No primeiro pensamento, num impacto inicial, 2010 não parece assim tão distante. Não pode ser assim tão distante. Mas depois a racionalidade entra em campo e constata que 2010 está tão longínquo como 2040 e apercebemo-nos que, bem, se calhar 2010 já foi há algum tempo.
Mas há algo mais do que tempo a distar-nos de 2010. Há mais do que dias, meses, anos. Na verdade, o ambiente, o zeitgeist, o espírito da época é diferente. Se antes havia um toque de otimismo antropológico em relação à evolução tecnológica, uma ideia de progresso benéfica e entusiasmante, agora até o menos cético assumirá que o universo das redes sociais, da inteligência artificial ou das deep fakes não representa uma mera linha ascendente de melhorias.
Se hoje há dúvida, hesitação, medo, incerteza, em 2010 havia excitação. Se hoje falar de redes sociais parece ser mergulhar nas profundezas da geopolítica, em 2010 era outra coisa.
Para parte da juventude da altura, num tempo pré-TikTok, quando os smartphones não eram assunto generalizado, 2010 e internet eram Facebook e Youtube. E, nesses cantos digitais, havia um ser humano que transbordava otimismo, alegria, entusiasmo. Um símbolo da tal outra época. Ou será a mesma época, e fomos nós — e ele — que crescemos?
Há cerca de década de meia, um adolescente magro e esguio, de penteados diferentes, fita no nariz e sorriso contagiante era o rei dos vídeos online. Ainda nem se falava bem do conceito de ser viral, ainda nem havia reels, e já ele era um reel em andamento, uma complicação de pequenos vídeos vinda do outro lado do Atlântico.
Era 2010 e o fenómeno Neymar da Silva Santos Júnior tornava-se o primeiro grande fenómeno desportivo nascido, consumido e amplificado via redes sociais. De Mogi das Cruzes passou para o Santos, no Peixe conquistou o Brasil, a América do Sul, o mundo.
Como o zeitgeist se alterou, também ele mudou. Veio para a Europa, ficou mais forte, ganhou e perdeu. Ganhou títulos, ganhou dinheiro, perdeu encontros, perdeu forma física. Perdeu, muitas vezes, o sorriso. O otimismo.
Neymar saiu do Santos a meio de 2013. Agora, 11 anos e meio depois, está de volta a casa. Rescindiu com o Al-Hilal, por quem só atuou sete vezes desde o verão de 2023, e assinou pelo emblema da Vila Belmiro.
O final da primeira década do século XXI parecia um cruzamento de oportunidades para o Brasil. Vinha aí o Mundial 2014, logo a seguir os Jogos de 2016, havia promessas de desenvolvimento. Naquele país, um novo rei começava a construir-se.
Em 2009, um rapaz de 17 anos debutou pelo clube de Pelé. A ascensão foi implacável: 14 golos no ano de estreia, 42 no seguinte, 24 em 2011, 43 em 2012. Marcou 136 vezes em 225 partidas até se mudar para Barcelona, ganhou a Libertadores, a Recopa Sul-Americana, a Taça do Brasil.
Mas, muito além de títulos, aquela foi uma experiência de sensações. Na verdade, quem é que na Europa via aquelas partidas? Não muitos. Quem é que via aqueles vídeos? Todos.
E aí veio o rei da internet. O “Eu quero tchu, eu quero tcha”, feito festejo de golo e cantado ao vivo. O “Ai se eu te pego” explorado até ao limite, também começando por ser celebração em campo, mas rapidamente indo muito além disso.
Chegaram aquelas fintas, vistas uma e outra vez no Facebook. Será que aquilo resultaria na Europa? Era a pergunta que dominava deste lado do Atlântico, onde Messi e Ronaldo pareciam marcar golos todos os dias.
As compilações, ao som do “Eu quero tchu, eu quero tcha", do “Ai se eu te pego” ou de outro som do género qualquer, pareciam vindas de outra modalidade. Mais ninguém jogava àquilo. Nem sequer sabíamos como chamar a certas fintas, que não eram pedaladas à Ronaldo, não eram o elástico de Ronaldinho Gaúcho, era uma espécie de dança leve, esguia, solta. O corpo rodava em todas as direções, profundamente livre, indiferente à física ou aos limites da anatomia.
A novela sobre a saída do Brasil começou a ser criada praticamente desde que Neymar se estreou no Santos. Enquanto se discutia sobre se Madrid ou Barcelona seriam os destinos — não havia bem outra hipótese, tendo em conta os cânones da época —, o fenómeno prosseguia.
Era um fenómeno em diferido, consumido depois de acontecer, saboreado em vídeos. O que foi aquele chapéu com a sola do pé? Qual a lógica daquela caneta diante do Fluminense?
Enquanto se imitam as coreografias, nenhum golo terá captado tanto a essência daqueles tempos como o apontado ao Flamengo que venceria o Puskas de 2011. Foi no Vila Belmiro, o palco preferencial daquelas obras; começou com um numero de pés, um par de carícias na bola que tiraram dois adversários do caminho; teve direito a tabela com um companheiro, porque naquelas artes havia sentido coletivo, não fosse aquela equipa um conjunto vencedor de Libertadores; houve progressão, velocidade, rapidez naquelas pernas finas e magras, ainda com pouco ginásio; na parte final do sprint, quando o oxigénio poderia faltar, houve novo número, nova arte, novo impossível escrito com botas de cores berrantes.
Tudo naquele Neymar adolescente ou jovem adulto era singular, único, propriedade privada. Só ele fintava assim. Só ele driblava tanto que seria capaz de driblar a própria sombra. Só ele conjugava as botas extravagantes com os penteados arrojados com o mínimo de sentido estético, nem que não fosse por ser coerente com as jogadas livres, soltas, sem amarras.
Filho do futsal, o futebol de Neymar parecia difícil de imaginar, quanto mais de executar.
Neymar volta, a dias de cumprir 33 anos, transformado noutro Neymar. É o vencedor da Liga dos Campeões — marcando sete vezes dos quartos de final em diante no triunfo do Barcelona em 2015 —, da La Liga ou da Ligue 1, o melhor marcador da história da seleção do Brasil, com 79 golos em 128 internacionalizações.
Mas é, também, o Neymar das lesões. Segundo as contas do “Transfermarkt”, esteve mais de 800 dias de baixa por problemas físicos desde 2020, o equivalente a mais de dois anos parado. Desde que saiu do Barcelona, convencido que nunca poderia ser o dono do trono da bola enquanto estivesse na mesma equipa de Lionel Messi, nunca fez mais do que 31 encontros por um clube numa temporada.
Num futebol robotizado, de padrões e repetições, de máquinas e engrenagens, Neymar assumiu-se como representante de uma espécie única. Verso livre, driblador, criador, jogando melhor quanto menos posição fixa tivesse.
Aterrou rotulado de sucessor de Messi e Ronaldo e foi, em quase tudo, tão diferente. Menos obcecado, menos eficaz, menos vencedor, menos constante. Com uma enorme capacidade para tomar más decisões de carreira. Mais humano, mais falível, menos máquina. Aterrou rotulado de sucessor de Messi e Ronaldo e, na verdade, foi mais um jogador do passado do que o futebolista do futuro.
Neymar volta a casa em busca do tal ambiente de 2010. À procura do sorriso. Tal como o zeitgeist, também ele perdeu otimismo. Mal jogou na Arábia Saudita, assumiu que os últimos tempos no PSG foram “um inferno”.
Não há só romantismo no regresso. A rescisão com o Al-Hilal rendeu-lhe, segundo o “Globo Esporte” e a “Marca”, qualquer coisa como 62 milhões de euros. A assinatura pelo Santos poderá ser o primeiro passo para o seu pai — falávamos de falta de romantismo, não era? — comprar o clube, numa ideia assumida por Neymar Júnior em recente entrevista ao programa de Romário no YouTube.
Nessa conversa com a estrela do Mundial de 1994, Neymar assumia o objetivo de estar no Mundial 2026. Uma última tentativa de levantar o hexa. O caminho para a derradeira Copa passa por casa, pelo regresso da alegria.
2010 foi há muito tempo. Neymar já não é aquele Neymar, o mundo já não é aquele mundo. Os regressos não costumam correr bem. O corpo do craque está massacrado, já não há a leveza livre que progride como o vento. Cá está o pessimismo de 2025. Talvez rever aquelas compilações ajude a voltar à alegria. O tempo não anda para trás, mas Neymar tentará olhar para 2026 indo buscar as danças de 2010.