
Num dia, Jakob Ingebrigtsen estava nos Mundiais de pista coberta, em Nanjing, na China, a conquistar a medalha de ouro nos 1.500 metros. Impávido, sereno, imune. Correr parecia uma espécie de automatismo. Nos seguintes, sentou-se no tribunal de Sandnes, na Noruega, a enfrentar o pai num julgamento.
Em outubro de 2023, Jakob e outros dois irmãos, Henrik e Filip, assinaram um texto no jornal norueguês “VG”. Nele denunciavam uma situação “insuportável” e “desumana”. A prosa falava do pai, Gjert, alguém “muito agressivo e autoritário, que usou violência física e ameaças” durante a infância dos rapazes. As queixas foram formalizadas e Gjert está acusado de abusar fisicamente de Jakob e da irmã, Ingrid, dois filhos dos sete descendentes.
A imprensa fala do julgamento da “família desportiva mais famosa” do país. A participação dos Ingebrigtsen em programas de televisão tornou-os ícones nacionais, os Kardashian da Noruega. O foco sempre esteve na relação entre Jakob, Henrik e Filip com o Gjert, que os treinava. Especialmente dotados para corridas de meio-fundo, os três foram conquistando medalhas em competições de nível europeu e mundial.
Jakob é o mais novo e também o mais bem-sucedido, o projeto ao qual foram limados os defeitos detetados nos protótipos anteriores. É atual campeão olímpico nos 5.000 metros, título que conquistou em Paris, e, em Tóquio, conquistou também a medalha de ouro nos 1.500 metros, distância em que é recordista mundial.
No entanto, a vontade que os elementos mais mediáticos da família tiveram de expor os comportamentos do progenitor surgiu após uma ocorrência com Ingrid. A irmã, que era menor em 2022 quando a situação se passou, terá sido agredida com uma toalha molhada por Gjert quando se esqueceu de levar para o treino um monitor para medição da frequência cardíaca. As marcas no corpo de Ingrid, que deixou o atletismo, foram exibidas numa fotografia em tribunal.
Esta terça-feira, durante quatro horas, Jakob Ingebrigtsen relatou sem inibição os momentos vividos com o pai, alguém descrito como “nervoso, neurótico e inseguro”. Quando tinha “sete ou oito anos de idade”, o atleta nascido em 2000 disse que alguém da escola ligou para casa. Jakob disse a Gjert não saber qual o motivo. “Acusou-me mentir e bateu-me na cabeça várias vezes na cozinha. Congelei. Não sei exatamente quantas vezes fui espancado. Algures entre dez e 20 vezes. Tentei-me proteger, mas ele pegou nas minhas mãos e colocou-as na parte lateral do meu corpo antes de me continuar a bater na cabeça”, descreveu o visado em tribunal.
A adolescência de Jakob susteve-se numa “cultura de medo”, onde existia uma “enorme quantidade de manipulação”. Assim o tentou demonstrar com um vídeo de 24 minutos em que o pai discute com ele por estar a jogar PlayStation após o treino. Parece ser apenas uma pequena parte dos muitos momentos tensos entre os dois. A maioria das situações não ficaram registadas em imagens.
Quando na adolescência caiu de uma trotinete com a qual brincava na rua, Jakob esperava “consolo”, mas, por parte do pai, terá recebido uma reação bem diferente. “Estava a tentar levantar-me depois de tropeçar e levei um pontapé no estômago.”
A ideia de família-maravilha desmoronou-se. Quando Gjert entrou na sala de audiências, vestido de preto, olhou brevemente para os filhos cuja queixa o pode levar a permanecer até seis anos na prisão. Durante a primeira sessão do julgamento que se vai prolongar durante as próximas semanas, o homem de 59 anos rejeitou a prática dos atos descritos.