
No Football Manager, ou no Championship Manager de outrora, para os mais antigos, era comum no simulacro de futebol inventado para computador irmos inspecionar a lista de futebolistas desempregados a cada janela de transferências. Afinal, aquilo era um videojogo, e escrevo no plural porque chamar-lhe jogo será eufemístico, muitas vezes aquilo era um vício precisamente por ser uma simulação da realidade que caso precisássemos era fácil contratar um desses jogadores sem clube, colocá-lo a titular na nossa equipa e vê-lo logo a render em quantidade de golos, assistências, desarmes, sprints. Era fácil tudo bater certo.
Imerso no seu pantanal de dificuldades financeiras, tentando manter a cabeça à tona, pelo menos as narinas que lhe permitam respirar, o Boavista preencheu o seu carrinho de compras, neste fevereiro, com 10 tais jogadores já após o fecho do mercado invernal. Todos eles desempregados, uns com nome a ressoar nos tímpanos mais do que outros, os axadrezados entraram na Luz com metade dessas tentativas algo desesperadas de encher de oxigénio as boias salva-vidas, compactadas em três centrais, uma linha defensiva de cinco e numa equipa remetida à sua área sem a bola. Recuados, juntos e compactos, assim tentou Lito Vidigal aguentar um coletivo retalhado.
Não fosse o contexto paupérrimo de um clube parco em dinheiros, que teve salários em atraso esta época após várias janelas proibido de inscrever jogadores, era condizente afirmar que o Boavista se apresentou ao Benfica fiel a trabalhos passados do seu treinador. Mais justo é retratar que apareceu com uma colagem das suas próprias sobras, dos restos de precariedade a que gestões desmioladas vão obrigando uma equipa a fazer o que pode. E o possível, de momento, é resistir. À segunda partida no cargo, o 3-4-3 no papel de Lito Vidigal aguentou-se até à mesma estrutura no Benfica improvisar um bocadinho com os seus recursos incomparáveis.
Foi, no fundo, quando Álvaro Carreras se deixou de cerimónias e se soltou. Posto a central pela esquerda por Bruno Lage a aproveitar o abismo entre as turmas para testar, mais uma vez, uma linha de três na base da equipa, Belotti teve um tímido remate na primeira vez que o espanhol avançou, aos 18’. A partir daí, a sua química com o outro canhoto posto a fazer a ala, Sven Dahl, e a esperteza do desequilibrador inato que é Bruma, deram ao Benfica aproximações diversas à área. Numa incursão pelo centro-esquerda, Carreras descobriu um passe em Amdoni, que com uma receção orientada ilustrou o buraco negro de diferenças no relvado da Luz: livrou-se com um só toque de Sidoine Fognini, um dos desempregados contratados pelo Boavista que na última temporada jogava nas distritais do Porto.
O acentuado contraste entre os proveitos da ida às ‘compras’ seguiria. Andrea Belotti, um campeão europeu com a Itália em 2021, foi quem marcou o primeiro golo (28’) por generosidade de Bruma, feito o melhor assistente do campeonato e comprado ao SC Braga por €6,5 milhões, após se livrar de Vitalii Lystsov como faca quente a perpassar manteiga deixada fora do frigorífico em noite de verão. O defesa russo, pesado e duro de rins, jogava o ano transato na segunda divisão, em Leiria e foi outro dos ex-desempregados inscritos pelo Boavista, além de Tomás Vaclík, o guarda-redes contratado nos mesmos moldes que viu o novo avançado italiano do Benfica ainda a desviar um cruzamento contra o poste e a rematar outro, com estilo, pela relva, arrancando-lhe uma árdua defesa.
Incapaz de ligar quatro passes seguidos, sem armas nem uma estratégia que se espreguiçasse um pouco e, ao menos, lhes desse um ou outra bala. o Boavista raramente cruzava a fronteira da linha do meio-campo. Pior ficou no regresso do intervalo. Um dos seus melhores, com já vários anos a subsistir às agruras do Bessa, o incauto Miguel Reisinho cravou a sola da sua chuteira na canela de Kökçü e foi expulso, aos 52’, condenando a equipa à penúria mais do que ao sofrimento.
Na liturgia oposta, o Benfica esparramava-se numa circunstância que lhe dava jeito. Afetada por várias lesões, de novo com equipa algo feita por desabituais titulares, os encarnados foram juntando Bruma e Amdouni entre linhas, o primeiro a serpentear com dribles nos espaços curtos, o segundo ávido por armar um pé ou outro para rematar em força. Ambos tiveram os seus pontapés, à semelhança do italiano que joga com uma ligeira mochila no topo das costas, desamigado dos golos em anos recentes. Desastrado numa das tentativas, Belotti viu Tomás Vaclík a barrar o outro com mais uma defesa vistosa.
Quem emergiu do calvário de tormentas do Boavista, na verdade o único a vir à tona quando a Luz se apagou, seria o checo de luvas postas. Em tempos vencedor da Liga Europa com o Sevilha, com mais de meia centena de internacionalizações e dois Europeus jogados pelo seu país, só o guarda-redes manteve a equipa à margem de uma goleada das antigas. Saiu à corrida de Bruma, lançado por Belotti, para dar o corpo ao seu bruto remate, tendo ainda maior valentia depois, ao esticar-se todo e salvar com algum espetáculo uma recarga de Aktürkoglu na pequena área. Vaclík fez 11 defesas, seria eleito o melhor em campo.
Com a equipa moribunda, apenas a fazer o que um ocasional relaxamento do Benfica lhe permitia, nada pôde Tomás Vaclík, contudo, frente a tantas veleidades de um Boavista em retalhos. O extremo turco dos encarnados assistiu, com um curto passe, o golo de Pavlidis (70’), ambos entrados no jogo em simultâneo para fabricarem um golo na primeira intervenção no jogo e com pré-assistência de Kökçü, encarregue de converter um penálti não muito depois (78’). Mais do que confortável no jogo, o Benfica não precisava de acelerar muito o ritmo para machucar um dócil adversário.
Os encarnados nunca se abstiveram de aproveitar uma oposição deste tipo, um encontro com estas particularidades alheias. Se não tinha que carregar no pedal e cair nos ataques com tudo, puxando dos seus na intensidade, o Benfica escusou-se a fazê-lo ao sentir que o resultado era seu. Continuou a atacar, os cercos à área contrária não cessaram, a bola era umbilical em certos pés. A equipa não quis, nem precisava, espezinhar um corpo frágil, a agarrar-se à vida.
Bruno Lage lançou Nuno Félix e o estreante Diogo Prioste, par de miúdos para tomarem conta do meio-campo. Arthur Cabral teve convivência com Pavlidis. Os serviços mínimos foram esperando pela andadura do relógio, capatazes dessa simples missão em cumprir a tarefa. Com menos um e menos tanta coisa, mesmo um Boavista assim ainda aproveitou a moleza, vendo o adolescente João Barros, da esquerda para dentro, rematar uma bola em arco para Samuel Soares mostrar no jogo do que era guarda-redes. Já nos descontos, irrisório na tentativa, Rodrigo Abascal tentou um golo de antes da linha do meio-campo, nem assustando sequer o maior dos hipocondríacos futebolísticos no estádio.
Em ação já estavam, também, Steven Vitória e Abdoulay Diaby, o sexto e o sétimo jogadores sem emprego até há coisa de uma semana. Fora do campo, o Boavista tem feito por parecer um clube de simuladores e videojogos, um caos de gestão institucional que agora experimenta, na realidade, o costumava resultar no computador. Uma equipa envolta neste estado de coisas conveio, por estes dias, a um Benfica envolto em lesões e intermitente nas exibições. Nesta jamais esteve, o que é a melhor das novidades para os encarnados que foram para debaixo dos lençóis descansar com a provisória liderança do campeonato.
Em padrão axadrezado, os lençóis nunca estiveram tão maus.