Com Roberto Martínez, tudo parece surgir em dose dupla. Dois anos à frente da seleção portuguesa, dois empates em 28 jogos, duas derrotas no tempo regulamentar (contabilizados somente desafios de caráter oficial) e, graças à vitória de domingo, duas qualificações no currículo para a final four da Liga das Nações, ainda que a primeira tenha sido festejada com as cores da Bélgica.

Há quatro anos, quando se estreou nas meias-finais da prova, o catalão também chegou a desfrutar de dois golos de vantagem sobre a França, mas a pontaria de Carrasco e Lukaku não serviu de nada em Turim face à reação do adversário numa segunda parte que validou a remontada para 3-2.

Didier Deschamps, que por duas vezes se superiorizou a Martínez em outras tantas meias-finais (no Mundial’2018 triunfou por 1-0), pode voltar a encontrar Portugal em Munique, bastando-lhe para isso eliminar a Espanha e esperar que Ronaldo e companhia ultrapassem a Alemanha.

Face ao sucedido nos quartos de final do último Europeu, quando o onze das quinas caiu nos penáltis diante da França, nada seria tão reconfortante para o selecionador do que repetir o feito de Fernando Santos em 2019 e assim tirar o máximo partido da substituição fotografada para a posteridade aos 81 minutos do duelo com a Dinamarca.

Com dois Franciscos à disposição, resolveu trocar Conceição por Trincão e este respondeu com dois golos, revelando-se essencial na goleada que acabou por ser selada em tempo de prolongamento e que compensou a atuação da equipa em Copenhaga, quase toda ela tão desastrada em campo quanto o treinador na sala de imprensa.

Logo na antevisão do confronto da primeira mão, Roberto Martínez conseguiu dizer que Vitinha era “o melhor médio da Europa”, despejando um balde de gelo sobre a cabeça de um Bruno Fernandes que tinha acabado de escrever história no Manchester United e na Premier League com novo desfile de golos e assistências.

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Sem estar em causa o direito que lhe assiste em qualificar e opinar sobre qualquer futebolista, o facto de se ter expressado no espaço público e sobretudo na qualidade de selecionador acaba por tornar inconcebível a declaração, devastadora num balneário que aceite a tese de que todos são iguais a todos. Sob o princípio de que aquele que assina as convocatórias, por si, já está a fazer a filtragem das filtragens, a hierarquização dos soldados condena o espírito de grupo, reacende as batalhas dos egos e desce a um nível de imprudência e precipitação que apenas encontra paralelo com a tentativa de patentear a harmonização da dupla Vitinha-João Neves, o par que há três dias voltou a não ser visto na pista de dança de Alvalade.

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TIROS E QUENDA

A estes tiros nos pés pode juntar-se a incoerência revelada pelo homem do leme quando quis anunciar e justificar a titularidade de Bernardo Silva depois de ter dito o que disse sobre a “internacionalização zero” de Geovany Quenda. Como se fosse necessário dar explicações sobre a inclusão entre os titulares de um jogador à beira das 100 internacionalizações, Martínez usou esse acontecimento para fundamentar a decisão, esquecido de que o sonho de Quenda (o mais jovem de sempre a atuar na seleção A) tinha ficado antes na gaveta porque as decisões não podiam ser tomadas à luz de uma obsessão pelos recordes.

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A essência daquilo que com toda a legitimidade tinha sido avançado para desdramatizar a ausência do novo reforço do Chelsea na deslocação à Croácia perdeu sentido no dossier-Bernardo Silva, como se o atleta do Manchester City ficasse privado de um número redondo na mera condição de suplente. De início ou no papel de arma “secreta”, ninguém seria capaz de apagar as 100 velas na folha de serviço de Bernardo, ainda por cima num contexto em que os elementos vindos do banco reivindicaram indiscutível protagonismo.

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O estranho das recentes exibições do selecionador na sala de imprensa é que o mesmo, por mérito próprio, desde que chegou a Portugal, tem revelado uma educação e mestria no plano comunicacional que fazem corar de vergonha aqueles que são incapazes de se inspirar no cavalheirismo e na postura de Martínez. Seria injusto e de uma imperdoável indecência passar por cima dos louros que devem ser reconhecidos a alguém que também desde a primeira hora se entregou à aprendizagem da língua portuguesa e nesse campo consegue igualmente dar lições a outras personagens.

Nenhum destes predicados pode ficar esbatido à sombra de um diferente género de críticas que o cativante Roberto tem merecido ao longo destes dois anos, a última delas, por ironia, traduzida na negação do direito ao “debate” sobre a seleção e... às “críticas ao selecionador”.

Trata-se de um exemplo de irredutibilidade que para ser disfarçado vai exigir um grande milagre cosmético. Para amenizar a tirânica sentença proferida a abrir o rescaldo do Portugal-Dinamarca não será suficiente voltar a alegar um lapso linguístico extraído do dicionário Tomás Araújo.

Exige-se outra coisa. Ninguém está acima do debate ou da crítica e só assim faz sentido emprestar a voz para cantar o hino. Sentir-se como um igual entre milhões e sentir a Pátria subir pela garganta é algo que não pode ser duplicado num concurso de karaoke.

Dois anos em Lisboa e duas seleções depois, Roberto Martínez devia levar isto à letra.