Sentado na cadeira, elevado por um ligeiro púlpito, era normal que Martín Anselmi soubesse, na véspera, algo que não sabíamos. Os treinadores sabem-no, eles é que estão nos bastidores do treino, podem ser sabichões. “Na parte ofensiva ainda estamos débeis, este é um bom jogo para começarmos a mostrar o que queremos ofensivamente.” A matutagem do argentino depositava esperança neste jogo, outro a findar mais uma semana que se diz limpa, sem afazeres de provas europeias pelo meio, a proporcionar dias seguidas de treino verdadeiro sem viagens ou cuidados de recuperação. O FC Porto insonso ia ter tempero, agora é que ia ser futebol atacante.

Não se pode escrever que Anselmi mentiu - que omitiu, talvez. Tinha de o fazer, qualquer técnico o imitaria, dificilmente alguém anunciaria ao mundo que conspirava para devolver à equipa a convivência entre Rodrigo Mora e Fábio Vieira. Ambos titulares, os pequenos geniais partilham a estirpe que os rege dentro de um campo de futebol: ambos os criativos com pernas, a transbordar de ideias, são jogadores que valem balúrdios sozinhos mas cuja riqueza sai exponenciada se tiverem gente por perto, a querer brincar com eles, os dois do FC Porto que têm mais rua nos pés. Rodrigo estava lesionado, Fábio suspenso. Devolvidos a titulares, Anselmi depositou a equipa na sua sintonia.

Ter os melhores praticantes ajuda qualquer equipa, mas não chega. Tê-los juntos, com liberdade para se aproximarem da bola e por arrasto um do outro, cedendo à atração, deu uma demolidora primeira parte aos dragões como nunca se vira em nove partidas anteriores sob as vontades do treinador argentino. Ainda o sol não adormecera já Fábio Vieira, a 30 metros de Guillermo Ochoa, desencantara um remate em jeito para fazer o mexicano voar. Pouco depois o rabugento Samu, louco por um golo, tinha a primeira de três chances para marcar com cruzamentos de João Mário, concretizando nenhum, esmurrando a pobre relva com frustração.

A equipa criava para ele, fazia por evitar as suas súplicas. E o espanhol também se safava sozinho com uma bola batida longa por Nehuén Pérez na saída, perseguindo-a para depois fintar um adversário e rematar de pé esquerdo. Uma perna de Ochoa intrometeu-se na intenção. Quando não houve os caracóis do mexicano a fazer a desfeita, havia o estático poste: voltou a ser servido por um cruzamento, com um bruto golpe de testa atirou a bola ao ferro da baliza. Outro bradar de braços do espanhol. Ainda haveria um lance singular pela simplicidade de Fábio Vieira, na direita, ao tabelar com João Mário, correr para o centro e curvar um remate que viu o poste de perto.

JOSE COELHO

Foram muitas boas, perigosas e fluídas oportunidades do FC Porto, às quais se acrescentou a do golo, divergente de todas estas por João Mário, colado à linha, lançar a velocidade de Pepê a desmarcar-se entre centrais para o brasileiro, já na área, rematar contra Ochoa e a recarga sobrar na festa (18’) de Rodrigo Mora. Pela quarta vez na época o pequeno projeto de jogador marcava. E pela primeira vez na era Martín Anselmi, a equipa sairia para o intervalo a vencer no Dragão. Sobretudo, era a primeira vez que o resultado era por demais magricela face a tantas ocasiões fabricadas.

A explicação vem da qualidade, por fim, apresentada no jogo. Não só pela aproximação de Fábio e Rodrigo da bola, a paciência de ambos a dar vida às jogadas, pausando o ritmo quando necessário, dando mais um toque na bola para provocar espaços. Sobretudo, coletivamente o FC Porto funcionava.

Na base, Eustáquio era outra vez uma espécie de libero, fechando como terceiro central quando a equipa defendia, avançando para ser médio nas posses de bola, juntando-se a Alan Varela ao centro. Em parelha, filtravam os primeiros passes. A equipa procurou apoios frontais, repetiu tabelas, fomentou triangulações, deixou Vieira e Mora deambular por onde queriam e fez de Pepê, várias vezes, outro vadio entre linhas que era libertado pelos contra-movimentos dos outros jogadores - ao brasileiro, depois, faltava a perícia a tomar a melhor decisão ou executar o passe certo, falências que lhe custa enxotar. O FC Porto concentrava muitos jogadores por dentro, deixando a largura para os alas.

Viam-se nuances a ser feitas, dinâmicas a desenrolarem-se diante dos nossos olhos, incluindo a queda para tentar algumas mais ousadas. Iván Marcano pareceu em momentos um lateral esquerdo, a ir cruzar e correr pelas costas de Francisco Moura, o ala. Nehuén Pérez, o outro central, a correr com a bola contra adversários à entrada da área do AFS, vindo da Vila das Aves para sofrer com a intensa pressão aplicada pelo FC Porto logo após perder a bola. Em 45 minutos, espreguiçou-se em apenas um lance, quando o rápido John Mercado atacou os 50 metros entre os defesas e a baliza, isolou-se, lá foi ele, mas Diogo Costa barrou o remate.

Diogo Cardoso

Apesar dos pés finos que tinha no meio-campo com Lucas Piázon, Jaume Grau e Lucas Fernandes, as possibilidades do AFS decaíram logo na jogada inicial da segunda parte: Nacho, impetuoso defesa, varreu Francisco Moura para ver outro cartão amarelo.

Se foi a expulsão a abrandar o FC Porto haverá o seu treinador de dizer, mas a equipa, confortável na sua nova vida, serenou um pouco o ritmo. A bola sentia mais toques de Alan Varela, que usufruiu de mais tempo e espaço, Eustáquio teve de ser menos defesa e podia jogar mais como médio. Rodrigo Mora acrescia em protagonismo, também em bolas não aproveitados por querer mais uma finta, outra simulação, uma revienga adicional vinda da clara vontade em querer engordar os golos. Quando saiu de campo, pela hora de jogo, quem já marcara fora Fábio Vieira (61’), entrado na área para responder à primeira a um cruzamento de Moura.

No quarto de hora seguinte, pachorrento na andadura das coisas, o jogo foi espicaçado unicamente pela férrea intenção de Samu, esfaimado por golo, a rematar à distância uma vez para Ochoa sujar o equipamento, outra para alguém na bancada sentir a bola. Sem festejar no Dragão desde dezembro, por vezes a sede embaciou-lhe a tomada de decisão. A falta de ação, porém, não enferrujou os reflexos de Diogo Costa, cujas mãos evitaram que Gerson Rodrigues fizesse uma gracinha, de cabeça, no único remate do AFS além-intervalo, gerado por um mau passe de Nehuén Pérez.

JOSE COELHO

Pesem as largas melhorias, mesmo embalado por métodos atacantes aprimorados e sintonias com bola que faltavam, o FC Porto não curou todas as suas insuficiências. Saídos Rodrigo Mora e Fábio Vieira, a equipa não se fez ditadora absoluta da bola contra um adversário só com 10 jogadores. Sem os dois com maior apetência para colar a posse aos pés, aos dragões custou dominar tudo com Tomás Pérez e André Franco, as segundas linhas, no miolo. Nem a presença de Danny Namaso na frente, com a sua calma nas ações com a bola, serviu de referência nesse momento.

Como também dissera Martín Anselmi, os dragões vinham a ser bons em poucas coisas num jogo, depois noutras diferentes na partida seguinte, sem pôr ordem na feitura que o treinador pretende. Em nove encontros tidos em quase dois meses, o FC Porto era uns momentos aqui e acolá. Contra o AFS vinham aí uns dragões com outra cara ofensivamente. O treinador não mentiu. A equipa ganhou, jogou bem durante largos períodos, escapuliu-se mais ao erro, soube ser dinâmica a atacar, mexeu com as atenções do adversário, rendeu-se a ter Rodrigo e Fábio perto da bola. Com o atual elenco, apenas assim terá bases para ser coerente e mandona.

À décima tentativa, a equipa venceu-se, superou hesitações. Viu-se uma intenção clara, um processo limpo. “A cada fim de semana o FC Porto tem dois rivais: o adversário e o próprio FC Porto”, sugerira Martín Anselmi, finalmente vitorioso no Dragão graças à equipa que ganhou a si mesma. Por muito que o técnico, por admissão própria autor de respostas “românticas e filosóficas” nas conferências de imprensa em que se tem alongado nas explicações, diga que “os remates à baliza não contam”, pelo menos indicaram bastantes coisas. Elucidaram, também: o FC Porto acertou 10 na baliza adversária e, dos 20 que registou, 14 aconteceram dentro da área. “O dado é quanto perigo gera um remate à baliza”, defendera Anselmí. Em Braga, só três tinham acertado no alvo.

E nem Rodrigo, nem Fábio, estiveram lá.