Sem querer tornar isto numa aula de História: San Marino, apesar de pequenito e engolido pela Itália, é o Estado mais antigo do Mundo. Fez-se independente dos Romanos em 301, com 60 quilómetros quadrados e 30 mil habitantes, se calhar menos naquela altura – o melhor ponto de comparação com a nossa realidade é Setúbal, que conta 50 de área, menos dez mil, mas tem o triplo dos habitantes.

Agora imaginem que Setúbal era independente, criava uma selecção (em 1931) e em 1988 decidia avançar para a UEFA e para a FIFA. Obviamente, não seria justo pedir grande coisa. Por isso San Marino só ganharia o primeiro jogo em 2004, o segundo e o terceiro passados mais vinte anos. Adeptos só mesmo os mais fiéis. Ou não? Se formos pelos dados proporcionados pelas internetes oficiais, no Instagram são 2312 adeptos, numa página que se diz institucional, mas não posta nada há 435 semanas (oito anos, pessoal).

Mas San Marino é de culto. Habituámo-nos a vê-los nas qualificações como o simpático adversário que possibilitava melhorar o goal average (e sempre à espera que calhassem nos grupos de Portugal, em vão).

E a Internet, sobretudo o antigo Twitter, inundado por mileniais sempre a salivar de nostalgia, não esquece esse imaginário, o da génese, o da criação.

Uma coisa leva naturalmente à outra, as paragens para Selecções vão sendo cada vez mais demonizadas pela impertinência com que surgem nos calendários (que seria daquele Nápoles de Spaletti e do primeiro Benfica de Roger Schmidt na Champions, se não tivesse existido paragem de Março…?) e isso resulta num claro afastamento entre os mais fervorosos e as equipas nacionais, apontadas como habitat de interesses obscuros de agentes e trocas de favores.

Uma coisa leva a outra, esses fervorosos tinham que arranjar tema de conversa para as pausas internacionais (cada vez mais frequentes, barulhos de tosse) e no Twitter surgiu fenómeno que se explica pela predominância da pós-ironia na memética digital e nuances humorísticas, trazidas em parte da cultura de bancada anglófona: San Marino vence o Liechenstein para subir ao primeiro lugar e qualificar-se para a divisão acima na Liga das Nações e surge algo como isto no feed.

Duma página que não passa duma conta paródia, mas conta 180 mil seguidores. Uns dias antes, uma vitória sobre o Liechenstein tinha interrompido os tais 20 anos de jejum de triunfos (140 jogos, um recorde mundial) e um dos posts mais visto do dia foi este, em reacção ao golo decisivo: 12 milhões de visualizações, 287 mil likes, 1812 republicações.

SanMarino Fútbol nem é uma conta exclusivamente focada no futebol sanmarinense – nos interregnos para futebol de clubes, os posts centram-se sobretudo no futebol latino-americano, entre México e Argentina.

Mas quando o assunto são as Selecções, a conta com 357 mil seguidores assume as vezes de conta oficial, já que assim é erroneamente interpretada pela boa disposição dos seus posicionamentos, que levam a momentos como este:

E a dores de cabeça como estas, mesmo apesar de constar explicitamente na bio do perfil que não se trata do perfil institucional:

A internet exponencia a capacidade humana de se agregar de acordo com padrões comportamentais ou símbolos comuns, que instigam ao sentido de partilha e provocam a reprodução de comunidades por geração espontânea.

San Marino, materializando na perfeição o arquétipo do herói fraco que se apoia na capacidade de resistência para vencer o mal, a clássica e rentável história do underdog, da personagem mais humana possível, com mais defeitos que qualidades, era um óbvio candidato a sensação cibernáutica, só não se sabia bem quando. Em 1976, Richard Dawkins agarrou nas ideias de Darwin para desenvolver a teoria memética, no seu Gene Egoísta.

Muito por alto, defendeu que, como o gene se pode considerar um pacote de informação hereditária, o meme poderia ser um pacote de informação cultural. O meme pode ser uma ideia, um desenho, um som, valores estéticos ou morais e funciona sobretudo por associação – o traço dum desenho liga-se à linguagem estética de determinada personalidade e daí surge um meme, que se transformará quando colidir com outra ideia, e assim sucessivamente – ou por variação, quando é interpretado por diferentes pessoas: quem toma contacto com o meme altera-o por força da sua própria realidade e percepção do mundo. Quem conta um conto acrescenta um ponto.

E como o possível anonimato desvenda na Internet as possibilidades impraticáveis da vida real, as emoções intensificam-se. Se na política e campos mediáticos os grandes tiranos sobrevivem pelo uso da força e autoritarismo, na Internet são vulgarizados ou ignorados. Grandes comunidades surgem mais facilmente em volta das figuras frágeis.

Quando a Liga das Nações foi criada, possibilitando a competição exclusivamente entre equipas do mesmo calibre, abriu-se uma oportunidade de ouro. Era possível ganhar pela primeira vez na história, oficialmente – que a vitória de 2004 foi… num amigável. Na primeira edição, Luxemburgo, Bielorrússia e Moldávia pelo caminho. Todos ainda muito fortes e por isso seis derrotas, ainda que já sem qualquer goleada daquelas (no máximo só um 5-0).

Em 2020-21, melhoria significativa representada por dois empates num grupo com Liechenstein e Gribaltar. A onda estava a crescer, mas acalmou na edição a seguir porque Estónia e Malta já andam nesta vida há demasiado tempo – muito antes de San Marino sequer pensar em inscrever-se na UEFA, já Malta levava 12-1 da Espanha, numa morna noite no Benito Villamarín (balbúrdia polémica porque a Espanha tinha que vencer precisamente por onze golos para se qualificar para o Euro84).

Só a 9 de Setembro de 2024 começaria outra Liga das Nações. Liechenstein visitava o Estádio Olímpico de San Marino, na municipalidade de Serravalle, sem nunca imaginar que se faria derrotar como há vinte anos por acreditar que nem haveria comparação entre as duas equipas – afinal de contas, Liechenstein já tinha vitórias oficiais. Há muito tempo. 2-1 ao Azerbaijão na qualificação para o Euro2000, por exemplo. Na qualificação para o Mundial de 2006, chegaram mesmo a tirar pontos ao vice-campeão da Europa, recuperando desvantagem de dois golos.

Por amor de Deus, empataram na Grécia (1-1) na qualificação para o Euro2020. Uma coisa é ser 210º e último classificado do ranking da FIFA, outra é ser 204º. A diferença é muita.

Quando Sensoli marca aos 54’, o mundo abriu a boca de espanto. A internet explodiu. Quando se percebeu, a 18 de Novembro, que San Marino tinha ganho o seu grupo – fruto de outra vitória e mais um empate, a melhor prestação de sempre – percebeu-se a força da concentração de energia positiva em torno de alguém.

Se em Novembro San Marino tinha mais pontos conquistados que Manchester City ou FC Porto, era prova de que a transmissão incessante de positividade através das redes sociais funcionava mesmo. A manifestação duma realidade sonhada, mais concretizável quantos mais partilharem desse sonho, ganhava mais um argumento fortíssimo.

A onda mediática de apoio a San Marino nascida naquela vitória em Setembro dava agora à costa em forma de surrealismo. A mais pura magia memética e a eficiente manipulação do tecido da realidade.