Não faz muito tempo, foi há menos de três anos que Martín Anselmi, com fato de treino vestido e boné na cabeça, apareceu na sala de conferências de imprensa do Maracanã para falar na ressaca da maior conquista da sua carreira. A resposta à primeira pergunta, que o auscultou sobre a palestra dada aos seus jogadores antes da final da Taça Sul-Americana, tornou-se virulenta. “Ocorreram-me muitas coisas para dizer, mas quis fazer finca-pé para que fôssemos nós próprios porque, se não tivéssemos sido, no caso de perdemos teríamo-nos sentido vazios. Não há nada pior do que trairmo-nos a nós próprios, passas a ser um vivente sem vida”, revelou, findos os largos segundos que se deu para matutar o que ia dizer, sintoma de ponderação.

Num dos templos do futebol, acabado de conquistar um título de maior (equivalente à Liga Europa) com o Independiente del Valle contra o São Paulo, o argentino deixou uma tirada inspiradora no seu momento áureo, mais uma que deu umas onças de peso à sua reputação de treinador da moda do lado de lá do charco atlântico. Não foi a única. “Fez-se viral outra resposta que dei a um jornalista que me disse que a planificação do jogo tinha sido excelente”, recordou ao site “Coaches’ Voice”, por escrito. “Disse-lhe que fora boa porque tínhamos ganhado. Mas se não o tivéssemos feito, teria sido a mesma. E, talvez, ele teria pensado que tinha sido má”, invocou o filosofal técnico, então com 37 anos, nunca um homem de intervenções simplistas.

A sua intenção, explicou no mesmo texto, “era explicar que não há que analisar processos ou jogos em função do resultado”, pois “influenciam a opinião e contaminam-na”. Martín Anselmi quis ir ao factual que as forças apressadas do futebol, uma indústria que pretende tudo para ontem à qual Portugal não é exceção, esquecem rapidamente. “O trabalho pode ser bom ou mau mais além do resultado”, defendeu o argentino no texto que redigiu, em harmonia com os primórdios do seu percurso: antes de ter idade suficiente para se poder inscrever em cursos de treinador no seu país, licenciou-se em jornalismo.

É este o cerne do homem, afamado nas Américas pelas suas ideias positivas, que vai treinar o FC Porto imerso num contexto não muito abonatório para receber alguém que apele à paciência.

Martín Anselmi estava na segunda época no Cruz Azul, um dos clubes grandes do México que ressuscitou da penumbra dos lugares inferiores da classificação com um estilo de jogo vidrado na posse de bola, a sair a jogar curto de trás, inculcando uma atitude pressionante e cheia de sede de protagonismo numa equipa que levou a dois play-offs de campeão consecutivos (um torneio Clausura, na época passada, e o de Abertura nesta).

Hoje com 39 anos, será o primeiro técnico não europeu dos dragões desde Carlos Alberto Silva, brasileiro saído em 1993. É uma bola curva, um arremesso inesperado vindo do presidente André Villas-Boas e do seu diretor-desportivo, Andoni Zubizarreta, que apostam num treinador sem experiência europeia para pegar numa rocambolesca equipa a meio da temporada. Mas, rebobinando a película do argentino, para ele tudo começou com um encanto pela Europa.

Martín Anselmi a festejar uma vitória no Independiente del Valle, no Equador.
Martín Anselmi a festejar uma vitória no Independiente del Valle, no Equador. Agencia Press South

A motorizada por uma viagem a Bilbao

Nado em Buenos Aires, só podia ter nascido a transpirar futebol, condição afeta aos poros de qualquer argentino. Sem particular jeito nos pés, o talento que lhe fugiu condenou-o a lidar com “o handicap”, admitido pelo próprio, não ter sido jogador profissional. Sem esse passado, só podia inscrever-se nos cursos de treinador aos 25 anos, como tal preencheu a espera formando-se em jornalismo. Se era cedo para desenhar em quadros táticos, não o era para debitar palavras sobre futebol enquanto devorava jogos, travava amizades e acercava-se de gente que era o que ele queria ser. Tanta foi a pressa que nunca chegou a exercer a profissão.

Essa fome impeliu-o, em 2012, a fazer algo em relação ao quanto se emocionou a ver pela televisão o Athletic Bilbao de Marcelo Bielsa a devorar o Manchester United, em Old Trafford, para a Liga Europa. Ficou encantado. “Decidi que tinha de viajar para ver a final da Copa del Rey, onde essa época jogaram contra o Barcelona do Pep Guardiola”, contou. Tinha o berbicacho que afeta a maioria dos humanos, faltava-lhe dinheiro. “O problema era que para pagar a viagem tinha de vencer a minha moto, tinha de escolher.” Abdicou do par de rodas, lá foi ele, fichas todas na mesa porque também já tinha uma relação que o fazia crer que valeria a pena.

E por aqui se traça uma linha comum na história de Martí Anselmi.

O argentino viajou com uma pessoa que conhecia outra de relevo, no caso Claudio Rivas, adjunto de Bielsa, que os convidou para jantar a três dias da final da Liga Europa e “lhes facilitou” o acesso aos treinos do Athletic, onde sorveu as ideias do futebol de pressão alta e a todo o campo do hoje selecionador do Uruguai, cheio marcações individuais, sempre ligado à corrente. No ano seguinte, Anselmi formou-se como treinador, mas “necessitava da ajuda de alguém, sim ou sim”. No entretanto, dedicou-se a um negócio de impressão ao qual, por coincidência, um dos professores que tivera no curso recorria esporadicamente. Um dia Martí ganhou coragem e ofereceu-se como capataz do que fosse preciso - “para filmar os treinos, colocar os cones ou qualquer coisa que me aproximasse da minha paixão pelo futebol.”

Esse antigo professor seu, Francisco Berscé, treinava um clube da 5.ª divisão argentina e deu-lhe que fazer, porém a troco de nada. Martín Anselim deixou as fotocopiadoras à sua irmã.

Martín Anselmi tem 39 anos e, desde 2021, só foi treinador principal em três clubes de 1.ª divisão: Unión La Calera (Chile), Independiente del Valle (Equador) e Cruz Azul (México).
Martín Anselmi tem 39 anos e, desde 2021, só foi treinador principal em três clubes de 1.ª divisão: Unión La Calera (Chile), Independiente del Valle (Equador) e Cruz Azul (México). Manuel Velasquez

De conhecido em conhecido, o jovem trepou a escada do futebol que guarda mais degraus a quem não o jogou profissionalmente. Em breve, a pessoa a quem se juntara teve um pedido de Gabriel Milito, então ao comando da equipa secundário do Independiente, senhor clube na Argentina. Quis que gravassem DVDs com análises aos adversários. Daí Berscé recomendou Anselmi ao Excursionistas, da 4.ª divisão, onde se estreou como treinador principal, em 2015, nas catacumbas do futebol. “Esses rapazes foram os que mais desfrutei”, afirmaria, apesar das condições precárias.

A mulher que fez trepar árvores

Não havia onde treinar, então Anselmi dava os treinos em parques públicos onde tinha de se desviar de pessoas a passearem os cães ou pedir a personal trainers para mudarem de sítio onde puxavam pelo físico de clientes. Na coisa mais parecida com um campo que lhes servia de albergue para os jogos em casa havia muitas árvores, então improvisou. “Lembrei-me que a minha mulher podia gravar as partidas de lá, então antes de cada jogo ajudava-a a trepar a uma árvore com o tripé e a câmara de filmar”, contou ao mesmo “Coaches’ Voice”. A amostra de arborismo criou quezílias na relação que hoje os tem pais de dois filhos. “Às vezes discutíamos em casa porque ela não se sentia confortável e falhava algumas jogadas.”

Sairia desse conceito de novo a reboque, atrelado a Berscé, convidado por Milito a integrar o seu staff na equipa principal do Independiente. Fã do jogo de posição de Cruijff honrado por Guardiola no Barça, onde o antigo defesa jogara durante cinco épocas, Anselmi ficou nas sete quintas. “Vinha com muitas crenças no futebol posicional e ter trabalhado com ele abriu-me a mente para entender a pureza desse futebol. Foi como trabalhar com o Pep. Não seria o treinador que sou hoje se não tivesse trabalhado com ele”, confessou, em 2021, ao diário “AS”, já um técnico feito. Mas também não o seria sem outras pessoas.

Ainda acompanharia o seu outrora professor no Atlanta, da 3.ª divisão argentina, mas, farto das sombras, quis arriscar, aventurar-se como treinador principal.

No dia da sua apresentação no Cruz Azul, do México.
No dia da sua apresentação no Cruz Azul, do México. Jam Media

Rumou ao Equador, multiplicou-se em mais reuniões com gente da bola e não estava para aguardar por oportunidades na Argentina, terra de nervos e exigências, infértil em benevolências para quem estima treinar sem antes ter sido jogador. Anselmi invocou contactos e marcou uma conversa com Roberto Olabe, então responsável pela estratégia desportiva no Independiente del Valle, do Equador. Nessa que teve, explicou ao basco um movimento que utilizara nas suas equipas, resumindo: com bola, um médio interior baixava para junto do 6, criava um duplo pivô “para gerar espaço” e, se o lograsse, o lateral desse lado avançava para a posição de interior, onde ficaria livre; se a nesga não surgisse aí, o interior e o 6 ficariam dois-contra-um frente ao médio mais adiantado do adversário.

A tertúlia impressionou Olabe, rápido a ir acordar o seu iPad para gatafunhar lá desenhos e táticas enquanto “debatia coisas” com o Anselmi. Desse momento surgiu “nada de concreto”, escreveu o argentino, modesto na recoleção que fez do seu percurso cheio do que um servente do mundo empresarial designará como networking: teria outra reunião com Jorge Célico, diretor da formação da Universidad Católica, outro clube equatoriano, que lhe ofereceu o cargo de treinador da equipa de reservas; depois, aceitou ter o mesmo ofício no Real Garcilaso, do Peru, onde aguentou três meses. Teve de regressar à Argentina, parco em dinheiro, órfão de poiso, ficando em casa da sogra até outra boa impressão que deixara “numa conversa de seis horas” se lembrar dele.

O bate-boca com Renato Paiva

Miguel Ángel Ramírez tinha sido contratado como treinador principal do Independiente del Valle, o sinónimo de vanguardismo e futebol positivo no Equador. Conhecera Anselmi numa boa lábia intermediada por Roberto Olabe e chamou-o para ser seu adjunto. Aceitando regressar a debaixo de uma asa, conquistou a Taça Sul-Americana. “Conhecê-lo foi um antes e depois na minha carreira”, admitiu, portanto, mais um. “Aprendi a ser melhor líder e pessoa.” Pode ter sido a génese das frases inspiradores que hoje lhe parecem sair naturalmente. “Só com talento não se resolvem jogos. O talento sem trabalho é desperdício, talento com trabalho é igual a êxito”, trilhou em 2021, também ao “AS”.

Ainda foi com Ramírez para o Internacional, do Brasil, cortando esse cordão para rumar ao Unión La Calera, primodivisionário do Chile que lhe deu a estreia no futebol profissional como treinador principal - e aí inverteu os papéis, levando Francisco Berscé, seu formador no curso de treinador, como adjunto. Ao fim de quatro meses o clube não quis mais com Martín Anselmi devido à magreza dos resultados. “Quase imediatamente depois, volvei à minha casa”, descreveu assim a sua aterragem no Independiente del Valle para ser o número 1, ao falar de um retorno acidentado pela polémica que o rodeou: o português Renato Paiva, seu antecessor no cargo que largou para ir treinar o Club Léon, no México, acusou-o de armar um complô para o destituir.

Martín Anselmi fez 46 jogos no Cruz Azul, dos quais venceu 23.
Martín Anselmi fez 46 jogos no Cruz Azul, dos quais venceu 23. Jam Media

“Nem o conheço. Não sou desse perfil, não me interessa a exposição nem as batalhas públicas, nem falar mal de ninguém. Em minha casa, ensinaram-me em criança a não falar mal das pessoas, muito menos de quem não conheço”, ripostou Martín Anselmi sobre a primeira vez que se viu envolvido com rastos de portugalidade. “O nosso primeiro desejo até foi tomar um café com ele e a equipa técnica porque queríamos aprender, acreditávamos que nos podiam dar muita informação”, acrescentou à sua defesa. As bolas vindouras dispensariam tais encontros - com o argentino no volante, o Independiente del Valle ganharia a Taça do Equador, uma Supertaça, outra Taça Sul-Americana e ainda a Supertaça continental, contra o Flamengo então treinado por Vítor Pereira.

Nessas conquistas teve a ajuda de um português, Ricardo Pereira, treinador de guarda-redes que transitara da vigência de Renato Paiva.

Do Equador imitou seu precedessor, seduzido por uma proposta de um campeonato endinheirado e onde a competitividade entre as equipas é bastante nivelada. Se no Independiente assentava numa estrutura com uma linha defensiva a quatro, no Cruz Azul experimentou os três centrais. “Anselmi deu-lhe um estilo de jogo, virtuosismo, personalidade e, com frequência, mostrou uma desmesurada audácia para fazer apostas táticas para consolidar uma das poucas equipas vistosas do campeonato”, escreveu Rafa Ramos, jornalista mexicano, na “ESPN”, que pegou no elogio feito por um adepto do clube, há tempos, ao dirigir-se ao treinador: “Sentimo-nos orgulhosos de ti porque devolveste-nos uma identidade. Isso é mais valioso do que um título.”

Tal molde de generosidade pode não existir no FC Porto, onde o apetite por conquistas é insaciável. Ao Dragão chegará um treinador de vincada personalidade, sem margem para negociar um futebol para ser protagonista e abusar da bola, arriscador a ressuscitar lembranças do último treinador que esteve no clube que tinha o castelhano como língua-mãe. É o que se entende de declarações suas que deixaram rasto. “A saída curta [de trás] é a raiz de tudo” ou “vamos ser uma equipa que proponha o erro do adversário em vez de esperar que este se engane” foram frases citadas pelo jornal “La Nación” para radiografar o que lhe vai na alma futebolística.

Há outras, mais da estirpe filosofal, condignas com a imagem de Martín Anselmi: “A estratégia sem tática é um caminho mais lento para a vitória, a tática sem estratégia é o ruído que precede a derrota.” Tal como o povo que o brotou, o FC Porto vai acolher um treinador argentino que faz do futebol um livro de colorir com tiradas pensadoras, alguém cujas conferências de imprensa necessitarão de almofadas nos adeptos. Por muito que relativize a força dos resultados, Anselmi deles estará dependente para ser bem recebido.