Nos últimos tempos tenho tido o privilégio de participar em várias ações de formação com jovens, para falar sobre essa coisa sempre especial que é a ética. Ética no desporto e na vida. E é giro perceber que a maioria dos miúdos tem uma inocência muito própria, sobretudo à frente de pessoas que conhecem/reconhecem de outras paragens. Com pessoas que associam a mundos mais mediatizados, como o da política ou do futebol.
Por regra são extremamente educados, divertidos e tendem a levantar questões tramadas, daquelas que nos encostam às cordas. Há ali arrojo, irreverência e um enorme sentido de oportunidade.
Ao contrário dos adultos, tendencialmente mais polidos, os mais novos disparam tudo o que lhes vai na alma, sem ses nem mas. Sem quaisquer filtros. Isso é delicioso, mas muito desafiante para quem está do lado de cá.
Numa dessas iniciativas, fui convidado a participar numa conferência promovida por um colégio, onde era suposto dissertar sobre essa coisa das boas práticas. No fim da sessão e ao passar a palavra para eles, levei o primeiro tiro a frio:
"Já roubaste muito ?"
O sorriso do rapaz, com gargalhadas tímidas dos comparsas do lado, foi memorável. Mas o mais interessante mesmo foi ter ficado com a sensação que todos eles (ou pelo menos a maioria) esperava por um rotundo "Sim, já roubei!!!" da minha parte. E esperavam porque nas suas cabecinhas, na forma como percecionam futebol, os árbitros roubam.
Reparem: pare eles, "roubar" é prejudicar a sua equipa. "Roubar" é uma tirada inofensiva, uma expressão normalíssima, que não querem que magoe ou ofenda. É só a palavra de bolso, a que está mais à mão quando se referem ao malandro que toma decisões em campo.
Um amigo dizia-me em tempos que a formação ideal tem que começar no útero, senão já é tarde. Percebo bem o alcance da afirmação.
De facto os nossos filhos, as meninas e meninos, os jovens de hoje, estão formatados para um conjunto de ideias pré-concebidas. Ideias baseadas no que ouvem, aprendem e veem em casa, na escola, no treino ou na rua.
Por isso é difícil tentar convencê-los que os árbitros não são "ladrões" e que esse tipo de expressões não são lá muito simpáticas. É difícil tentar inverter uma ideia que interiorizaram como verdade indesmentível.
Se este tipo de iniciativas, se estas conversas de proximidade não existirem, se não insistirmos neste tipo de ações junto dos mais novos, o chip com que crescerão estará viciado à partida. Isso significa que muitos deles poderão um dia ser os tais adultos que, enquanto adeptos, jamais saberão respeitar o jogo, os adversários ou os árbitros.
Claro que há nenhum drama em ser chamado "ladrão", algo que qualquer árbitro ou ex-árbitro ouve desde que o dia em que começou a atuar. Tem até a sua piada vindo da boca de quem vem.
O verdadeiro drama é perceber que, no futuro, a irracionalidade, a intolerância e a violência podem continuar a caracterizar a relação de alguns adeptos com um dos agentes mais indispensáveis do jogo. E não é suposto ser assim. Nós não queremos que seja assim.
Moral da história: continuar a formar, educar, explicar, esclarecer, sensibilizar, repetir, insistir, persistir.
Nesta matéria, a pedagogia é o único caminho possível.