma nova primeira vez, um feito. E quão difícil isso é.
Mas vamos ao jogo, a essa vitória histórica por números expressivos (35-29 para Portugal), que não contam o filme do jogo, emocionante, equilibrado, cheio de nuances, com Portugal quase sempre na reação até decidir, na última metade da 2.ª parte, tornar-se o verdadeiro protagonista do duelo ibérico.
Começou pouco usual a contenda, com muitos ataques rápidos, incaracterísticos para as duas equipas, mais adeptas do elaborado e que foram somando tantos golos como falhas técnicas. A aposta na defesa 5x1 de Espanha, com um homem a pressionar a batuta de Rui Silva, criou dificuldades inesperadas a Portugal, que os Heróis do Mar foram conseguindo desmontar. Aos 10 minutos, estava tudo empatado (6-6), com Portugal a chegar à vantagem pela primeira vez dois minutos depois, num contra-ataque de Leonel Fernandes que começou numa parada de Capdeville, que daria o mote para uma dinâmica do jogo português decisiva na 2.ª parte, mas aí com um super-Diogo Rêma na baliza.
Portugal ia forçando várias exclusões a Espanha, mas o ataque começou a sofrer. Com os irmãos Costa algo desaparecidos na 1.ª parte, os Hispanos chegaram a dispor de uma vantagem de quatro golos. Paulo Pereira, não olhando a estatutos, lançou João Gomes e Salvador para a vez da dupla fraternal e Portugal recuperou: ao intervalo, Espanha vencia por apenas um golo (16-15).
Arrancou mal na 2.ª parte a seleção nacional, com vários erros técnicos que permitiram a Espanha marcar dois golos logo de entrada. Mas Portugal nunca largou o jogo, nunca deixou fugir o adversário mesmo nos piores momentos, nas momentâneas falhas de concentração, que foram sempre compensadas. Cair, deixar-se enredar pelo adversário, nunca foi opção. Francisco Costa surgiu na 2.ª parte como quem tivesse levado um banho de história de Portugal ao intervalo, aquele braço esquerdo com a força de certa pá medieval, pronta a espantar espanhóis. Acabou o jogo com 8 golos, tão decisivos quanto as 12 defesas de Diogo Rêma.
À entrada em falso de Portugal seguiu-se um período que seria fulcral para o virar do jogo: Espanha não marcou durante mais de sete minutos. Mesmo com duas exclusões seguidas, para Iturriza e Kiko Costa, Portugal agarrou-se à frente, à possibilidade da história. Aos 41 minutos, a vantagem estava nos três golos, Espanha ainda andou a um golo, mas os últimos 10 minutos foram demolidores para Portugal, a aproveitar todas as falhas técnicas castelhanas e as paradas corajosas de Rêma. Um fogacho de reação espanhola a quatro minutos do fim ainda assustaram, o jogo tornou-se caótico, a todo o campo, com pressão intensa de Espanha na defesa, mas Portugal foi sempre encontrando o caminho da baliza.
Uma bola perdida e depois recuperada por Salvador no chão, na raça, quase na luta corpo a corpo foi o golpe final para Espanha. A partir daí, a equipa perdeu o discernimento, talvez atolambada pela derrota histórica que se aproximava, e Portugal foi engordando o marcador.
A extraordinária vitória frente a uma bicampeã europeia e mundial é também o espelho e consequência do que se trabalha lá atrás. Em 2022 e 2024, Portugal só perdeu para os espanhóis na final do Europeu sub-20. Muitos desses jogadores que choraram derrotas por pequenas margens, derrotas duras, estavam esta tarde a dar tudo na Noruega, a virar a história. Os irmãos Costa, Diogo Rêma, João Gomes, todos eles figuras de proa neste Mundial. Portugal está nos quartos de final do Mundial de andebol depois de bater a Noruega e a Espanha, de empatar com a Suécia. Sem precisar de fazer contas, de esperar por um milagre, porque já nada disto é um milagre, é a doce e trabalhosa realidade. Sabem que mais? Abram alas para uma das melhores equipas de andebol do mundo.