
Olhemos para a vida como um gráfico. Há várias linhas, cada uma delas personificando um pedaço daquilo que nos define. Bem-estar, trabalho, amor, outras tantas. Elas, normalmente, até avançam lado a lado. Não havendo paz de espírito, dificilmente o resto estará bem. E vice-versa.
Não aconteceu bem assim com Andrés Iniesta.
Entre 2009 e 2010, o genial médio ganhou todos os títulos possíveis enquanto conduzia a orquestra do tiki-taka do Barcelona e da seleção espanhola. Ao domínio interno, o Barça juntou a Champions. Na caminhada para o jogo decisivo, Iniesta marcou aquele golo em Stamford Bridge. No verão de 2010 encheu-se de alma para acertar o remate mais importante da história do futebol espanhol, no prolongamento da final do Mundial.
Mas dentro dele havia um desconforto, uma inquietação. A inesperada e chocante morte do amigo Dani Jarque, jogador do Espanyol de Barcelona, no verão de 2009, puxou o mais ilustre cidadão de Fuentealbilla para um vazio obscuro, enquanto nos seus pés a bola dançava sem mácula.
Iniesta não reconheceu logo que, ao mesmo tempo que os adeptos o levavam em ombros e gritavam os seus golos, ele passava por uma depressão. Que as tais linhas da sua vida se tinham cruzado, dando cabo da lógica. Que aquilo que sentia não era um simples mal-estar.
Hoje, quinze anos depois, Iniesta é um sábio. Sábio do futebol, das curvas da sua mente. Depois de em 2016 escrever uma primeira autobiografia, convenientemente chamada de “O Artista”, desta vez pegou na caneta para falar das suas lutas interiores, do papel da família e também de superação, já com o diagnóstico de depressão bem assimilado. O livro chama-se “A mente também joga” e foi lançado em Espanha na última semana.
Iniesta também é sábio porque sabe o seu lugar. Em entrevista ao “El País” diz não querer dar “conselhos nem lições” a ninguém sobre os demónios de cada um, apesar de provavelmente estar mais do que preparado para o fazer. “Só quero contar a minha experiência, a minha história, partilhá-la.”
Até porque os embates com a saúde mental tendem a ser experiências muito pessoais. “Não somos todos iguais, nem todos utilizamos os mesmos mecanismos para sair de diferentes situações. Não é fácil encontrar uma pessoa que te faz sentir bem, que te ajuda. Eu chegava sempre dez minutos antes de começar a sessão com a minha psicóloga, mas há quem não sinta essa química”, explica o agora jogador reformado, futuro treinador. Ou pelo menos é esse o seu objetivo: “Estou ainda num processo inicial, mas estou a gostar e gostaria de ser treinador.”
“Se alguém se sentir identificado ao ler-me, se ajudar alguém numa circunstância da sua vida, isso será maravilhoso”, garante o espanhol de 40 anos. Ser bem-sucedido dentro de campo e sofrer fora dele aconteceu, confessa, porque o futebol era o sítio onde aquele rapaz tímido e discreto conseguia expressar-se, pintar belos quadros, deslizando no relvado. “O futebol foi a minha vida, a minha paixão e onde fui mais feliz”, aponta. O campo era o local que “aliviava a dor interna” que sentia, que tentava “tapar” para que o mundo não visse: “Assim conviveram estes dois mundos.”
Só que, como em tudo, as tampas raramente tapam para sempre o que está em ebulição. “Com o passar do tempo”, Iniesta sentiu que esse “outro mundo interno” anunciava cada vez mais a sua presença e pediu ajuda. O papel de Pep Guardiola foi, então, essencial, numa fase em que as questões mentais começaram também a afetar a sua capacidade de treinar. Os exames não encontravam qualquer problema físico, mas Iniesta, muitas vezes, não conseguia acabar os treinos. Guardiola deu-lhe sempre espaço.
“Tive a sorte de encontrar um treinador e uma equipa técnica que entendiam essa necessidade que tive naquele momento. Nem todos têm essa proximidade. Haverá treinadores que dizem ‘se não treinas, no domingo não jogas’”. Ao “El País”, Iniesta sublinha que Pep Guardiola e a sua equipa conheciam a sua luta “desde o início”, que se sentiram “parte dela” e o ajudaram: “Sem essa compreensão teria sido praticamente impossível sair dali.” Meses depois, Iniesta estava a levantar a taça de campeão mundial, em Joanesburgo.
De certa maneira, Guardiola devia uma, ou muitas, a Andrés Iniesta e compreensão paga-se com compreensão. Na tal autobiografia de Iniesta de 2016, o treinador conta um episódio que considera essencial nas fundações da equipa de 2008/09 do Barcelona que se tornou, naquela fatia de tempo, a mais dominadora do futebol mundial.
Depois de começar a sua carreira como treinador principal do Barcelona com uma derrota, um empate e muita pressão da imprensa, Guardiola recebeu uma visita no seu gabinete. Era Iniesta, o pequeno Iniesta, quase sempre calado nos treinos. “Não se preocupe, mister. Vamos ganhar tudo. Estamos no caminho certo, continue assim. Jogamos muito e gostamos dos treinos. Por favor, não mude nada”, disse Iniesta ao então jovem treinador.
Falou pouco, mas falou bem. Nos 18 meses seguintes, o Barcelona ganhou seis títulos.