Não faltam anedotas, porém bem reais, sobre os primeiros anos da vida quotidiana do Paris Saint-Germain pós-compra pelo dinheiro dos recursos naturais do Catar. Algumas são contadas pelo jornalista Miguel Delaney no livro “States of Play”: desde jogadores que simplesmente não cumpriam as datas no regresso das férias a treinadores desrespeitados pelas estrelas, que tinham acesso direto aos diretores desportivos e proprietários, tudo dava conta de um clube com organização pouco funcional. Referidas são também as precárias condições do velhinho Camp de Loges, centro de estágios da equipa francesa, onde faltavam elementos básicos - a sala de refeições era, basicamente, um frigorífico. Mas daqueles coloridos da Smeg, porque há que manter o estilo.

Esse era o PSG dos craques, das estrelas compradas por milhões desde 2011 e que teve o seu período em esteróides nas duas temporadas, 2021/22 e 2022/23, em que o clube gaulês conseguiu juntar, no mesmo plantel, Lionel Messi, Neymar e Kylian Mbappé.

Hoje, nenhum deles está no plantel. E o PSG abriu, no início da época passada, um moderno e funcional novo campus, que nos seus 74 hectares alberga as várias modalidades do clube. Acabaram os tempos em que o departamento de fisioterapia não tinha sequer cadeiras suficientes para a equipa se sentar. A construção do Campus PSG, diga-se, custou 350 milhões de euros. Não muito mais do que o preço da contratação de Neymar - os parisienses pagaram €222 milhões ao Barcelona em 2017, naquela que é, ainda hoje, e de longe, a transferência mais cara da história do futebol.

Esses eram os tempos em que a casa era construída, uma e outra vez, pelo telhado. O PSG cedo começou a dominar dentro de portas - conquistou esta temporada o 11.º título na Ligue 1 em 13 anos (pode acabar o campeonato sem derrotas), mas mesmo com mais de 2 mil milhões de euros em contratações desde que o Qatar Sports Investments chegou à capital francesa, nunca chegou o verdadeiro desejo dos cartolas do Catar: tornar o clube campeão da Europa pela primeira vez.

Luis Enrique levado ao ar pelos jogadores após a conquista de mais uma Ligue 1, há uma semana
Luis Enrique levado ao ar pelos jogadores após a conquista de mais uma Ligue 1, há uma semana Anadolu

Porque um vencedor da Champions não se faz de uma equipa de estrelas tresmalhadas. Nos anos de Messi, Neymar e Mbappé no ataque, o Paris Saint-Germain caiu sempre nos oitavos de final, primeiro com o Real Madrid, depois com o Bayern Munique, dois históricos que fogem à tendência da propriedade que não seja dos seus sócios. E, por isso, finalmente, mudou o paradigma em Paris.

Na terça-feira, Luis Enrique, o homem que diz ter sido o primeiro a dormir nas instalações do novo campus, levou um PSG sem nomes sonantes (como os do passado recente), sem estrelas com objetivos individuais ou a cabeça em outros clubes, às meias-finais da Liga dos Campeões pelo segundo ano consecutivo, após eliminar o Aston Villa, treinado por Unai Emery, um de tantos treinadores que passaram por Paris sem atingir o objetivo máximo na Champions. E, mais do que nunca, a equipa de Paris, dona de um futebol dinâmico, intenso, tricotado por um plantel jovem - a média de idades passou de 26,2 em 2023 para 22,7 esta temporada - parece pronta para uma meta que vive há anos e anos na cabeça do presidente Nasser Al-Khelaifi.

Uma reviravolta na filosofia

A mudança de direção no projeto do Paris Saint-Germain tem a contratação de Luis Enrique como pivô. O antigo médio deixou na seleção espanhola as sementes que brotaram na equipa que se tornaria campeã da Europa em 2024 e aterrou no PSG logo após as saídas de Neymar e Messi e com Mbappé no último ano de contrato. Chegaram nomes como Kolo Muani, Barcola e Dembélé (e Doué este ano), reforços caros mas que fortaleceram a identidade francesa do plantel e que se juntaram a Warren Zaïre-Emery, da formação do clube.

“Não dá para olhar para este PSG sem enquadrar a dupla Luís Campos [diretor-desportivo] e Luis Enrique. O maior problema nos últimos anos era a forma como o clube queria ganhar pelas estrelas, basta olhar para os últimos anos - não consegue chegar às meias-finais sequer nos anos em que tinha Messi, Neymar e Mbappé e isso não é bem uma coincidência”, refere Tomás da Cunha.

O comentador frisa que “é muito difícil ganhar na Champions sem ter 11 jogadores que possam atacar e defender” e que o PSG tem agora uma equipa com “muito maior capacidade de pressão” com jogadores como Kvaratskhelia, contratado ao Napoli no mercado de inverno, Dembélé ou o português João Neves, que é “o principal recuperador da Liga dos Campeões” e bate na nova estratégia do clube: a contratação de jovens com potencial. Quando na última temporada Luis Enrique arriscou dizer que a saída de Mbappé ia melhorar a equipa defensiva e ofensivamente não estava errado.

Vitinha e João Neves dominam o meio-campo do PSG e são parte da transformação num coletivo forte
Vitinha e João Neves dominam o meio-campo do PSG e são parte da transformação num coletivo forte Soccrates Images

“É um dos pontos fortes do PSG: deixou de ter a perspetiva das estrelas e passou a ter jogadores jovens, com algo a provar e que querem vencer no PSG. Alguns deles franceses. Era estranho ver o PSG com poucos jogadores franceses, agora isso vai mudando”, continua Tomás da Cunha, reforçando o ponto que o caminho de uma ideia mais coletiva e menos cintilante “permite ao PSG sonhar” na Champions. “É certo que já tem andado nas meias-finais e até na final, mas nunca se viu a equipa tão preparada para poder ser campeã europeia.”

Para lá da mudança de mentalidade, o dedo do trabalho de campo do treinador é visível nesta nova vida do PSG. Tomás da Cunha acredita que a transformação operada pelo asturiano, que tornou uma equipa capaz tanto de momentos brilhantes como de alheamento total numa máquina de intensidade, vai colocá-lo “de forma unânime, ou perto disso, como um dos melhores” treinadores do mundo.

“Até então havia algumas dúvidas em relação ao estilo e até às qualidades do treinador, mas esta equipa é definidora das tendências do futebol atual”, aponta. O analista da Tribuna Expresso fala da “capacidade de chamar o adversário e depois ganhar o espaço”, a que se juntam “jogadores capazes de ganhar no um contra um e em velocidade para aproveitar esses espaços”, naquilo a que chama “o protótipo de uma equipa de futebol moderno, entre aspas”.

Tomás da Cunha vê ainda como relevante para o sucesso da equipa a aposta de Luis Enrique em Vitinha como organizador e Ousmane Dembélé “como avançado móvel” no também móvel ataque do PSG. O francês, com 32 golos marcados e 10 assistências, está a fazer a melhor época da carreira, renascido depois do deserto dos anos de Barcelona. A eles juntam-se “laterais muito funcionais, capazes de atacar zonas interiores em aceleração, não apenas como construtores”, como se viu com Nuno Mendes e Hakimi no jogo de terça-feira com o Aston Villa - o PSG espera agora pelo vencedor da eliminatória entre Arsenal e Real Madrid para conhecer o próximo adversário na Champions.

Em março, numa entrevista ao “Bild”, Nasser Al-Khelaifi assumiu os erros do passado, nomeadamente o objetivo firmado de ganhar a Liga dos Campeões em cinco anos. A ideia, agora, é o futuro. “A nova estrela do Paris Saint-Germain é a equipa e estou muito orgulhoso pela forma como transformámos a filosofia do nosso clube em tão pouco tempo”, apontou. E os tempos são tão diferentes que Al-Khelaifi diz mesmo que o objetivo não é ganhar a Champions, mas sim jogar de forma ofensiva, divertida. “Temos jogadores para isso? Sim. Temos jogadores para ganhar a Liga dos Campeões este ano, no próximo ou daqui a oito anos. Temos a base para construir uma grande equipa para o futuro”.

Quem o viu o PSG e quem o vê.