É impossível contar a cerimónia de encerramento dos Jogos Olímpicos Paris 2024 sem mencionar que, à entrada para a parte final do acontecimento, o desporto nacional foi abalado com uma triste notícia. A morte de José Manuel Constantino chegou ao Stade de France como um luto que, na ótica portuguesa, impede que se conte o que aconteceu em Paris sem ter esta nuvem negra como ponto de partida e de chegada do relato.
Mesmo no final dos Jogos, dos Jogos que, apesar das dificuldades, da falta de financiamento — que atletas acham que existe e, pelos vistos, algumas pessoas no COP não tanto — e dos problemas estruturais do desporto português foram os melhores Jogos de sempre para as cores nacionais, o falecimento do homem que, há 11 anos, liderava o COP é uma perda profunda para o olimpismo nacional.
Indiferente a este contexto, o qual é, obviamente, desconhecido para 99% das pessoas que estão no Stade de France, a cerimónia de encerramento cumpriu os rituais habituais. Houve luzes e música, fogo de artifício, tochas olímpicas apagadas, atuações espampanantes e discursos previsíveis e aborrecidos.
Au revoir, Paris. Hello, Los Angeles. A passagem de testemunho está feita. E que maneira mais visualmente evidente de marcar a troca de ciclo.
Numa parte da cerimónia, quando os Jogos se despediam de Paris, houve Charles Aznavour cantado em uníssono pelas bancadas, houve imagens da Torre Eiffel, houve a procissão de recintos colocados na Praça da Concórdia ou em Versalhes sendo mostrados nos ecrãs. Houve aquele toque mais presente ao longo destes Jogos, aquela dose da Paris-postal, da cidade que quis evidenciar a sua beleza e esplendor clássicos.
Na seguinte, welcome to Hollywood. Tom Cruise apareceu a voar pelo estádio, aterrando no meio do palco, para depois sair dele de mota e aterrar num qualquer aparelho voador sobre Los Angeles. Aparecerem praias, longas avenidas de casas com jardins. Adeus ao Sena, olá ao mar.
Na primeira parte da cerimónia, León Marchand de fato, com a tocha olímpica no centro de Paris, andando solenemente. Na segunda, Tom Cruise a fazer coisas radicais, descendo por colinas sempre naquele jeito apressado, e pessoas na praia cantando Red Hot Chili Peppers e Billie Eilish de calções.
Na primeira parte da cerimónia, Snoop Dogg em Paris, a constante destes Jogos. Na segunda parte… Bem, isto não mudou. Snopp Dogg em Los Angeles, Snopp Dogg como figura dos Jogos enquanto tem o grande mérito e qualidade de saber fazer bem de Snopp Dogg.
O ponto final dos Jogos começou com León Marchand. Claro que começou com León Marchand. O fenomenal nadador foi o grande ícone francês dos Jogos, o homem que esmagou algumas dúvidas ou reticências que os parisienses poderiam ter quanto a este grande concerto mundial que, literalmente, lhes colocou barreiras para entrarem no seu bairro, para voltarem a casa depois do trabalho.
León agarrou em todas essas questões e, nuns dias frenéticos e gloriosos na piscina, trouxe à tona o orgulho francês, casando na perfeição a narrativa dos Jogos que projetam a imagem de Paris com os Jogos que louvam a grandeza de la France. Marchand, o magnifique, foi o impulso que os gauleses precisavam para tornarem, definitivamente, estes Jogos nos seus Jogos.
Depois do começo da cerimónia nas Tulherias, com Marchand a recolher a tocha olímpica da pira onde estava, a ação passou para o estádio, dando entrada aos atletas.
Quando a longa parada de desportistas se deu, houve minutos em que, mergulhados nesta bolha do Stade de France, parecia ser possível acreditar em toda a concórdia e amizade e paz e bondade no mundo. Quando as bandeiras do Paquistão e da Índia se cruzaram no desfile, quando os atletas da Coreia do Sul e do Norte passaram uns pelos outros, a fantasia irrealista que o Comité Olímpico Internacional está sempre a repetir, o discurso dos “jogos sem política e com amor”, tudo isso deu ares, por minutos, de ser verdadeiro.
Quando se ouviu no estádio o omnipresente “Freed from Desire”, as delegações chinesa e norte-americana estavam lado a lado e atletas de ambos os países saltaram em conjunto. Quando o “We Are The Champions” deu a altos berros, com milhares e milhares de pessoas de todo o mundo cantando-o abraçados, dava mesmo a ideia de que esta bolha olímpica era real, que daqui sairiam as soluções para todos os males do planeta, a conclusão de todos os conflitos.
Depois olhavas para a delegação de Taiwan e vias que, aqui, Taiwan é China Taipei e não pode, sequer, ter direito à sua bandeira. E voltavas à realidade, à dura realidade, à política, sempre a política e a vida real entrando, inevitavelmente, nos Jogos, porque os Jogos são política e vida real e a política e a vida real são os Jogos. A realidade está aqui, a realidade lembra-nos que as tensões e imposições da vida real vivem aqui.
Mas, por instantes, esta paz e cooperação parece genuína, os sorrisos partilhados, a alegria, o eriçar da pele ao cantar em coro o “Les Champs-Elysées”. Se os Jogos Olímpicos não servem, também, para nos transportar para esta bonita ilusão, para este sonho partilhado, servem para quê?
Na parada de atletas, Portugal teve como porta-estandartes os medalhados Iúri Leitão e Patrícia Sampaio. A judoca deu o primeiro pódio para Portugal em Paris 2024, honrando dignamente a grande tradição do judo nacional nos últimos Jogos; o ciclista tornou-se, em 48 horas, um dos três melhores olímpicos da nossa história, o grande herói inesperado desta campanha.
A dado momento da cerimónia, a notícia triste da noite ter-lhes-á, também chegado.
Um dos momentos altos da cerimónia marcou um contraste com a abertura. A dado momento, antes da passagem de testemunho para LA, os atletas aproveitaram uma interrupção de concertos para invadirem o palco. Milhares e milhares de desportistas correram, espontaneamente, para lá.
Depois das críticas à falta de protagonismo dos atletas na cerimónia de abertura no Sena, ei-los reclamando o lugar principal que, sem dúvida, é deles. O sistema de som do estádio pediu, "carinhosamente", para que os atletas abandonassem o palco. Sem êxito, estes acabariam a saltar e a cantar ao lado, à frente a atrás de Phoenix, durante a atuação da banda francesa. Thomas Mars, vocalista, acabou levado em ombros por norte-americanos.
Para concluir, veio a tradicional passagem de testemunho. Nos instantes derradeiros da cerimónia, Los Angeles 2028 mostrou ao que virá: vibes, cultura dos Estados Unidos, star system, estrelas. Música para todos os gostos, Michael Johson a correr, Snopp Doog a cantar. E Tom Cruise a fazer coisas.
Uma das últimas imagens que se viu nos ecrãs gigantes do Stade de France foi o estádio olímpico de Los Angeles, apontando já para daqui a 4 anos. Naquele estádio, em 1984, Carlos Lopes tornou-se no primeiro campeão olímpico português, numa maratona épica, página maior do desporto nacional. Uma imagem, uma lembrança, uma memória que, certamente, teriam feito José Manuel Constantino, grande homem do olimpismo nacional, sorrir.