Temos que recuar a 2007. Paulo Cardoso era uma das referências do scouting em Alcochete e é-lhe endereçada a missão de descobrir novos horizontes, para lá do equador. A CAN sub-17 joga-se em Fevereiro no Togo, a Nigéria assume o crónico favoritismo e sagra-se campeã, com 15 golos marcados em cinco jogos. Paulo Cardoso anda por lá a inteirar-se. Uns meses depois, a mesma geração viaja até à Coreia do Sul para disputar o Mundial. 16 golos marcados pelo caminho, França, Argentina e Alemanha deixadas para trás e Espanha a sucumbir na final.
Chrisantus, que não faria a carreira imaginada, foi o goleador-mor do conjunto e só não foi melhor jogador do torneio porque se destacou um alemão, um tal de Toni Kroos; Oladele Ajiboye, o keeper, tornou-se protagonista ao defender três penalties duma geração espanhola com Ignacio Camacho, Illarramendi ou Bojan Krkic; mas em jogo jogado, nas incidências do miolo, a grande figura foi Rabiu Ibrahim, um organizador imperturbável apesar da aparente fragilidade.
Vestiram-no com a 10 e, claro, obviamente, naturalmente, não haviam dúvidas, estava ali o novo Jay Jay Okocha. Paulo Cardoso quis-se logo antecipar, engendrou de imediato um estratagema. E além de Rabiu, havia outra prioridade: o fantasista ganês Ishmael Yartey, pérola canhota que sim, realmente acabaria por dar sinal mais ao futebol português – mas ao aterrar na Portela, em vez de apanhar a Vasco da Gama para chegar a Alcochete o mais rápido possível, dirigiu-se lentamente para a 25 de Abril, por alguém lhe ter transmitido que para o Seixal era mais fácil por ali.
O Mundial foi em Setembro e, não se sabendo bem como, em Novembro, descobre-se que Rabiu estava a treinar em Alcochete: à experiência, imagine-se. Um dos craques dum Mundial sub17 desaparece durante duas semanas – sim, ninguém sabia dele – e surge… a fazer testes no Sporting.
Quando se descobre o paradeiro, a assinatura dele surge à pressa num contrato de quatro anos. O Sporting pagava 800 mil euros – o juvenil mais caro de sempre para os Leões, até hoje – e antecipava-se ao interesse de Manchester United, Arsenal ou Liverpool. Para se perceber a celeridade com que se procedeu ao acordo basta perceber que o seu certificado só chega à Federação… em Fevereiro, três meses depois. Essa antecipação tinha sido vital – afinal de contas, Ibrahim era um dos destaques da nova geração africana, sendo constantemente comparado e agrupado a Adebayor, Balotelli ou Obi Mikel.
Contudo, as coisas não correm como suposto. O agente, um homem envolto em polémicas chamado Bertram Ekenwa, não tem paciência para a adaptação do prodígio. Exige tempo de jogo na equipa sénior, chegando a criticar abertamente as preferências de Paulo Bento. Ao fim de dois anos e apenas uma presença no banco de suplentes, as coisas descambam. Quando o Sporting tenta profissionalizar o contrato, tornando-o finalmente peça dos séniores, Bertram aproveita para fazer finca-pé.
«Se acreditam no valor do jogador, então têm de investir na sua renovação. Se não querem gastar dinheiro então deixem-no sair. Foram-nos apresentadas duas propostas, ambas rejeitadas: a primeira não incluía qualquer melhoria salarial e a segunda estava muito aquém das nossas expectativas. Se, até ao final do próximo mês, não receber uma proposta que retrate o real valor do Rabiu, então nem sequer voltamos a falar sobre este assunto. Ele assina em janeiro por outro clube – há grandes equipas europeias que já me perguntaram por ele -, mas fica no Sporting até terminar o contrato».[1]
Nunca chegariam a acordo, infelizmente. A saída acontece e o Rabiu fica num limbo preocupante – sem clube e sem ritmo, numa fase fulcral do seu desenvolvimento. Anos mais tarde, Rabiu não tinha dúvidas ao apontar responsabilidades, em declarações reproduzidas pelo portal especializado insidefutbol.com:
«O meu antigo agente é o culpado. Sempre pensou mais em como poderia lucrar em vez de me proteger,à minha carreira e ao meu futuro. Mentiu-me imenso».
Alguém mais responsável surge na sua vida: um senhor chamado Tony Harris, que lhe garantiu testes em clubes holandeses. Primeiro o Venlo, depois o Telstar, da segunda Eredivisie. Talvez o seu currículo pedisse mais, mas Rabiu sabia que era preciso ser humilde depois do fracasso.
Trabalhou, o talento veio ao de cima e os holandeses ficaram estupefactos – só não o inscreveram porque havia um tecto mínimo de 264 mil euros anuais para jogadores extra-comunitários e, obviamente, sem investidor, era impossível. Beco sem saída e questão entravada que só foi solucionada com um amigável frente ao PSV: Ibrahim foi o melhor em campo e agora sim, havia dinheiro para o contratar e um contexto à sua medida.
No início de 2011, era inscrito pelo PSV e o desafio era imenso – tinha que competir por um lugar com Toivonen, Labyad ou Wijnaldum.
Não correu bem, por uma razão ou outra. Foi 18 vezes ao banco de suplentes sem realmente ter oportunidades. Tony Harris, em 2012, decidiu dar outro rumo à carreira do miúdo, conseguindo-lhe, apoiado ainda na fama de wonderkid, uma mudança para Glasgow e para o Celtic Park.
Mas foram mais dois anos em vão. Uma só aparição pela equipa principal e a estagnação total. Em 2013, o Celtic permitia que se transferisse a custo zero para o Kilmarnock. Era o tudo ou nada: não havia mais espaço para desculpas de dificil competitividade ou falta de oportunidades claras. O Kilmarnock terminara no 9.º lugar da época anterior.
Chegou, integrou-se e começou como titular. Participou nas nove primeiras jornadas, ainda que não conseguisse levar a equipa a vencer por uma única vez. À 10.ª jornada, frente ao Ross County, Rabiu começa mais uma vez como titular. À passagem da meia-hora, cai inanimado no relvado. As notícias dizem que o colapso resulta dum choque com um adversário; quem viu em directo e ao vivo, relata que viu Rabiu a cair sozinho na zona do grande círculo.
É levado em maca imediatamente para o hospital e os colegas, em solidariedade e homenagem, rasgam-se em campo para um 2-1 final, a primeira vitória da época. Ainda Ibrahim estava em convalescença e os colegas arrancam para mais três vitórias no mês seguinte. O nigeriano nunca mais integra os trabalhos de conjunto e o Kilmarnock acaba novamente em nono classificado, salvando-se da queda por quatro pontos.
Na primeira aventura sénior com continuidade, a saúde como entrave. Nada corria bem. A mudança de ares surgiu novamente como solução. Trocava-se o frio escocês pelo frio eslovaco – afinal, o que é frio para quem já experienciou as Highlands? O Trecin compreendeu as circunstâncias e teve o discernimento de lhe dar a calma necessária para recuperar do problema de saúde.
Só em Novembro de 2014 começa a jogar com regularidade e é precisamente a partir daí que o clube arranca para o título – a sua entrada na titularidade coincide com série de 12 jogos sem perder, com onze vitórias, sprint imaculado que resultou em dobradinha e Ibrahim como grande figura. Ano seguinte a mesma coisa. Finalmente estava lançado e à frente chegou-se o Gent, prometendo-lhe futebol de Liga Europa. Lá foi ele.
Não correu bem, voltou à rotina de banco de suplentes e teve que ser resgatado pelo Slovan Bratislava, os gigantes eslovacos que perceberam que a sua saída resultara na queda do Trecin para quarto lugar no campeonato seguinte e permitiu a recuperação da Taça eslovaca para o seu museu. Um milhão de euros custou a operação, traduzindo a confiança no seu talento – significando a maior transferência de sempre daquele futebol até então –que, como farol dos companheiros, garantiu ao Slovan a conquista de quatro campeonatos e duas taças até 2023, até Ibrahim, do alto da sapiência empregue pelos mesmos 33 anos de Cristo e semelhante experiência de quase morte, decidir parar.
[1] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/sporting/detalhe/bertram-ekenwa-tem-de-investir-no-rabiu