Na saga ‘Kill Bill’, a demanda de vingança da heroína impele-a, às tantas, a viajar até ao Japão, propositadamente em busca de um ancião mestre de cujas mãos saíam espadas com uma lâmina transcendental para a trama. Nos ficcionados filmes, a imersão no enredo leva uma pessoa a deixar-se ir e pronto, fazia sentido. Não sendo exatamente a mesma coisa, por vezes surgem parábolas em torno de desportistas tão míticos que ficamos na dúvida se têm réplica na realidade.
Há uma história que persegue o matulão dos matulões, Teddy Riner, faz tempo: a de que algures no Japão, terra-mãe do judo, existe um dojo criado especificamente só para lá serem treinados atletas com o único propósito de o vencerem. O mito urbano poderia enganar os mais permeáveis não só por dizer respeito ao lugar que germinou a modalidade, como, para lá de todo o registo grandioso da carreira do francês, ele já não perder um combate desde 2021, quando se deu a enorme surpresa do russo Tamerlan Bashaev o derrotar em Tóquio - antes disso, ninguém lhe ganhou durante quase uma década, o equivalente a 152 combates. A desilusão foi tremenda, o despertar do monstro teria a mesma magnitude.
O gigante francês, feito de uma armadura de músculos e esqueleto enormes, prosseguiu na sua sequita aos adversários, ganhando o ano passado o 11.º título de campeão mundial, limando as suas arestas para o combustível que lhe saciou o motor nos últimos tempos, estes Jogos Olímpicos, na sua Paris, dizia o judoca há tempos que “é mágico e traz-me muita emoção, motiva-me”, portanto foi para ele e a vasta maioria dos franceses que ainda antes de chegar a vez dos homens com mais de 100 quilos irem ao tapete da Arena Champ-de-Mars já se viam caras de cartão de Teddy Riner a serem cantadas nas bancadas.
As pessoas viraram, mais do que fãs, quase adeptas da team Teddy, ansiosas pelo triunfo em casa do seu herói, regressado de ser porta-estandarte no Rio de Janeiro, laurel que não foi o seu último em ocasiões olímpicas, mas já lá vamos, antes de lá chegarmos houve a missão serena de Riner no tatami do qual se apoderou nos três combates até à final, era um homem numa demanda, sempre tranquilo até quando o georgiano Guram Tushishvili não gostou de ser vulgarizado por um ippon relâmpago e reagiu com a sua cotada de macho para cima do francês, quase o desafiando para uma briga. E Teddy Riner impávido, sem lhe estender uma pista de que tinha vagar para aquelas vulgaridades. A intenção do francês era avançar rumo ao combate final.
Lá encontrou o mais rechonchudo Kim Min-Jong, sul-coreano de bochechas proeminentes e cabelo aprumado à tigela, os seus fios a destaparem a sua testa quando um repentino assomo de Teddy Rinder, até então de presença austera e estudiosa do adversário, o tomou com toda a força de uma missão.
Mal arremessou Kim Min-Jong ao tapete, num ápice quase imprevisível, vindo do nada, a prova que a força bruta arranja forma de ser supersónica, Riner ergueu logo os braços com o pés plantados no tatami porque o francês só meio que caiu com o sul-coreano, até nisso é especial, nem foi chão no judo onde se projeta gente para o chão com o ímpeto do nosso próprio corpo contra o do adversário.
O primeiro a aperceber-se do feito, Teddy não se coibiu de festejar logo ali, no tatami das boas maneiras e dos gestos tradicionais onde ele esbracejou, depois prestou uma vénia ao sul-coreano e levantou-lhe um braço, um senhor que raramente perde a saber honrar um perdedor já com o público nas bancadas endoidecido e barulhento.
Cumpridos os protocolos, Teddy Riner pulou e berrou e saltou e os seus 35 anos celebraram infantilmente com a alegria de uma criança, rapidamente indo para perto das bancadas apinhadas, provando que as tinha na palma das mãos: acenou a pessoas, apontou para outras, lançou imaginariamente bolas de basquetebol a cestos invisíveis. A arena do centro de Paris pertencia a um só homem, não o dono do maior poder reconhecido mas aquele que dispunha da maior influência sobre as massas no momento. E ele sabia-o.
Pouco demorou a abraçar e falar ao presidente francês, Emmanuel Macron, lá no pavilhão em mangas de camisa, no mesmo rol momentâneo em que caiu nos braços de Tony Parker, antiga estrela francesa da NBA, e poucos minutos após a sua vitória ser celebrada, nas redes sociais, com um “alerta medalha” para o “Le Roi Teddy” dada pela coqueluche do futebol do país, Antoine Griezmann, cuja cara de cartão se via a ser erguida nas bancadas por entre as dezenas de braços que agitavam as várias de Riner, rabanadas lá para o meio.
Presentes na arena ou à distância, é uma parada de personalidades (o ator Omar Sy ou Nasser Al Khelaifi, magnata presidente do PSG, também lá estavam), um desfile de personagens de relevo no desporto e na vida de França ajuntado por causa de um judoca.
Mas ‘Teddy Bear’, como é carinhosamente apelidado o brutamontes que oscila entre o 130 e os 150 quilos, consoante o seu estado de forma, e com 204 centímetros de arcaboiço, suplantou a simples definição de judoca há muito tempo, as suas proezas, os seus feitos tão incontáveis que coube ao gigante acender o balão de ar quente mascarado de tocha olímpica na cerimónia de abertura destes Jogos, um triunfante atleta reservado para o momento triunfal que partilhou, a meias, com Marie-José Pérec, antiga velocista olímpica do país mas que nasceu em Guadalupe, território ultramarino francês de onde Riner também veio.
E se há um exercício ótico a respeitar do mesmo modo que políticos tão usualmente se apressam a fazer o seu - Macron estar na Arena Champ-de-Mars, na primeira fila, será tão uma honra prestada pela máxima figura de estado ao desporto olímpico como uma deliberada intenção de um política em ser visto, filmado e captado em fotógrafos com um mastodonte da história desportiva do seu país -, também será verdade que poucos atletas terão hoje, em França, a aura de que Teddy Riner goza no carinho de um povo que endoideceu com mais uma conquista sua.
Ele é um lendário atleta negro, vindo da ilha caribenha francesa mas crescido na Paris dos subúrbios, dos banlieue que ele não representa propriamente, pelo menos não na mais comum ascensão dos arredores da capital, embora o faça à sua maneira, nos seus conformes, porque a família fixou-se em La Chapelle, um bairro não tão longe do coração da cidade embora associado a imigrantes e descendentes do Sri Lanka, lá escuta-se o tamil entrecortado com o francês, não será um pedaço de periferia de pobreza, crime, dificuldades e gente a lutar pelo ganha-pão nas redondezas de onde tanto pão há por ganhar, mas Teddy Riner é um filho dos pais e mães que sempre vieram de fora para dentro de uma França à qual ainda é custoso aceitar a diferença.
Teddy Riner não poderia ser mais diferencial no judo, já o era e acentua-se como tal principalmente deste 2 de agosto em diante, com uma arena a berrar, em uníssono, “Teddy! Teddy! Teddy!”, um nome longe de se resumir ao desporto, essas fronteiras são tímidas demais, não é de agora que o judoca é Embaixador da Boa Vontade da UNICEF e tão pouco a sua influência ficará por aqui. “Ser campeão olímpico diante de um público como este é qualquer coisa de excecional e prazerosa. Ainda não caí em mim. Estou super feliz, hiper contente e vou dedicar-me a festejar bem esta medalha. Não foi nada fácil”, disse no tatami, antes de receber o seu ouro de sorriso rasgado.
Dezasseis anos depois da sua estreia olímpica, Teddy obteve o seu terceiro penduricalho olímpico da matéria mais preciosa, tornando-se o francês com mais medalhas de ouro nos Jogos de verão. Além das três individuais, tem outro na prova mista, vertente na qual ainda pode voltar a ganhar daqui por uns dias. Histórico, inevitável, exuberante.
Ao ouro em Londres e no Rio de Janeiro acrescentou o de Paris, da sua Paris onde alcançou, por fim, o feito do seu ídolo que foi um dos maiores no judo: Tadahiro Nomura competia, no seu tempo, nos -60 quilos, talvez numa fábula qualquer paralela se escangalharia caso os 130 ou 150 de Teddy Riner espirrassem com um pouco mais de força, mas antes do francês foi este japonês o único homem a levar três ouros dos Jogos Olímpicos.
Afinal, é possível que haja um fundo de pertinência no Japão pensar em erigir um dojo só para lidar com Teddy Riner, o gigante que se fez herói de um povo através do judo.