Na quinta-feira, 46 segundos depois do início de um combate da 1.ª ronda do torneio olímpico de boxe feminino, na categoria de -66 quilos, a italiana Angela Carini decidiu desistir do encontro com a argelina Imane Khelif, após uma série de murros.
O confronto gerou, talvez previsivelmente, um debate tóxico, aceso e muitas vezes ofensivo sobre a atleta argelina, sobre mulheres e pessoas transgénero, potenciado pela velocidade habitual com que se dissemina desinformação nas redes sociais. Na rede social X (antigo Twitter), personalidades como Donald Trump, a escritora J.K. Rowling e o bilionário Elon Musk apontaram o dedo a Khelif, alegando “vantagem biológica”, criticando a presença de pessoas transgénero em desportos femininos, e repetindo frases como “homem biológico”, “injustiça” e “traição às mulheres”.
No espaço de poucas horas, o nome de Imane Khelif era conhecido em todo o mundo; e a pugilista, até então uma desconhecida para muitos, passou a ser o alvo de muitos comentários discriminatórios e teorias falsas sobre pessoas trans e sobre mulheres no desporto.
Há, contudo, um ‘detalhe’ importante: Imane Khelif é uma mulher. Nasceu mulher, cresceu mulher, o seu passaporte argelino diz que é mulher de 25 anos, nascida em 1999, e desde criança que compete em modalidades femininas. Nenhum documento foi alguma vez apresentado que apontasse o contrário.
A questão foi levantada em 2023, quando a Associação Internacional de Boxe (IBA, na sigla em inglês) - que não é reconhecida pelo Comité Olímpico Internacional (COI) - decidiu desqualificar Khelif, bem como a atleta taiwanesa Lin Yu-ting, por causa de um alegado teste genético que ambas terão falhado. Diga-se que o COI considerou a decisão “arbitrária”.
Portanto, como é que a controvérsia começou? Porque é que um combate da 1.ª ronda de um torneio olímpico de boxe gerou reações tão fortes? E existe mesmo “injustiça” na participação de Imane Khelif que mereça comentários de primeiros-ministros, ex-Presidentes e até de deputados portugueses?
Quem é Imane Khelif e qual é o seu histórico no ringue?
A pugilista Imane Khelif nasceu em 1999 em Tiaret, no norte da Argélia. Chegou a experimentar futebol, mas desde criança que participa em eventos de boxe feminino. Em 2018, fez a sua estreia oficial aos 19 anos de idade e, em novembro, ficou em 17.º lugar no Campeonato Mundial de Boxe Feminino em Nova Deli.
Khelif cumpriu o sonho de lutar nos Jogos Olímpicos em Tóquio, perdendo nos quartos-de-final para a irlandesa Kellie Harrington. Em 2022, tornou-se na primeira argelina a chegar à final do Campeonato do Mundo de Boxe Feminino da IBA, na qual foi derrotada por Amy Broadhurst. Ainda nesse ano, venceu medalhas de ouro nos Jogos do Mediterrâneo e no campeonato africano de boxe amador.
Segundo o site BoxRec, o histórico de Imane Khelif em combates até à vitória contra Carini é de 38 vitórias (oito por ‘knock-out’) e nove derrotas. Quatro dessas vitórias foram mais tarde consideradas desqualificações.
Várias personalidades, conhecidas por se oporem à participação de pessoas transgénero em desportos femininos e por comentários transfóbicos, como a autora J.K. Rowling e Elon Musk, declararam falsamente que Khelif era “um homem”. Outras descaracterizaram a identidade de género da atleta.
Até pessoas com responsabilidades políticas saltaram em defesa de Angela Carini, como a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni e os portugueses Rita Matias (Chega) e João Almeida (CDS-PP), com a deputada do partido de extrema-direita a repetir teorias falsas sobre inibidores de puberdade e a argumentar que a pugilista tem “uma fisionomia masculina”.
A pugilista nunca se declarou como transgénero ou intersexo, e nunca tornou pública a sua orientação sexual (não que importasse para o assunto em causa).
Além disso, mesmo que um teste verificasse a presença de cromossomas XY ou de níveis elevados de testosterona, isto não determina por si só que a pessoa seja um “homem” - as mulheres produzem testosterona naturalmente, tal como os homens produzem níveis reduzidos de estrogénio, existem casos conhecidos de hiperandrogenismo e a existência de cromossomas XY pode ocorrer em casos de síndrome de Swyer.
Houve “vantagem biológica” nos últimos Jogos Olímpicos?
Em 2021, nas históricas Olímpiadas em Tóquio ainda sob pandemia, tanto Khelif como a pugilista taiwanesa Lin Yu-ting foram admitidas para participar na competição pelo Comité Olímpico Internacional. A unidade do COI responsável pela aprovação de atletas confirmou que ambas cumpriam os critérios de elegibilidade genética e os parâmetros médicos adequados.
Durante todos os Campeonatos do Mundo organizados por várias associações de boxe e nos próprios Jogos Olímpicos de Tóquio, não foram encontradas quaisquer evidências de níveis de testosterona elevada ou a presença de cromossomas XY.
Antes do combate de quinta-feira entre a argelina e Angela Carini, o COI declarou que “todas as atletas que participam no torneio olímpico de boxe de Paris cumprem os regulamentos de entrada e elegibilidade da competição, bem como todos os regulamentos médicos aplicáveis”.
As derrotas mais conhecidas de Khelif ocorreram frente a Kellie Harrington, em Tóquio, e Amy Broadhurst, nos Mundiais. E nenhuma atleta considerou que houve qualquer tipo de dificuldade acrescida no combate com a argelina. Numa publicação na rede social X, Broadhurst deixou claro que lutar contra Kheli tem os mesmos desafios que qualquer outra pugilista.
“Muita gente contactou-me sobre Imane Khelif. Pessoalmente, não acho que ela tenha feito qualquer tipo de ‘batota’. Acho que foi assim que ela nasceu e isso está fora do seu controlo. O facto de ela ter sido derrotada por nove mulheres diz tudo”, afirmou.
Na terça-feira, antes do início da 1.ª ronda do torneio de -66kg, o porta-voz do Comité Olímpico, Mark Adams, reiterou que “estas pugilistas são completamente elegíveis” para competir. “Elas são mulheres no passaporte, são mulheres que competiram nas Olimpíadas de Tóquio e têm competido há muitos anos. Acho que todos temos a responsabilidade de baixar o tom e não tornar isto numa caça às bruxas”, disse, reafirmando que “isto não é um assunto de pessoas transgénero” e que a polémica apresenta riscos para “pessoas reais”.
A “polémica” IBA desqualificou Khelif, mas porquê?
A carreira da atleta argelina parecia ir de feição quando, em março de 2023, participou mais uma vez no campeonato do mundo de boxe de Nova Deli, o tal organizado pela IBA. Khelif voltou a atingir a final, mas foi então, pouco antes do combate pela medalha de ouro, que a IBA anunciou que a argelina, bem como Lin Yu-ting, estavam desqualificadas da prova.
A organização explicou que as duas mulheres não cumpriam os testes de elegibilidade do torneio. O presidente russo da IBA, Umar Kremlev, disse numa entrevista à agência estatal TASS que os testes “comprovaram que [Khelif] possui cromossomas XY” e acusou ambas as atletas de “tentarem enganar as colegas e fingirem que são mulheres”.
Segundo o Washington Post, o secretário-geral da organização disse à direção da IBA que as duas mulheres tinham falhado testes realizados por um laboratório independente e que tinham sido “monitorizadas” mal tinham chegado à Índia. Já esta semana, a organização notou que tinha sido feita um “exame de testosterona” e um “teste reconhecido”, sublinhando que os resultados são “confidenciais”.
A forma como foram apresentados os resultados dos testes às duas pugilistas fez as autoridades do boxe mundial questionarem o processo. A IBA nunca divulgou documentos que comprovassem as suas conclusões, nem especificou que tipo de testes em concreto é que foram realizados, nem que laboratório “independente” os executou.
As declarações da IBA não tranquilizaram nem esclareceram os críticos da organização, as atletas e o Comité Olímpico Internacional, muito por causa do passado controverso da própria organização de boxe. Há vários anos que o COI tem denunciado irregularidades na organização mundial de boxe, especialmente desde 2020, quando Kremlev tomou posse como presidente. O russo tem sido acusado de usar a IBA para se promover a si e à Gazprom, a empresa de gás russo sancionada pela União Europeia que patrocina a organização, e de estar envolvido em escândalos de subornos.
O Washington Post também avança, citando fontes próximas da decisão, que as declarações de Umar Kremlev eram “típica desinformação da IBA”.
Três meses depois da decisão da IBA de desqualificar Lin e Khelif, o COI decidiu que iria deixar de reconhecer a IBA e passou a excluir a organização de participar nos Jogos Olímpicos. Desde 2012 que os controlos médicos no boxe são realizados por uma unidade nomeada pelas autoridades olímpicas.
Como é que o Comité Olímpico reagiu?
Antes do combate, a posição do COI de defesa da elegibilidade e dignidade das atletas era clara, mas o grande alvoroço em torno da vitória esmagadora de Khelif contra a sua oponente italiana obrigaram o Comité Olímpico a reforçar a sua posição e repudiar as alegações levantadas nas redes sociais - apontando a IBA como a principal responsável pelo ‘bullying’ online contra as pugilistas.
As autoridades olímpicas afirmaram, num comunicado divulgado nas redes sociais, que Khelif e Lin Yu-ting “foram vítimas de uma decisão repentina e arbitrária da IBA”, que as eliminou do Campeonato do Mundo “sem o procedimento devido”.
“De acordo com as atas da IBA disponíveis no seu site, a decisão foi tomada unicamente pelo secretário-geral e pelo CEO [Umar Kremlev]. A atual agressão contra estas duas atletas é baseada unicamente nesta decisão arbitrária, tomada sem o procedimento correto, especialmente considerando que estas atletas têm competido ao nível mais alto há vários anos. Tal abordagem é contrária a uma boa governação”, criticou o Comité Olímpico Internacional.
Italiana não cumprimentou adversária, mas já pediu desculpas e lamentou polémica
Após 46 segundos de combate, Angela Carini saiu “destroçada” da luta, ensanguentada e em lágrimas, desistindo sem cumprimentar Imane Khelif no final. A argelina atingiu-a várias vezes, incluindo com dois socos fortes na cara.
Carini explicou que preferiu parar pela sua “saúde”. “Nunca senti um murro assim”, disse, citada pelo The Guardian, acrescentando que os “anos de experiência” contribuíram para perceber que o melhor a fazer seria sair do ringue.
“Eu entrei no ringue para lutar. Não desisti, mas um murro doeu demasiado e eu disse ‘chega’. Vou sair com o queixo levantado. (...) Não é uma derrota para mim - para mim, se entrar no ringue, já ganhei, independentemente de tudo. Não estou aqui para julgar. Não sou eu que devo dizer o que é justo ou não. Fiz apenas o meu trabalho”, afirmou.
A lutadora revelou ainda que estava emocionada depois da desistência porque um dos objetivos que tinha definido para os Jogos Olímpicos era homenagear o pai e treinador, que morreu poucos meses antes dos Jogos de Tóquio.
Carini, de 25 anos e natural de Nápoles, acabou por pedir desculpas à adversária e à comunidade do boxe, procurando também afastar-se do debate criado em torno de Imane Khelif, que a deixa “triste”. E, em entrevista ao Gazzetta dello Sport, garantiu que não saiu do combate por opções ideológicas ou políticas.
“Toda esta controvérsia deixa-me triste. Tenho pena pela minha oponente. Se o COI diz que ela pode lutar, eu respeito essa decisão”, vincou, em entrevista ao jornal italiano
Sobre a interação com Khelif no final do encontro, Carini pediu desculpas por não ter respeitado o cumprimento de mão, que a argelina tentou duas vezes, e também disse estar disponível para “abraçar” a adversária vencedora.
“Não tinha intenção de o fazer. Quero pedir desculpas a ela e a toda a gente. Estava zangada porque os meus Jogos Olímpicos tinham acabado. Não tenho nada contra Khelif. Aliás, se a puder ver outra vez, vou abraçá-la”, disse.