Há uns anos, alguém que teve a sorte, o privilégio e principalmente a experiência engraçada de já ter trabalhado com ele, confessou-me que Finn Russell, sendo um génio, era também um louco em igual medida. Portanto, em doses bastantes grandes. As valências do escocês são-lhe gabadas: tem o dote de possuir um cérebro oval extraordinário, capaz de ver os passes mais improváveis, de colocar pontapés em ângulos complicados no campo e de completar truques com a bola que pouca gente se atreve a arriscar durante um jogo. Isto quando não é, de todo, particularmente forte nem musculado, poder-se-ia até descrevê-lo como lento, e se apresenta com uma figura apenas suficiente para suster a saudável agressão que o râguebi implica.

O atípico Finn Russell, à falta de melhor descrição, é mesmo um génio.

Alguém tão banal fisicamente, ornamentado até com uma ligeira barriguita em várias fases da carreira, lograr exercer a sua influência no jogo só pode ser devido ao inato QI oval que o comanda. No sábado, mais uma vez, o médio de abertura esteve na proa do que a Escócia fez em Twickenham, na terceira jornada do torneio das Seis Nações. Na visita à casa do râguebi inglês, Finn Russell orquestrou manobras de ataque vistosas, distribuiu passes a saltar jogadores da sua linha e comandou os movimentos que dariam os três ensaios feitos pela sua equipa. Hoje co-capitão, serenados os seus tempos mais excêntricos - chegou a ser expulso de um estágio da seleção por prolongar uma noite de copos e, depois, refugiar-se em casa dos pais -, o 10 da Escócia abraçava a responsabilidade de liderar as investidas.

Mas, enquanto os cantantes do hino Flower of Scotland jogavam um râguebi entusiasmante com a bola em mão, do tipo virtuoso que faz as pessoas quererem ver os seus jogos, os sóbrios ingleses, no seu estilo mais soturno e físico, ganharam faltas na segunda parte e apesar de só marcarem um ensaio foram, aos poucos, convertendo pontapés de penalidade. Até que, no derradeiro minuto, no último ato do jogo, a Escócia fez o seu terceiro ensaio e Finn Russel, com o marcador em 16-15, teve no pé a oportunidade de resgatar uma quinta vitória seguida do seu país contra o maior rival.

E pela terceira vez na partida, o abertura falhou a conversão.

Correu depois de volta à sua metade do campo, abanando a cabeça em negação. O jogo ainda teve mais quatro minutos para a Escócia ingloriamente marrar contra a defesa de betão dos ingleses, tardios no desespero. A derrota fê-los perder a Calcutta Cup, troféu mais antigo do râguebi, disputado anualmente entre os dois países desde 1879. Dados os passou-bens aos adversários no final, cumprido o hábito respeitoso, Russell deixou-se sentar na relva, a sua cabeça caída enquanto desapertava os atacadores das chuteiras, quase indiferente aos companheiros de seleção que iam passando a tentar animá-lo.

Porventura a respirar na melhor fase da carreira, o jogador de 32 anos e hoje no Bath, clube inglês, parecia arrasado na ressaca do jogo. “Ele é um pontapeador extraordinário”, defendeu Gregor Townsend, o lamentoso selecionador escocês que deu crédito ao adversário, mas falou do quão “duro” será para os seus lidarem com o facto de “terem jogado bem e o seu esforço quase ter chegado para a vitória”. Foi daqueles encontros em que as estatísticas são angustiantes para quem perde: a Escócia teve 59% de domínio territorial, 58% de posse, avançaram 933 metros com a bola na mão por contraste com os 479 de Inglaterra, ultrapassaram 35 adversários e quebraram a linha defensiva nove vezes (contra as respetivas 10 e as duas dos ingleses).

E natural é que a seleção da Escócia deposite e mantenha uma larga parte do seu plano de jogo no tipo mais divergente que tem. Em inglês definem-no como um maverick, alguém que escapa à norma. Os 85 jogos pela seleção e 415 pontos atestam à fé que a equipa tem em Finn Russell, um dos mais talentosos executantes que existe no râguebi atual, esteja ele preocupado, ou não, em esculpir um físico consentâneo com as exigências da modalidade - como pouco importado está, por exemplo, em promover uma marca de whisky nas redes sociais.

À Escócia faltou uma pitada de acerto no pé do seu génio que tem elevado a seleção a ser, provavelmente, a mais entusiasmante de se ver neste torneio das Seis Nações apesar de não ser a mais felizarda em matéria-prima. Finn Russell tem domesticado a sua loucura, sem fugir por completo ao seu lado excêntrico, algo que os adeptos ingleses se lembraram, após o jogo, recordando o dito pelo escocês na série “Full Contact”, da Netflix, que versa sobre a prova. “Está a ficar normal, nunca em dúvida. Quando a Inglaterra quiser, pode vir tentar tirar-nos o troféu”, brincara o médio de abertura, o ano passado, ao comentar as quatro vitórias seguidas da Escócia na Calcutta Cup.

O bumerangue das picardias desportivas haveria de regressar, como sempre, para o tramar.