“Acho que há uma pureza que ficou evidente na forma como o Martín acabou por discutir o jogo. Espero que não tenha dado muitos segredos”.

A fechar a conferência de imprensa de apresentação do novo treinador do FC Porto, André Villas-Boas expressava a ideia geral que ficou após os mais de 30 minutos de estreia de Martín Anselmi com microfones à frente em Portugal. Com vontade de verbalizar, com respostas longas, abordando vários temas, ou, como também disse o presidente dos dragões, pronto para teorizar acerca “dos mistérios do jogo”, acerca dos quais “os argentinos gostam de discutir, de falar, de filosofar”.

Assinado contrato até 2027, o técnico de 39 anos, que promete aprender português, agradeceu a confiança de Villas-Boas, prometendo “construir uma equipa que represente os portistas”. Ainda assim, havia uma nuvem de polémica a rodear a introdução de Anselmi.

Os últimos dias ficaram marcadas pela polémica vinda do treinador. Já depois de Villas-Boas ter confirmado que o argentino era o eleito, o Cruz Azul, ao serviço do qual Martín se destacou em 2024, garantiu não haver acordo para a saída do técnico que, segundo os mexicanos, viajou sem autorização para Portugal.

Anselmi não fugiu ao assunto, num discurso inicial lido, porque “é difícil começar uma etapa sem antes fechar a anterior". O argentino disse que ”nada do que se tem dito nestes dias reflete a verdade", dando a sua versão dos factos. O já técnico do FC Porto garante ter feito tudo com “total transparência” com o Cruz Azul que, segundo Anselmi, o deixou sair, aceitando a oferta dos dragões. “Mas quando tudo estava pronto para a sua formalização, mudaram as regras do jogo, difamaram-me e sujaram o meu nome nos meios de comunicação”, descreveu.

A versão do argentino foi corroborada por Villas-Boas: “Chegámos à acordo [com o Cruz Azul] quanto à saída e depois houve desaparecimento e silêncio do Cruz Azul. A contratação valida, para nós, a rescisão do contrato com o Cruz Azul. O Cruz Azul sentir-se-á de outra forma e o processo percorrerá os seus trâmites”, indicou o presidente dos azuis e brancos, confirmando assim que há uma diferença de entendimento entre as partes quanto a esta contratação.

A ideia de jogo

Quando chegaram as perguntas dos jornalistas, Anselmi foi deixando a questão mexicana e soltou-se. Confortável na oratória, deixou ideias gerais, como a intenção de “construir uma equipa competitiva”, mas também foi mais ao detalhe.

As equipas do formado em jornalismo têm atuado, sobretudo, com estruturas de três centrais, algo que não vem sendo comum no FC Porto desde os tempos de Co Adriaanse. Quando questionado sobre se iria adotar essa disposição tática, Martín deu uma resposta que foi quase um resumo do seu ideário.

“Acreditamos num futebol de vantagens, posicional. Para atacar, ter um sistema rígido não nos favorece. Ofensivamente, temos um sistema que se compõe e decompõe permanentemente. Para defender, sim, há um sistema, uma ordem. Gostamos de estudar muito o adversário. Não escolhemos como atacar, é o adversário que decide isso, consoante como nos defender. O nossos sistema move-se. Recentemente, temos trabalhado com linha de três, mas que também se decompõe, pode ser uma linha de quatro. Mas não nos quero engavetar. Os adversários estudam-te e melhoram. O adversário é o nosso melhor professor, temos de nos reiventar segundo o que fazem”.

No Equador ou no México, Anselmi destacou-se por um jogo virado para a baliza adversária, com muito protagonismo na posse de bola e vertigem atacante. Villas-Boas explicou que o “futebol ofensivo” foi um critério importante na escolha. “Tudo o que distingue as equipas do FC Porto, o Martín traz consigo”, considerou o presidente, que classificou o estilo como “arrojado e agressivo" e descreveu o homem que estava ao seu lado como “a continuação viva do projeto desportivo” do clube.

A apresentação foi precedida da habitual visita ao museu do FC Porto. Assegurando que conhece o clube “desde pequenino”, com espaço para referência a Fernando Belluschi, artista argentino que ganhou a Liga Europa com Villas-Boas e se destacou no Newell's Old Boys de que Anselmi é adepto, o treinador deixou uma frase forte, que mereceu aplauso da plateia: “Acabo de visitar o museu e temos de pedir ao presidente para construir mais uma vitrina para a irmos enchendo de troféus”.

“É preciso tempo”

No seu discurso inicial, André Villas-Boas aproveitou para agradecer a Vítor Bruno, enaltecendo a conquista da Supertaça e a “dedicação de corpo e alma” ao clube. Houve, também, referência a José Tavares, que orientou a equipa frente a Olympiacos e Santa Clara, sublinhando-se a “coragem” do ex-treinador interino.

Martín Anselmi assume a equipa num tempo de várias decisões. Já quinta-feira, na Liga Europa, há um duelo, em Belgrado, frente ao Maccabi Tel Aviv, com risco de eliminação precoce da competição; na I Liga, a margem de erro, com o Sporting a seis pontos de distância, é escassa, sendo o clássico o segundo embate que o argentino terá no campeonato, depois da deslocação ao terreno do Rio Ave.

O novo dono do banco azul e branco reconhece que, na quinta-feira, haverá “um jogo decisivo”, mas mostra-se otimista em “transmitir aos jogadores, em pouco tempo” a sua “essência". “Acredito que isso se vai refletir na quinta-feira”, diz o argentino.

Não obstante, o escolhido por AVB reconhece que “iniciar um processo com a temporada a meio não é o melhor contexto”. “Não somos mágicos, somos treinadores que trabalhamos. Para ver o trabalho a ter efeito é preciso tempo, não é de um dia para o outro”, avisou.

Ninguém esconde que, face ao que Vítor Bruno fazia, haverá uma mudança profunda. Não tanto no quão palavroso continua ser o dono do banco azul e branco, mas na abordagem ao jogo. Para ajudar nesta transição, Villas-Boas não esconde a intenção de “atacar a fase final do mercado”. Ao contrário de Sporting e Benfica, o FC Porto ainda não contratou qualquer futebolista na atual janela de transferências.

Martín Anselmi diz já ter “uma ideia” de como cada jogador se pode adaptar ao seu jogo, mas também deseja “ir descobrindo” o que cada um “pode dar”.

Na parte final da conferência de imprensa, Villas-Boas aproveitou para traçar alguns paralelismo entre o seu trajeto rumo ao futebol profissional e o do novo treinador, duas histórias de “aprendizes do jogo”. Dois homens que não foram jogadores e que, com percursos pouco comuns, escalaram, relativamente jovens, até treinadores principais de grande destaque.

No fim da primeira manhã da nova era da equipa profissional masculina do FC Porto, ambos os protagonistas assinaram o livro de honra do museu do clube. “Ao som do tango argentino, na esperança de muitas vitórias e muito sucesso no FC Porto. Sejas muito bem-vindo”, escreveu Villas-Boas. “Emocionado, agradecido, entusiasmado e convencido de que vamos construir um grande caminho juntos. Nada nos acontece por acaso, se nos acontece é porque o procurámos”, assinou Martín Anselmi.