A ameaça de greve dos futebolistas, face à sobrecarga competitiva, correlacionada com uma maior frequência de lesões, precisa de condições particulares para ser efetivada, admitem à agência Lusa especialistas em direito desportivo.

“Não sendo inédita, carece de condições muito próprias, atendendo à especificidade da indústria. Contudo, é um cenário perfeitamente passível de suceder. Temos um calendário extremamente sobrecarregado e este novo Mundial de clubes não vem ajudar em nada nesse aspeto. As queixas são bastante legítimas e válidas, porque tal sobrecarga pode ter efeitos nefastos na saúde física e mental dos atletas, para além de outras consequências, tal como a redução do período de férias”, enquadrou Gonçalo Almeida, advogado e juiz da Câmara de Agentes do Tribunal de Futebol da FIFA.

Disputado anualmente desde 2005 pelos seis campeões continentais, mais um clube do país anfitrião, o Mundial adotará uma periodicidade quadrienal a partir de 2025 em pleno final de época na Europa e realiza-se de 15 de junho a 13 de julho, nos Estados Unidos.

Os 32 emblemas, de cinco confederações, incluindo Benfica e FC Porto, serão sorteados na quinta-feira por oito grupos, de quatro equipas cada, sendo que os dois primeiros colocados rumam à fase a eliminar, que terá jogos a uma mão a partir dos oitavos de final.

“Na América do Norte e do Sul, haverá um congestionamento de competições e isso cria conflitos no planeamento dos clubes, uma vez que alguns se depararão com duas ou mais provas a decorrer em simultâneo e com datas sobrepostas. Acresce que este Mundial terá lugar nos Estados Unidos e implica viagens extensas, que elevam ainda mais o risco de exaustão”, lembrou, evocando as diferenças de ritmo e desgaste entre os 32 emblemas naquela fase do ano.

A FIFA também vai alargar em 2026 o número de seleções nos Mundiais, de 32 para 48, enquanto a UEFA incluiu já esta época 36 equipas nas remodeladas fases de liga da Liga dos Campeões, Liga Europa e Liga Conferência, todas anteriormente disputadas por 32.

“O meu entendimento é que tem havido diálogo entre os ‘stakeholders’ da indústria. Há quem acuse a FIFA de diálogo limitado e pouco flexível ou os representantes de classe de um desejo de protagonismo e maior poder decisório. Entendo que estes últimos devem ter um papel cada vez mais participativo, mas daí a determinarem o caminho que a FIFA traça, parece-me manifestamente exagerado. Tem de haver equilíbrio”, pontuou Gonçalo Almeida.

Em outubro, a Associação de Ligas Europeias, liderada por Pedro Proença, igualmente presidente da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), e a Federação Internacional de Associações de Futebolistas Profissionais (FIFPro) formalizaram uma queixa na Comissão Europeia contra a FIFA, devido à sobrecarga do calendário internacional.

“Tenho sérias dúvidas de que estas manifestações de greve sejam concretizadas, o que não significa que não esteja perfeitamente ao lado dos jogadores quando reivindicam uma série de violações grosseiras de direitos universais que lhes assistem e que não são respeitados pela FIFA. Creio que quem vai ter de ceder mais são os jogadores. Não temos visto uma movimentação extraordinária dos clubes. Estes viam uma tábua de salvação na Superliga Europeia, que a FIFA rejeitou liminarmente, incluindo a imposição de sanções”, salientou Jerry Silva, advogado e juiz-árbitro do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD).

A hipótese de uma greve no futebol foi levantada há cerca de três meses pelo espanhol Rodri, médio do tetracampeão inglês Manchester City e vencedor da Bola de Ouro em 2023/24, seguindo-se outras vozes críticas, incluindo os colegas de equipa Rúben Dias e Bernardo Silva, defesa central e médio ofensivo da seleção portuguesa, respetivamente.

“Os jogadores sairão fragilizados ou têm de mostrar uma posição fortíssima e criar um braço de ferro, que, por outro lado, pode ter um efeito muito perverso. Em certas circunstâncias, é evidente que eles podem reservar o direito de participar ou não em determinadas competições, mas, dentro do período contratual, essa recusa pode fazer incorrê-los num processo disciplinar, com consequências daí decorrentes”, ressalvou.

De acordo com um relatório da FIFPro, o avançado Julián Alvarez, hoje nos espanhóis do Atlético de Madrid, sobressaiu a nível mundial em número de partidas na época passada, com 75 entre Manchester City e Argentina, enquanto o compatriota Cristián Romero, defesa central dos ingleses do Tottenham, foi quem viajou mais horas (211) e liderou em distância percorrida (162.978 quilómetros) nas paragens dos clubes para as datas FIFA.

“Falamos dos jogadores, mas estamos a esquecer-nos de que isto também é de uma violência absolutamente atroz para os treinadores. É evidente que um atleta tem uma carga física brutal, mas um treinador e a sua equipa técnica têm um desgaste mental violentíssimo na preparação dos jogos e ao fim deste tempo todo”, finalizou Jerry Silva.