Vamos aproximar a questão da realidade nacional. Imaginemos que o tão badalado Viktor Gyökeres, por um motivo ou por outro, passava a estar descontente no Sporting e forçava a saída do clube de Alvalade. O sueco começava a deixar de ser disciplinado e desaparecia dos treinos, acabando por rescindir contrato unilateralmente e sem justa causa para que os seus golos passassem a ter outro local de residência. A FIFA emitia o certificado de transferência internacional que validaria a mudança mesmo que Gyökeres tivesse rompido o compromisso.

Agora vamos imaginar que o procedimento se massificava e, num caso extremo, todos os clubes que baseiam a estratégia de subsistência no regatear das qualidades dos seus melhores jogadores viam os intérpretes forçar o afastamento entre as partes. O mercado de transferências tal como o conhecemos correria então o risco de se deformar.

Na verdade, esta pode não ser uma realidade assim tão distante. O Tribunal Europeu colocou-se ao lado de Lassana Diarra no caso em que o antigo internacional francês acusou a FIFA de lhe causar danos financeiros e entraves no desenvolvimento da carreira quando o organismo se recusou a emitir um certificado de transferência internacional numa fase em que o gaulês estava livre no mercado e desejava assinar pelos belgas do Charleroi após rescindir, unilateralmente e sem justa causa, contrato com o Lokomotiv Moscovo.

O Tribunal Europeu considerou que as atuais regras do mercado de transferências “impedem a livre circulação de jogadores e a livre competição entre clubes”, algo que pode ter “riscos legais consideráveis, riscos financeiros imprevisíveis e potencialmente muito altos, bem como grandes riscos desportivos para os jogadores e para os clubes que os desejam contratar”. O funcionamento atual do negócio de jogadores pressupõe que um clube pague para adquirir um futebolista sob contrato, algo que se pode vir a alterar devido a esta tomada de posição.

A deliberação do Tribunal Europeu, que não é definitiva, sobre o caso de Lassana Diarra “pode ser visto como potencialmente destruidor do sistema de transferências”, diz à Tribuna Expresso Diogo Soares Loureiro, especialista em direito desportivo. Isto porque o exemplo torna-se num “incentivo para que os atletas forcem a rescisão dos contratos de trabalho sem justa causa”. O mesmo é dizer que os vínculos entre jogadores e clubes perderiam o significado que têm.

Em 2014, o Lokomotiv Moscovo demonstrou junto de Lassana Diarra a vontade de reduzir o salário do médio, usando como fundamento a quebra de rendimento dentro do campo. Entendendo que não se justificava, o jogador deixou de estar em sintonia com o clube, o que o levou a não comparecer nos treinos sem justificação, segundo a equipa.

O contrato foi terminado e o Lokomotiv levou o caso para a FIFA, sendo que esta ditou que Lassana Diarra devia pagar €10,5 milhões ao emblema três vezes campeão russo. Assim que o antigo centrocampista de Real Madrid, Chelsea e Paris Saint-Germain se libertou do vínculo que o ligava ao conjunto moscovita, o Charleroi mostrou-se interessado na sua contratação caso o negócio pudesse ser fechado sem custos para o clube belga.

Manuel Queimadelos Alonso

Ora, o regulamento da FIFA sobre a transferência de atletas previa (e prevê, por agora) que o Charleroi tivesse que se solidarizar com o pagamento da dívida de modo a fechar a contratação de Lassana Diarra e tal não se verificou. Assim, a FIFA não emitiu o certificado de transferência internacional que validaria a mudança. O jogador ficou sem clube e avançou depois com uma queixa, junto da justiça belga, contra o organismo que tutela o futebol mundial, apoiada pelo sindicato mundial e francês de jogadores.

A sentença do Tribunal Europeu a favor de Lassana Diarra pode vir a “forçar a FIFA a alterar o Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores”, afirma Diogo Soares Loureiro. Caso isso não aconteça, os contratos dos jogadores perdem significado – porque a FIFA passaria a ter que libertar certificados em situações como esta, passando a mediar mais do que a regular – e os clubes ficam desprotegidos quanto a eventuais rescisões injustas que os levem a perder ativos.

Ainda antes do Tribunal Europeu se pronunciar, o advogado-geral Maciej Szpunar alertou que "algumas regras da FIFA sobre a transferência de jogadores podem ser contrárias à lei da União Europeia” e a restrição de liberdades só pode ser justificada “em circunstâncias específicas".

O nosso jornal ouviu junto de pessoas ligadas ao meio jurídico que a possibilidade da FIFA se negar a emitir certificados é uma medida fundamental também para incentivar o pagamento de dívidas. O objetivo pode cair por terra com a deliberação do Tribunal Europeu.

"Isso vai pôr fim à prática degradante de transformar jogadores em mercadorias", afirmaram os advogados belgas Jean-Louis Dupont e Martin Hissel em comunicado conjunto. Jean-Louis Dupont, o representante de Lassana Diarra, foi o homem que defendeu Jean-Marc Bosman no caso que, em 1995, ditou que os clubes que pretendessem adquirir jogadores livres não tivessem que pagar qualquer valor às equipas que os atletas representavam anteriormente. Parece que estamos a estamos a chegar à segunda era da lei Bosman.