Ainda a vastas semanas do jogo do Jamor e já a angústia se instalou. Uma coisa espessa, negra, que espicaça o ânimo, murcha a boa disposição, rói-nos a vontade de comer. Como se tivéssemos engolido um gato-bravo, e o bicho, ensandecido, nos arranhasse as entranhas com as unhas. O leitor perguntar-se-á — e bem— qual a tonitruante questão que atormenta o escriba. Pois respondo, desesperançado e sem pudor: os bilhetes, amigos. Os bilhetes!

Para um benfiquista empedernido como eu, esfomeado por uma tarde no Jamor, é caso para tanto. Oito anos! Oito longos anos que parecem oito séculos; e aquele jogo contra o Vitória de Guimarães já é arqueologia. Mas é preciso bilhetes. E não há bilhetes no horizonte.

Ligo ao amigo que normalmente sabe destas coisas, mas ele é o espelho da derrota: — “Nada. Vai ser a confusão do costume. A menos que me caia um nas mãos, não irei…”. Como assim? Quem o lança? De que alto? E que assomo místico é este de um homem que nunca leu um Evangelho? Responde-me: — Esta história dos bilhetes está a tornar-se numa coisa sem explicação. Passou a ser impossível comprar bilhetes para jogos fora se não fores de claques ou se não meteres uma cunha.”

Mas não sou homem para morrer de joelhos. Nova chamada. Ao amigo advogado. — “Ui... isso agora! Primeiro é Red Pass com assiduidade, depois é (...)”. Seguiu-se a leitura integral — e dolorosa — do vasto compêndio de precedências. Uma lista mesquinha. Uma lista cretina. Uma lista que, se fosse pessoa, merecia ser apedrejada na praça pública. E o desejado bilhete tornou-se dourado. Como o do Willy Wonka. Mas não há chocolate que chegue para todos: apenas trinta e sete mil, quinhentos e noventa e três eleitos, contados um a um, sem contemplações.

Hoje, até o futebol exige a santidade dos burocratas. Já não basta ser, já não basta mostrar: é preciso que a prática da virtude esteja gravada, em sangue e fibra de carbono, nas bases de dados da Federação Portuguesa de Futebol. Já não basta a fé ingénua que fazia um homem dormir no chão, com marmita e saco-cama, para ser o primeiro da fila. Não. É preciso ser sócio. E não apenas sócio: é preciso pagar lugar anual. E não falhar o jogo como quem cumpre os Dias de Guarda.

A burocracia saiu das páginas de Kafka e tomou-nos todos os recantos das nossas vidas. Instalou-se nos sistemas de bilhética. E decretou-se uma verdade nova, tenebrosa: o futebol pertence ao adepto bem-comportado. Ao cidadão exemplar. Ao que nunca falha. Mas quem nunca falha? Então e os bêbados? E os poetas? E os vadios, os infiéis e os estroinas? E eu? Esses, caro leitor, esses somos nós. E estamos de fora. Tristes, sozinhos, etc.

Os outros — os bons — resignam-se. Cumprem. Acumulam pontos no cartão de fidelidade, como almas piedosas a coleccionar indulgências. Obedecem com trágica passividade. Reféns dos seus tecno-carcereiros. A paixão tornou-se regulamento. A paixão tornou-se cadastro.

Houve um tempo em que ir à bola era querer. Bastava querer. As crianças nem pagavam. Bastava encostarem-se a um adulto com cara de pai e lá iam. Esgueiravam-se lá para dentro com a graciosidade de um Bernardo e Bianca. Os estádios eram imponentes, sim — mas a sua grandeza era feita dessa multidão imperfeita que o próprio jogo reflectia. O Papa morreu, e se pudesse diria: “Era de todos. Todos. Todos. O futebol era de todos.” E seria verdade. Chamávamos casa a esses lugares. Não por protocolo. Mas porque eram, realmente, o lugar para onde regressávamos ao Domingo à tarde.

Hoje essa ligeireza acabou. Agora, para ver os seus, um homem tem de atravessar as vagas de um oceano tecnológico: a app, a palavra-passe, o código, a luzinha verde do torniquete, os seguranças empedrados no cumprimento das normas.

E ainda poderia ser pior? Poderia e é. Sabe o que é preciso para ter um lugar no Estádio da Luz? Não queira saber. É uma obscenidade capaz de corar o rosto do cadáver de Cosme Damião. Sabia que até se paga para constar numa lista — outra — de pobres-diabos que apenas garante o direito a esperar?

As regras, as listas, os registos, as precedências (e os preços, os preços!) transformaram o futebol num espectáculo de ricos. Uma coisa segura, asséptica, domesticada. Chamam-lhe “experiência”. É lamentável. Estamos em fuga. Um povo perdido, sem Moisés, nem terra prometida.

Hoje, os verdadeiros estádios são os cafés. As salas-de-estar. Os automóveis. Os becos e as cozinhas. Qualquer sítio onde dois ou mais possam ver ou ouvir o jogo sem que lhes exijam NIF, folha salarial ou certificado de boa conduta. Mas, se alguém arranjar três bilhetes para o próximo dia 25 de Maio, estou disposto a reconsiderar tudo o que escrevi.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.