Foi um sinal matutino o facto de Alcaraz se rir ao de leve, um ténue puxar do lábio para cima, ao estatelar contra a rede uma tão acessível bola devolvida à rasca por um Djokovic com envergadura de albatroz. O espanhol, por costume de sorriso fácil na cara dos erros, sorria só um coche, um pequeno esgar, perante uma borrada de todo o tamanho ao desperdiçar um ponto feito no seu serviço inaugural do jogo e falhando a quarta pancada de direita seguida. Seria de esperar no espanhol, porque assim nos habituou, um espreguiçar sem vergonhas dessa leveza em vez do ligeiro ‘hihi’ combinado com um preocupado olhar dirigido ao canto onde estava o seu treinador. O arranque da ocasião punha-o nervoso.
Provocado pelo sorteio e o não muito famoso ranking com que Novak Djokovic aterrou na Austrália, este ano sem peripécias, a madrugadora colisão logo nos quartos de final dos rivais com uma geração ou duas a separá-los começou acidentada para o espanhol, cheia de buracos, mas alisada do lado do court do sérvio. Sereno no seu jogo, consistentemente a jogar no seguro de bolas postas junto aos pés do florido pela juventude, quebrou-o à primeira oportunidade e ele sim leve que nem uma pluma, aplaudiu o único ponto fabuloso, fechado com um amorti de veludo à Alcaraz, que saiu das algemas do nervosismo inicial do espanhol.
Centrando-nos nesse ponto, a pressa em satisfazer a estima por mais um duelo entre os dois tenistas, o oitavo entre eles e o terceiro num Grand Slam, precipitaria o julgamento de que este jogo seria da estirpe de todos os anteriores, especialmente o último, em Paris, na final olímpica onde Roland-Garros extraiu o melhor de ambos até à derradeira e ínfima gota de suor. No primeiro set, apesar do break cedo devolvido por ‘Carlitos’, da frescura das pernas de Novak para aceder aos convites para correrias à rede e atrás de bolas, dos ocasionais foguetes descolados da raquete do espanhol para fechar pontos, o encontro não escalava aos picos de outras jornadas.
Sem que a invisível corda a ligá-los no absurdo talento os aproximasse muito à rede, Alcaraz apenas fez do seu instrumento uma faca de cortar a bola quando servia para o 4-4, demorado a encetar outro ponto à sua maneira, preso na sua estranha hesitação a arriscar como é seu apanágio.
O submetia-se ao fundo do campo, a trocar martelos com Djokovic, era obrigado a esforços pelas esquerdas cruzadas do sérvio, que se mantinha mais perto da linha do que o adversário a querer aguentar o ritmo, a trincar o tempo que o rói mais a ele porque é a vida, a mesma que neste Open da Austrália o tem visto a regressar a anos idos, mais refilão e conflituoso, arisco com os imponderáveis exteriores como pessoas no público a provocá-lo, piadas foleiras de jornalistas australianos ou a dizer que sim senhor, apoia uma tenista que espicaça adeptos que a apupam e assobiam. Quando, no 4-4, o sérvio não alcançou o tal amorti de Alcaraz, o berro que soltou parecia outro sintoma da insurreição de Djokovic contra o mundo, mais uma tentativa de ir buscar algo mais na bolha de concentração usando outro estímulo de revolta.
Mas, logo a seguir, o contrário se viu, mesmo com a sua contrição em manifestar sinais que os adversários possam detetar, Novak emanou ligeiros gestos de dor, pelo menos de desconforto. Algo o apoquentava numa das pernas, ele agachou-se e curvou-se. Carlos farejou o periclitância. Acentuou mais ainda a potência do serviço no qual se dedicou a trabalhar na pré-temporada, fez por encurtar as trocas de bola que antes quis prolongar para tramar o sérvio e conseguiu apanhá-lo assim, roubando-lhe outro serviço. E ao fechar o primeiro set (6-4), viu quem o supera na idade em quase 16 anos a recolher ao balneário para um médico atentar à sua perna.
Era um tempo para o espanhol evitar pensar demasiado em quem tinha do outro lado da rede, como referira antes do jogo, mas, no que toca aos humanos mais terrenos e como tantas outras vezes, fazer contas ao próprio tempo. Um que tivera os 21 anos de Alcaraz sete horas e quarenta e cinco minutos em ação em Melbourne, bem menos do que as onze horas dos quase 38 calendários riscados por Djokovic, o tempo pesa, igualmente como as manigâncias que os gestos pregam nas mentes, isso também conta e quando o sérvio regressou com parte da perna esquerda presa por uma ligadura, pode ‘Carlitos’ ter pensado que haveria ali fraqueza.
Mas isto com Novak Djokovic nunca se sabe.
Nem nunca ninguém saberá como o pagode dos Grand Slams, quando debilitado, neste caso aparentemente a custar-lhe movimentar-se para o lado direito, com o jogo de pés preso nas hesitações impostas pela dor nos circuitos nervosos que saem da cabeça para ordenar o corpo, é capaz de suster um nível que em Melbourne lhe permitiu voltar a roubar cedo o serviço a Alcaraz, chegando ao 3-0 com maior risco no seu jogo. Djokovic avançada à rede com maior frequência, ousava no serviço-volley, refugiava-se na sua esquerda para colocar pressão, tentava meter a bola a beijar as linhas logo à segunda ou terceira pancada.
Só que pronto, tudo no sérvio é envolvido por uma camada de secretismo, penumbra até estendível à box da Rod Laver Arena onde, mal o jogo arrancou, um membro da sua equipa técnica tapou com a câmara sempre posta diante do canto de cada um dos tenistas. Não queriam que se visse as suas reações, embora as de Djokovic fossem perceptíveis à vista desarmada. Bastou Alcaraz, no 1-3, ir refilar inocentemente com a árbitro por ter comunicado um toque da bola na rede no serviço “cinco segundos depois” para ser o espanhol a despertar-se com uma pequena revolta. Devolveu o break pouco depois, defendeu-se de seguida dessa ameaça com outro - e raro - amorti dos seus, o tenista que os usa para fazer mal e não como recurso que o defenda do mal dos outros.
Seria um mero fogacho da espetacularidade da extroversão em pessoa que é ‘Carlitos’, o tenista anti-molde, o mais fora da norma que hoje há, apetrechado de músculos destapados pelo equipamento sem mangas, mas ainda tão jovem, bem vistas as coisas ainda tão precoce apesar das já tantas conquistas, permeável às truculências mentais que podem explicar a forma como se encolheu na cara de uma suposto condição vantajosa. Frente ao debilitado Djokovic, maltratado pelo físico, o espanhol pareceu de braço preso, indisposto a arriscar, a tentar impor ao sérvio o que lhe faria um desserviço, que era pô-lo a correr no court.
O espanhol, contudo, municiou Novak com bolas serventes, apontadas para o seu raio de alcance, sem o obrigarem a grande bailado de pés ou jogo de movimentos lateral. Agradecido pela gentileza, Djokovic acentuou a sua procura por dar vida curta aos pontos, disparando winners lá de trás para quebrar o saque ao hesitante Alcaraz e levar o segundo set (6-4). Mesmo limitado por uma mazela, despojado da totalidade das suas capacidades, o sérvio era capaz do que só um alinhamento dos astros coloca no horizonte da maioria dos outros tenistas. Ajudado pela temerária versão do adversário, a sua aura não sentia a lesão.
Igualados nos parciais, não na desenvoltura do físico, custou ao espanhol livrar-se das próprias amarras. Notou-se a vontade em querer acelerar as trocas de bola, em dar corda às suas estrondosas direitas que atacam de todo o lugar, quis Carlos pressionar a lenda, acrescentar-lhe desconforto, só que o devorador de fraquezas alheias não concedia um milímetro além do que a enfaixada perna o obrigava a dar de barato. Os melhores pontos da partida apareceram no terceiro set, mais rasgado e a querer ter maior aparato, houve um break de Djokovic seguido do mesmo troco de Alcaraz, houve faíscas de um fogo a ser ateado no ardente espanhol que, uma e outra vez, saído de um ponto escaldante, desaproveitava os pequenos ímpetos.
Em cada má decisão ou precipitação do espanhol houve o frio do sérvio, impávido com a sua compostura, a aguentar-se até nas trocas de bola mais longas - os efeitos da medicação, explicaria já de madrugada, atenuaram as dores - e a prevalecer no ponto com 22 pancadas com que quebrou novamente o intermitente ‘Carlitos’, ali a justificar o seu diminutivo, diminuído em estabilidade no seu jogo perante um Djokovic que encostava um dedo à orelha para amplificar o seu ouvido na ovação que o público lhe prestava. Pouco tardou a repetir a ousadia, ou talvez a justificada petição por reverência, quando fechou o set (6-3) num ponto em que socorreu bolas no fundo do court, acorreu à rede, depois a bateu em retirada na perseguição de um lob, dando à perna como lhe parecia ser complicado dar.
E Alcaraz ria-se de novo, agora demasiado leve.
Porque ligeiro estava o seu jogo, obrigado a arriscar e vetado a caçar a liderança dos pontos, mas erróneo no que lhe é tão elogiável por ser sua característica - no risco. A fúria do espanhol precipitava-o a tentar pancadas triunfais de qualquer parte, vinda a bola nas circunstâncias que viesse. O mundano habitual em Carlos Alcaraz era-lhe complicado de conseguir diante este Novak Djokovic, cujo relativo modo poupança de energia elevou a minúcia nas pancadas do sérvio, implacável a colocar a bola nos lugares mais complicados para o adversário, felino a aplicar golpes.
Igual aos anteriores, o quarto parcial arrancou com o sérvio a roubar o serviço do incauto espanhol, a parecer incrédulo até quando fez aterrar uma bola exímia, a bater mais fora do que em cima da linha, aguentando a postura que nem estátua para lá da confirmação da juíza de cadeira. Quando alcançou, cheio de esforço, uma bola no canto do campo, respondendo a uma esquerdaça de Alcaraz com um balão que lá fez bater perto da linha, fez o 3-1 com a pancada que o espanhol, à meia volta, fez aninhar na rede. Aí foi Djokovic a rir, com um sorriso malandro fitado no adversário, a regozijar-se com a alguma sorte que protegera o mais sábio entre eles.
O mais totémico também, mesmo que inconscientemente e sem intenção será a espécie de veneração, ou no mínimo o tremelique cénico, que os adversários sentem na presença do sérvio a tramá-los. Às tantas a barafustar consigo próprio nas várias bolas acessíveis que batia para lá das fronteiras do court, Alcaraz teve períodos longos de desacerto: o seu bruto primeiro serviço, a querer ser um martelo de potência, poucas vantagens lhe dava se replicado no segundo, em contraste com a colocação privilegiada por Djokovic, exímio a definir a mira sobretudo das suas segundas tentativas (ganhou 58% desses pontos, contra 33% do espanhol). O jeito sobrepunha-se à força.
Mas as impressões nem sempre ganham. Quando as vantagens no serviço de Alcaraz lhe sorriram, tão perto de poder fazer um 5-2, o sérvio foi quem cedeu no ponto com 33 vaivéns de bola, ele calado e o espanhol a grunhir, para acabar a rugir impropérios rumo à sua box enquanto ‘Carlitos’, de rastos, se ria encostado à sua, onde a troca de pancadas o levou a acabar, não inocentemente já que o treinador Juan Carlos Ferrero sussurrou-lhe coisas ao ouvido enquanto o espanhol mostrava a sua dentadura completa. Fora uma direita demasiado longa a trair Djokovic, sôfrego nas trocas de pancada mais longas que finalmente o tenista de El Palmar arranjar forma de prolongar.
Foi neste set que Alcaraz mais próximo esteve da constância no seu ténis, sem acepipes de pancadas espetaculares a serem tentadas a prejudicar o desfecho dos pontos. Quase roubou o serviço a Novak, pressionando-o e sendo agressivo nas respostas, vendo o sérvio a estatelar-se no chão ao tentar salvar uma bola. O poder era seu, a brutidão sua propriedade, as mãos nos joelhos a descansar entre contendas mais duradouras pertenciam ao tipo que já vê os quarenta de perto. A partida era visitada por pistas de que as forças do ímpeto poderiam lentamente estar a mover-se.
Seriam sintomas não confirmados, indícios efémeros de um despertar tardio. Mais não vez Carlos Alcaraz do que adiar o inevitável, o 6-4 determinou a vitória de um Novak Djokovic “com uma perna e meia e dois braços”, brincaria o sérvio na entrevista ainda no court, brincalhão e a puxar de um humor para o favorecer. O sérvio puxou o lustro ao jogo que gostava que “tivesse sido a final”, pudera, porque tal exibição lhe daria então o 11.º título que procura na Austrália, onde o espanhol mantém a sua desavença: nunca superou os quartos de final no primeiro Grand Slam do ano. Mais longe estará de selar na sua cabeça um método para afrontar tudo o que implica jogar contra Djokovic, o comilão de hesitações, ainda faminto por devorar quem o quer destronar.
O sérvio acabou a rir em campo, feliz da vida. No balneário, já a pedalar na bicicleta estática para recuperar ativamente as pernas, Alcaraz também sorriu quando Andy Murray, agora treinador do polvo do ténis, o foi cumprimentar. A leveza tem várias caras.