
É uma historieta que se conta, poderá ser mito, talvez um adágio popularizado acerca do desconhecido. Verdadeiro ou não, serve para ilustrar um ponto. Diz-se que na China há olheiros e treinadores espalhados pelo país e vão espreitar a creches deveras cedo, onde pedem a crianças que executem uma simples tarefa: tentarem acertar com uma bola num pequeno caixote. Por ser tido como uma aferição de coordenação motora, os infantes que o lograrem três vezes seguidas são logo encaminhados para um clube local de ténis de mesa para serem apresentados à modalidade. A prevalência da China nos números terá o seu berço algures nestas práticas.
Desde 1988, quando o ténis de mesa chegou aos Jogos Olímpicos, a nação colecionou 60 medalhas, mais do triplo do que o segundo país na lista (a Coreia do Sul, com 20), proveito colhido da sua instauração como modalidade nacional por volta de 1949, quando ao volante se agarrou Mao Tsé-Tung e a sua revolução não menosprezou o poder do desporto. Ciente dos constrangimentos da vastidão do quarto maior país do planeta em área, com largas fatias inabitáveis devido ao clima e topografia, escassez de água e abundância de pessoas, Mao teve no ténis de mesa uma escolha lógica para impulsionar: não ocupava espaço, jogá-lo era barato e qualquer pessoa o podia jogar.
É um resumo sumariado e simplificado em demasia para a intricada génese que cozinhou a hegemonia da China no que o resto do mundo, vulgar e erradamente, conhece pela denominação lúdica de ping-pong. Todas as 10 campeãs olímpicas foram chinesas e sete dos 10 ouros nos homens vieram de lá, já são evidências suficientes para percebermos a ideia que Hugo Calderano tem bem presente, por certo, há muito tempo. E que terá sido parte do que o levou a atirar-se para o chão e deixar-se lá ficar estendido, por um momento, quando a bola batida por Wang Chuqin calhou fora da mesa.
O brasileiro acabara de derrotar um jogador chinês, na China (ou quase, foi em Macau), nas meias-finais da Taça do Mundo, feito raro para qualquer mesa-tenista e inaudito no seu caso: nunca alguém fora da Europa ou da Ásia o fizera na competição. O 5.º classificado do ranking mundial no qual há quatro chineses entre os dez primeiros, Hugo Calderano era o único atleta não oriundo da China nas meias-finais e prevaleceu sobre o vice-líder da hierarquia em sete parciais. “Eu simplesmente poderia aceitar que ele estava jogando a um nível incrível e que eu não conseguiria ganhar”, explicou quem espera “inspirar muitos jovens” pegarem na raquete.
A festa do jogador, nascido há 28 anos no Rio de Janeiro, deu ao país o seu primeiro finalista em Taças do Mundo - e já dera o estreante em meias-finais. O brasileiro tem constelado proezas com a bola à qual se imprimem milhares de rotações por minutos que são indecifráveis para o olho destreinado. Hugo Calderone foi o primeiro a dar uma medalha olímpica ao seu país na modalidade, quando ficou com o bronze nos Jogos da Juventude de 2014, precisamente na China. Tem 24 títulos conquistados na carreira e 968 encontros feitos, muitos contra adversários chineses que abundam no circuito.
Alcunhado como “Thrill from Brazil”, qualquer coisa o “Entusiasmo do Brasil”, que não rima como no dizer em inglês, a biografia do jogador conta que aprendeu sozinho a ler e a escrever com 4 anos e não muito depois já resolvia um cubo de Rubrik em nove segundos - nada mau, quando o recorde mundial dessa pressa está nos 3.05 segundos. Hugo Calderone é o sul-americano que mais alto escalou no ténis de mesa, tendo já sido o 3.º do ranking e estando há sete anos consecutivos dentro do top 10. Fala fluentemente sete línguas, incluindo o mandarim.
Com certeza lhe dará jeito em Macau, onde está imerso no que é mais familiar ao ténis de mesa. Defronta, na final, Lin Shidong, o número um mundial de 20 anos e com um rácio de vitórias de 83% na carreira (a última contra Liang Jingkun, oriundo de vocês sabem de onde), percentagens que os jogadores chineses de topo banalizam. Na decisão das mulheres estará outra representante da nova vaga de produção do país de atletas sublimes no ténis de mesa: os 21 anos de Kuai Man vão medir-se frente aos 24 de Sun Yingsha, num duelo entre os 89% de uma e os 83% de outra que afunilam estas descrições para registos impensáveis para a maioria das modalidades desportivas individuais.
Na sua final em Macau, onde o português já não predomina, mas ainda é língua oficial e se vê nas ruas, nos edifícios, nas placas de trânsito ou na frente dos autocarros, Hugo Calderone empunhará a sua valiosa estatística - ganhou a Lin Shidong na única vez que jogou contra ele.