As últimas impressões serem as que normalmente mais colam é sina humana, a memória tem a tendência para se agarrar ao que nela se pinta de fresco e esquecer, ou engavetar na despensa, recordações mais antigas. A derradeira impressão deixada por Bruno Lage no Benfica, num mês de julho covidesco de 2020, era a de um treinador sem soluções para uma equipa a jogar aos solavancos, desinspirada e sem rasgo, em declínio íngreme num ciclo em que ganhara apenas dois de 12 jogos feitos desde uma derrota com o FC Porto, a pior das feridas que se podem abrir nos adeptos. O treinador reconheceu-o, entregando a demissão que Luís Filipe Vieira aceitaria com quatro jornadas em falta no campeonato.

Bruno Lage era, de repente, um desacreditado e criticado treinador campeão nacional. Mais de quatro anos volvidos, neste setembro de 2024, é ele o escolhido pelo Benfica para tentar replicar o futebolístico conto de fadas que o próprio fez acontecer na sua estreia no banco da equipa principal, quando o clube, já com 15 partidas jogadas na Liga, o promoveu da equipa B e a aposta compensou, cheia de estilo: nas 19 rodadas que havia em sobra, ganhou 18 e marcou 69 golos, agigantando um embalo que parecia indomável enquanto lançou João Félix para a ribalta, fez de Ferro um defesa central a quem a maioria vaticinava voos altíssimos e limou em Gabriel um médio que mandava nos jogos como queria.

No embrulho do título, quando ainda estava na sala de imprensa do Estádio da Luz, a fazer as vontades aos jornalistas antes de rumar para a festa no Marquês de Pombal com os jogadores, o treinador cunhou uma frase sua à proeza, dizendo que era “a reconquista do bom futebol e das boas maneiras para valorizar aquilo que os outros fazem”. O efeito de Lage nos encarnados materializava-se, então, por inteiro, uma Lageficação completada com um abrupto corte com o passado recente em menos de seis meses.

O futebol do Benfica, nessa segunda metade de 2018/19, entusiasmou até os observadores mais inertes, catapultando o treinador para um breve período nas nuvens. Será essa primeira meia temporada, não a época seguinte quase inteira, que Rui Costa quererá emular agora, em 2024/25, coincidentemente numa esperança em tudo similar à que o fez aguentar Roger Schmidt até ao último sábado. O presidente disse acreditar “plenamente” que seria “mais fácil fazer o primeiro ano” do alemão no Benfica “do que o segundo”, crença que deverá alargar ao efeito pretendido com a torna de Bruno Lage à casa onde trabalhou durante 11 anos.

Este regresso do treinador ao Benfica provém da decisão tomada em maio, quando Rui Costa decidiu manter o técnico germânico apesar do abismo de perda de qualidade de jogo evidenciado na época passada, numa carência de sinais prestados pelo treinador de que haveria capacidade para fazer a equipa evoluir. A essa decisão evoca mais uma repetição de um modus operandi característico do Benfica no que toca à gestão recente dos seus treinadores: Schmidt foi despedido e Jorge Jesus sofreu o mesmo destino em dezembro de 2021, depois da demissão, em julho de 2020, de um Bruno Lage que viera substituir um também despedido Rui Vitória, em janeiro de 2019.

O padrão é notório e esta cronologia precede a chegada à presidência de Rui Costa, então ‘vice’ e diretor-desportivo no raiar original de Lage. É agora líder do clube que teve de emendar a própria mão. A escolha veio algures do “plano B, C e D” que disse ter, em maio, como em “qualquer clube do mundo”. Escolhido Bruno Lage, vem para o Benfica um treinador com o qual o clube tinha renovado contrato, em 2019, precisamente até este ano, o 2024 em que espera atinar o presente com o regresso ao passado de um técnico que desde a saída dos encarnados trabalhou no Wolverhampton inglês e no Botafogo brasileiro.

Em nenhum ficou mais do que época e meia: fez 42 jogos no Wolves na temporada inaugural (10.º lugar na Premier League) e só nove na seguinte, entre 2021 e 2022; e acumulou 15 partidas no clube do Rio de Janeiro de julho a outubro de 2023, deixando-o na liderança do Brasileirão onde o encontrou (não com 15 pontos de vantagem, mas com sete). Enquanto técnico principal de seniores, jamais ligou um par de épocas no mesmo clube.

Lage fez 76 jogos na primeira passagem pelo Benfica, divididos por 51 vitórias, 12 empates e 13 derrotas.
Lage fez 76 jogos na primeira passagem pelo Benfica, divididos por 51 vitórias, 12 empates e 13 derrotas. PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty

A esperança numa reencenação

Bruno Lage aterra num plantel do Benfica construído não por ele, nem consoante os seus agrados e preferências, à semelhança do cenário com que o presentearem há cinco anos. Desta vez, a benesse possível está na sua entrada calhar com uma paragem de seleções. Haverá tempo o mínimo q.b. para ver, analisar, planear, desenhar planos, definir o tipo de jogo a implementar, mas sem os supostos principais futebolistas sobre quem o basear, pois muitos estão fora nas suas equipas nacionais. Em 2019, foi chegar, pouco treinar e logo meter a jogar um Benfica que estava no 4.º lugar, a sete pontos da liderança do FC Porto ao fim de 15 jornadas do campeonato.

Essa desvantagem é hoje de cinco pontos para o Sporting e com quatro partidas feitas (é 7.º classificado). O tempo que sobra é maior, a urgência não tão premente. O plantel, mesmo que desequilibrado, guarda também potencial.

Na defesa mora um dos poucos pontos animadores desta temporada, a maturação do central Tomás Araújo (entretanto, lesionou-se) no setor onde a dependência nos 36 anos de Otamendi prevalece sem que a intermitência de António Silva a tenha ajudado a diminuir. Nas laterais, chegou Issa Kaboré para fazer sombra a Alexander Bah, oscilado por lesões na época anterior, sem a consistência que na esquerda tão pouco foi dada por Álvaro Carreras ou Jan Beste, outro lesionado.

O estado físico da equipa, a lidar com cinco jogadores com mazelas, é outra das preocupações deixadas por Roger Schmidt além do pífio fio de jogo trabalhado pelo treinador alemão nos últimos tempos, onde o meio-campo preso e sem dinâmicas aparentes quando em posse de bola tornou redundante a parceria entre Florentino Luís (único jogador que resta dos tempos de Lage) e Leandro Barreiro, empurrando para um canto Orkun Kökçü, o melhor passador de bola do plantel. A pujança de Renato Sanches, médio de esticões e corridas com bola, não tem o perfil de jogador no qual se possa confiar a batuta de ditar como, por onde e quão rápido a equipa age em organização ofensiva, mas se outros houver que o façam, pode trabalhar-se um encaixe para as suas características.

No ataque, a dependência-mor do Benfica esteve em Ángel Di María, o delicado argentino que o novo treinador mais terá de estimar em termos de gestão de minutos (tem 36 anos e fez 3984 na época passada) e satisfação. O seu pé esquerdo transborda em passes venenosos, em dar o caráter distintivo ao final das jogadas, mas fomentar Benjamín Rolheiser ou Gianluca Prestianni será um dos caminhos para Bruno Lage, que ainda terá os recém-chegados Aktürkoglu e Amdouni, atacantes que são agitadores de jogo por natureza. Para golos, há o enérgico Pavlidis e Arthur Cabral, o algo esquecido avançado como outrora havia no primeiro avistamento da mão de Lage no Benfica.

Bruno Lage vai estrear-se com o Benfica, em janeiro, no novo formato do Mundial de Clubes.
Bruno Lage vai estrear-se com o Benfica, em janeiro, no novo formato do Mundial de Clubes. PATRICIA DE MELO MOREIRA

O apelo às (boas) memórias

Soubemos, a meio da tarde de um sábado, que Roger Schmidt estava para deixar de ser treinador do Benfica. Nem duas horas contadas da novidade, Rui Costa fez saber, em público, que à rescisão com o alemão sucederia o anúncio de um novo treinador “muito em breve”, entre “o meio e o final” desta semana, sem querer “especular” sobre os nomes que a sua decisão tomada nos derradeiros dias de agosto em vez de aparecida nalgum dia de maio último obrigou a que forçosamente fossem poucos: com pré-época já embrulhada, o mercado de transferências prestes a ser arrumado, a margem de manobra do Benfica era como a de um elefante posto dentro de uma loja de porcelanas.

Os rumores de domingo encaixotaram essa magreza de possibilidades. Falaram de Leonardo Jardim ou Bruno Lage, dois treinadores desempregados que a segunda-feira tratou de afunilar as hipóteses rumo a um deles, o único com passado de Benfica, a quem a roda da reminiscência logo foi posta em andamento para quem acredite, ou não, em coincidências: na terça-feira, o “Record” falou com Rafa Silva e, logo na quarta-feira, o jornal “A Bola” ouviu Alejandro Grimaldo, enquanto o “Jogo” também apanhou João Félix no mesmo dia. Em menos de 30 horas, três jogadores que tocarão notas carinhosas na alma musical dos adeptos encarnados apareciam não só a elogiar Bruno Lage, como a saudar o seu eventual regresso ao clube onde ele os treinou.

Os jogadores que raramente falam ou concedem entrevistas, dados ao recato como é moda no futebol, coincidiram no teor das palavras, a mensagem tão semelhante que poderia ter sido uma só voz a depositá-la. “Se dependesse de mim, escolheria Bruno Lage”, disse Grimaldo, por ter “um nível muito alto, com ideias muito claras”. João Félix defendeu que o técnico “enquadra-se no Benfica” e tem “um estilo de jogo que encaixa na equipa” e “traz muitas vantagens aos jogadores”, cortejando a alusão que os altos gabinetes da Luz também estarão a seduzir com esta escolha: “Já fez uma vez, quem diz que não pode fazer outra?”. E o pacato Rafa, dos futebolistas do Benfica de quem menos se ouviu a voz em épocas recentes, optou pelo uso da excelência, dizendo que Lage “é um excelente treinador, uma excelente pessoa” e que “era uma excelente opção para voltar a treinar” os encarnados.

Visadas a quem torce pelo Benfica, as artimanhas da coincidência eram claras. Eis três históricos futebolistas da história recente do clube, todos campeões nacionais várias vezes na Luz, a passaram uma mensagem. Dois deles a soprarem o pó à recordação que fará sorrir os adeptos e a puxarem a fita à cassete da época 2018/19 em que Bruno Lage foi o salva-vidas escolhido, em janeiro, para suceder a Rui Vitória, levando ao título a equipa que estava a sete pontos da liderança quando lhe pegou - e o outro desmentir rumores idos, de 2020, quando o treinador foi despedido entre zunzuns de que o núcleo duro dos jogadores portugueses do plantel teria puxado uns cordelinhos para a sua saída.

Além de Pizzi e André Almeida, um deles, segundo o badalado pela imprensa desportiva, seria Rafa. “A opinião pública vai ser a opinião pública, vão sempre falar pelo que acham e dizer que como jogadores fizemos a cama a muitos treinadores. Mas ele é uma pessoa que continuamos a ter na nossa vida, continua a ser nosso amigo. E isso mostra a cama que fizemos ao treinador. Nós na altura é que queríamos que ele ficasse, por nós nunca tinha saído, mas infelizmente, não foi possível”, explicou o jogador, hoje no Besiktas, ao “Record”, limando com um esclarecimento o pedaço de memória menos risonho da primeira passagem de Bruno Lage pela equipa principal. Na quinta-feira, seriam Jonas e Seferovic a serem saudosos dos seus tempos com o técnico.

O Botafogo foi o último clube que Bruno Lage treinou, em 2023.
O Botafogo foi o último clube que Bruno Lage treinou, em 2023. Wagner Meier

O congestionamento que aí vem

No seu primeiro ato de sucessão, Lage herdou em 2019 um Benfica, além da caçada a que se propunha no campeonato, nos quartos de final da Taça de Portugal e nas ‘meias’ da Taça da Liga, provas das quais seria batido por FC Porto e Sporting ainda em janeiro. Depois, superou uma eliminatória da Liga Europa para cair perante o Eintracht Frankfurt nos ‘quartos’, a meio de abril. Bruno Lage teve 29 jogos no que lhe competiu da época, do total de 60 que a equipa realizou em 2018/19.

Nesta temporada já em andamento, os bofes dos jogadores e do treinador poderão bem ficar de fora face à exigência que a inclemência de UEFA e FIFA projetaram no calendário. O Benfica já conhece os adversários que terá no novo formato da Liga dos Campeões prestes a ser estreado, sem fase de grupos e com oito partidas garantidas, um mínimo de 720 minutos de futebol a que se somarão outros 180 caso não se apure diretamente para os oitavos de final e tenha de disputar um play-off - caso o vença, virão então outros 180. Numa fase regular que se estenderá até janeiro, serão mais as semanas a ter de ajustar ciclos de treinos com partidas a cada três ou quatro dias.

Dependendo das andanças dos encarnados na Champions e nas taças internas, o delapidar da energia dos jogadores estender-se-á quase até julho por obra e delicadeza do novo Mundial de Clubes. A FIFA quis ter uma prova das suas que não encafuasse sete equipas, em dezembro, no meio de toda a ação a decorrer nos campeonatos europeus e atenções necessariamente dispersas, então inventou um modelo que vai aplicar no próximo verão: 32 clubes, entre os quais o Benfica e o FC Porto, vão disputar um torneio com grupos de quatro equipas, como se de um verdadeiro Campeonato do Mundo se tratasse.

Traduzindo, os encarnados têm garantidos, pelo menos, outros quatro encontros a realizar a partir de 15 de junho no torneio que terminará a 13 de julho, quando já houver equipas na Europa bem dentro das suas pré-épocas para 2025/26. O cuidado dado ao descanso dos futebolistas fica para um dia mais tarde, como tem sido moda. A mão de Bruno Lage, além dos efeitos imediatos que no futebol se pretendem sempre para ontem, também terá de se estender bem para lá do que qualquer temporada convencional do futebol de clubes alguma vez se esticou.