De ar ensonado estampado na cara, a postura relaxada ao ponto de não parecer ralar-se, Magnus Carlsen está refastelado no sofá. Tem um braço estendido nas costas do conforto que o ampara e o outro segura o microfone. Tem um casaco por cima de um polo, nas pernas veste a razão para estar ali a falar. “Honestamente, estou demasiado velho para me importar demasiado. Se é isto que querem fazer, acho que vale para ambos os lados: ninguém quer ceder e estamos aqui. Por mim, tudo bem, provavelmente irei para algures onde o clima esteja melhor. Não vou jogar”, desabafa, em tom quase apologético à sua indiferença.

Em Nova Iorque para os Mundiais de xadrez rápido, vertente na qual o norueguês é o atual campeão planetário, Carlsen acabara de entrincheirar a sua recusa em competir sob as regras da Federação Internacional de Xadrez (FIDE) que se aplicam a todos os participantes. Pouco antes de dar a entrevista ao Take Take Take, um canal de YouTube dedicado à modalidade e do qual é proprietário, o génio axadrezado fora multado, em 200 euros, pela organização da prova por aparecer no seu encontro da 9.ª ronda com calças de ganga vestidas, adorno proibido segundo o código de vestimenta da entidade.

No trono do ranking mundial do xadrez desde 2011, a vida entre peças e tabuleiros em Nova Iorque dava um sorriso amarelo ao norueguês nesta ressaca natalícia. Era o 41.º classificado entre 180 participantes ao fim de três vitórias, quatro empates e uma derrota, registo que igualava a sua pior prestação numa edição da prova. Carlsen dormira bem, estava tranquilo, tivera “um bom almoço” na sexta-feira, mas distraiu-se com o tempo, “mal [teve] tempo de ir ao quarto e vestir uma t-shirt e um casaco”. O relato que fez da sua versão da história nem tentou defender qualquer argumento: “Disse que mudaria de roupa amanhã, mas disseram que tinha de ser agora. Nesse ponto, tornou-se uma questão de princípio para mim, portanto, cá estamos.”

A divergência resume-se assim: Carlsen conhecia as regras, não as respeitou, a organização pediu-lhe que trocasse de roupa no imediato, ele sugeriu que fosse apenas para o dia seguinte e nada feito.

Abandonando a prova, o norueguês de 34 anos não conquistará um sexto título mundial da vertente que encurta a paciência do relógio para os jogadores pensarem cada jogada - nem irá competir no equivalente do xadrez relâmpago, agendado para o início da próxima semana, que concede ainda menos tempo aos xadrezistas. Antes de rumar a latitudes mais acaloradas, o primeiro humano a deter, em simultâneo, o cetro nas três principais variantes da modalidade (em 2014, feito que repetiu em 2019 e 2022) deixou vincada a sua alergia à FIDE. “Sinceramente, a minha paciência com eles já não era muita antes de vir para aqui, mas está tudo ok, podem aplicar as suas regras e a minha resposta é estou fora, f*** you”, criticou, sem filtros.

A FIDE explicou que “pediu” a Magnus Carlsen para “mudar a sua roupa” visto ter calças de ganga que “são expressamente proibidas há muito pelos regulamentos” feitos para garantirem “o profissionalismo e justiça” dos competidores. “Esta decisão foi tomada imparcialmente e aplica-se de igual forma a todos os jogadores”, lê-se no comunicado que descreve as regras como “bem conhecidas pelos participantes” por lhes serem “comunicadas antes de cada evento”. A entidade acrescentou que “o alojamento” dos xadrezistas está a “uma curta distância a pé do local da competição” de modo a “tornar mais conveniente a adesão às regras”.

A recusa do génio norueguês segue-se ao seu cada vez mais aparente desencanto com o xadrez, ou pelo menos com quem o governa. Há dois anos, após propor à FIDE alterações às regras das suas competições, abdicou de competir no Mundial clássico, alegando falta de motivação para aguentar o desgaste (este ano, tão pouco quis participar na edição conquistada por Gukesh Dommaraju). “Simplesmente não a desfruto, é tão simples quanto isso”, chegou a confidenciar o líder da hierarquia há 13 anos, ainda aquém das duas décadas de permanência de Gerry Kasparov no trono (1985-2005), a quem não apetece competir.

Antes da prova que decorre em Nova Iorque, ergueu no Twitter uma espécie de bandeira branca, anunciando uma paz com a federação internacional quanto às divergências entre os Campeonatos do Mundo da organização e da vertente freestyle, em que a disposição inicial da primeira linha de peças é sorteada antes de cada jogo. Mas, na sua renúncia a tentar um sexto título no xadrez rápido, culpou a entidade de “estar a ir atrás de jogadores que não assinem com o freestyle, ameaçando-os de que não poderão competir nos Mundiais”. O fenómeno que devolveu mediatismo e uma certa aura cool ao xadrez cada vez parece querer menos com o xadrez tradicional. Magnus Carlsen já prefere até ir em buscar do calor.