Quando Real Madrid e Manchester City foram sorteados para jogar um contra o outro em mais uma eliminatória da Champions League (desta vez numa fase bem precoce da competição), muitos diziam tratar-se de uma autêntica final antecipada.

Mas todos esses prognósticos de uma eliminatória apaixonante e equilibrada, foram desde logo gorados com uma primeira mão de clara superioridade do Real Madrid, que conseguiu obter (desta vez de forma justíssima) mais uma das suas célebres remontadas no último minuto de descontos, num golo de contornos tão ridículos quanto inadmissíveis numa competição desta dimensão.

A maneira de defender do Manchester City é absolutamente medonha e esse golo não é digno de uma equipa de alta competição, e revela o quão frágil é a equipa e como esta fica tão vulnerável e exposta a transições ofensivas, sofrendo golos em quase todos os jogos.

Outrora uma trave mestra da equipa de Guardiola, Ederson está a atravessar por uma enorme crise de confiança, e também ele não contribuiu para que a restante estrutura defensiva se consiga exibir ao nível que sempre nos habituou.

Para a segunda mão e apesar de um resultado adverso, Guardiola sabia e admitiu na conferência de imprensa prévia ao jogo, que a equipa teria de ser corajosa e jogar de forma destemida em pleno estádio Santiago Bernabéu, que brindou uma receção apoteótica aos seus jogadores antes do início do jogo aquando da chegada do autocarro que transportava a equipa merengue.

Estava dado o mote para mais uma daquelas noites mágicas que parece só ser possível quando se trata de um jogo do Real Madrid na Champions League.

Nesta competição, a equipa exibe-se ao seu melhor nível, transcende-se completamente e atinge patamares de excelência, que contrastam com o nível que muitas vezes demonstra na liga doméstica, onde perdeu sete pontos nos últimos 3 jogos e que lhe fez perder inclusive a liderança da classificação para o seu grande rival Barcelona.

Mas a Champions League é a competição do Real Madrid, e apesar de até agora ainda não ter demonstrado uma grande qualidade de jogo e ter tido uma fase de grupos bem modesta para os parâmetros do Real Madrid (que fez com que tivesse que ter jogado este play-off de acesso aos oitavos-de-final da competição), tinha deixado bem patente o seu poderio na primeira mão em Manchester.

Para o jogo da segunda mão em Madrid, Guardiola (que na véspera tinha admitido aos jornalistas que lhes tinha mentido quando disse no fim do jogo da primeira mão que havia apenas 1% de probabilidades de reverter a eliminatória), operou uma autêntica revolução no onze inicial, fruto de algumas lesões mas igualmente na tentativa de travar a intensidade do meio-campo do Real Madrid e surpreender taticamente Carlo Ancelotti.

Para o onze titular, saltaram os reforços de inverno Khusanov, Marmoush e Nico González (bem conhecido dos adeptos portugueses), assim como Gundogan e Phil Foden e saíram do onze os lesionados Akanji e Haaland (que não estava em perfeitas condições depois de se ter lesionado no fim do jogo doméstico contra o Newcastle), Kovacic, de Bruyne e Grealish.

John Stones voltou à sua posição de origem e o uzbeque Khusanov foi o escolhido para tentar travar as galopadas de Mbappé e Vinicius Júnior. Eu fui um dos que considerei bastante acertado e igualmente imprevisível o plano inicial de Guardiola. Apesar de estar limitado fisicamente, Haaland seria novamente uma presa fácil para o regressado Rudiger, que já lhe tomou as medidas em jogos anteriores e que sempre se havia superiorizado ao avançado norueguês.

Marmoush é um jogador que participa mais do jogo, é um avançado mais móvel e não é um 9 puro. Gundogan já não está nos teus tempos áureos, mas um meio-campo formado pelo experiente alemão, pela robustez física de Nico e pela inteligência de movimentos de Bernardo Silva, podiam causar problemas à defesa do Real Madrid, que neste momento está privada de elementos muito importantes, como Militão e Carvajal.

Nos primeiros três minutos (ridículo que faça este tipo de consideração, mas é necessário que a faça), o Manchester City tentou impor o seu jogo e procurou várias combinações com Marmoush, mas a primeira vez que perdeu a bola, foi fatal.

Lançamento perfeito do jovem Raúl Asencio (jogador formado nas escolas do Real Madrid e que começa a impor-se no seio da defesa madridista) nas costas da defesa para Kylian Mbappé inaugurar o marcador picando a bola por cima de Ederson (em mais uma saída absurda do guardião brasileiro).

Mbappé começa a ser por fim o jogador que todos temiam quando foi contratado pelo Real Madrid e por que todos os adeptos do Real Madrid ansiavam.

O pecúlio goleador de Mbappé tem sido bastante interessante esta época (quase 30 golos em todas as competições), mas os adeptos acusavam-no de não estar a ser decisivo nos jogos contra adversários de maior dimensão, o que não deixava de ser uma realidade mas também era certo e sabido que uma vez ultrapassado o natural período de adaptação, o avançado francês voltaria a ser aquele atacante letal e imparável para as defesas adversárias.

O atual estado de forma da equipa comandada por Pep Guardiola é um abismo comparado com o domínio exercido anteriormente, mesmo quando não conseguiu ultrapassar o clube merengue nas eliminatórias de épocas transatas.

Aí o fator sorte foi bastante decisivo, pois as últimas eliminações do Manchester City frente ao Real Madrid tinham sido tão cruéis quanto injustas. Mas desta vez, não houve qualquer dúvida de quem foi a melhor equipa desta eliminatória.

Ao minuto cinco de um jogo da segunda mão de uma eliminatória que se considerava que iria ser bastante competitiva, ficou definido o rumo e o desfecho da mesma. O que se viu nessa primeira parte foi um autêntico monólogo do Real Madrid, que dominou o jogo a seu belo prazer. Chegou a ser insultante e até humilhante a maneira como o Real Madrid se conseguiu superiorizar a uma equipa que é neste momento uma sombra do que um dia foi e que neste momento, necessita de passar por um evidente e natural processo de reconstrução.

Não me recordo de ver uma equipa de Guardiola mostrar-se tão impotente e tão inferior ao seu adversário. Claro que condicionou o fato do golo do Mbappé ter sido logo no início do jogo, mas esta equipa anteriormente sobrepunha-se a todas as adversidades através do jogo e da intensidade que demonstrava nos seus jogos.

O que se viu em Madrid foi uma equipa descrente, amorfa, apática e sem alma. O resultado ao intervalo registava um 2-0 (obtido novamente por Mbappé depois de uma grande jogada ofensiva do Real Madrid), mas só pecava por escasso, tantas foram as oportunidades de golo de que a equipa de Carlo Ancelotti dispôs.

Neste momento, o Manchester City é uma equipa morta animicamente. A qualquer golo recebido, a equipa dilui-se psicologicamente em campo e o seu jogo deixa de fluir naturalmente.

Rodri faz imensa falta, não estivéssemos a falar do atual Bola de Ouro, contudo não se pode justificar tudo com a ausência do fabuloso médio espanhol, e Guardiola sabe que os problemas da sua equipa não se explicam apenas pelo fato de não poderem contar com o contributo de Rodri.

A resignação de Guardiola ficou bem visível com a não realização de nenhuma substituição ao intervalo. A falta de intensidade e qualidade da sua equipa na primeira parte foi confrangedora, e se Guardiola sentisse que a mesma disponha dos recursos necessários para lutar para eliminatória ou para pelo menos poder causar alguma pressão ao Real Madrid, teria mexido na equipa e feito entrar Doku, Grealish de Bruyne e Haaland e nenhum deles acabou por sair do banco.

Soluções não lhe faltavam, mas Guardiola não decidiu dessa forma e terá tido os seus motivos. A segunda parte foi jogada a ritmo de treino e tornou-se quase penoso de assistir a um jogo entre os dois últimos campeões da Europa, o que diz muito da réplica inexistente da equipa do Manchester City.

Mas, se por um lado, o Manchester City teve uma exibição bastante desapontante, o mesmo não se pode dizer do Real Madrid. Ancelotti voltou a dar a liderança da sua defesa a Rudiger, que provou fazer uma dupla bastante interessante com Asencio, e Tchouameni foi devolvido à sua posição natural e terá feito provavelmente a sua melhor exibição desde que veste a camisola do Real Madrid.

Não é um médio muito dotado tecnicamente, mas a sua presença física impressiona, e é igualmente bastante inteligente a nível posicional. Dani Ceballos renasceu para o futebol e complementa-se muito bem com um médio de outras características e mais preponderância ofensiva, como o caso de Jude Bellingham, um jogador total.

Mbappé está numa forma extraordinária e depois de mais uma grande jogada individual, fez o seu primeiro hat-trick ao serviço do Real Madrid na Champions League e o 20º (!) da sua carreira, quando tem apenas 26 anos.

Já totalmente adaptado, demonstra mesmo ser o melhor jogador do mundo quando está no seu melhor. Rodrygo (quando resolve jogar e se sente confiante), é um craque e parece gostar destes grandes palcos.

Outro jogador que igualmente evidencia todas as suas qualidades quando se dedica apenas a jogar (desta vez, cometeu a rara proeza de não reclamar uma única vez com o árbitro nem confrontar nenhum adversário), é o internacional brasileiro Vinícius Júnior, que com a sua velocidade e atrevimento, continua a fazer a diferença perante defesas não tão compactas como as do Manchester City.

É uma equipa muito bem montada e tem de ser considerada uma das claras favoritas a mais uma conquista da Champions League. Tem uma mescla de experiência, irreverência e juventude (aliadas à fome insaciável de Mbappé), e serão certamente um adversário temível para qualquer equipa.

Um agregado de 6-3 no cômputo geral da eliminatória, não deixa margem para dúvidas, e certamente representará um fim de ciclo. Ou de Guardiola, ou de alguns dos seus jogadores talismã nos últimos anos, como Gundogan, Ederson, Bernardo Silva, ou Kevin de Bruyne.

O Manchester City ainda conseguiu marcar o golo da consolação no último minuto de descontos através do ex-portista Nico González (que demonstrou ainda não estar preparado para jogos deste calibre) depois de um livre superiormente executado por Marmoush, que foi dos poucos que se salvou no meio de uma equipa sem chama e que foi um autêntico deserto de ideias na capital espanhola.

Mas o seu ao seu dono. Esta foi a noite de Mbappé. A noite em que o rei voltou ao seu trono. Anotou três autênticos golaços só ao alcance de um predestinado e todos eles de uma classe infinita.

E dessa forma, numa noite de quarta-feira em Madrid, Mbappé volta a ser o melhor do mundo.