Para não deixar provas de qualquer crime cometido, o melhor que o malfeitor pode fazer é não andar cá a deixar rasto. Obviamente que o concretizar da trapaça implica em algum momento consequências visíveis. O truque é que estas não sejam descobertas.
Não é tão simples como parece.
A época ainda agora começou e o Benfica já a pode dividir em duas partes: um antes e um depois de Bruno Lage. Coincidiu a entrada do novo treinador encarnado praticamente com o arranque da Liga dos Campeões. O emblema da Luz pôs o pé a medo na casa do Estrela Vermelha. Não existiam sequer expectativas sobre um arranque de percurso europeu tal o rebuliço causado pela mudança no comando técnico.
Em Belgrado, o Benfica trajou como nunca até então na temporada e escondeu dos olhares do continente a fraca versão de si mesmo. Tornar invisíveis defeitos é um capricho que nos assiste a todos, mas seria possível repetir a dose contra o Atlético Madrid? Foi e confirmou-se que pior as águias não estão desde que Lage chegou. E foi ele, o técnico que construiu a versão 2.0 do Benfica que teve que travar os ‘olés’ que os adeptos entoavam com o avolumar do 4-0. Dois jogos, duas vitórias e a segurança de que a Liga dos Campeões ainda não viu os maus modos do Benfica. O que a Europa não sabe, a Europa não sente e assuntos do foro interno são assuntos do foro interno.
Quando o Benfica largou da manga do Estádio da Luz para o relvado, António Silva foi o último a chegar à roda onde os suplentes fazem palpitar o estrelado objeto de jogo enquanto os titulares tomam medidas mais sérias para o aquecimento do seu corpo. Se a bola dependesse de si para ser reanimada, poderia reservar desde logo passaporte para seguir viagem para o lado lunar. As noites de Liga dos Campeões que consagraram o jovem como um defesa deluxe do futebol europeu escancararam o recuo do seu momento de forma.
Tomás Araújo tinha andado mascarado de lateral-direito, mas, com o regresso de Bah, ocupou a sua posição de origem, ao lado de Otamendi. Importava que não tremesse como varas. Logo aos 30 segundos, Julián Álvarez roubou-lhe a bola. O defesa-central não ficou a dormir no erro e foi recrutar a posse para usufruto dos labores encarnados. Por vezes, o erro tem este efeito descongelador de ideias e, a partir daí, Tomás Araújo esteve sóbrio nas abordagens.
O Benfica fisgava o ataque construindo a três. Álvaro Carreras continha-se em deslocações até à frente para chamar a pressão de Ángel Correa e libertar Orkun Kökçü no centro-esquerda. No flanco oposto, Bah aprofundava conhecimento sobre a linha defensiva do Atlético Madrid com Di María a estabelecer-se como segundo avançado em organização ofensiva.
A abrir o jogo, Pavlidis teve duas oportunidades para marcar. Witsel e Oblak não o deixaram. Se Kerem Aktürkoglu acredita em magia num planeta onde não a há, também tem o direito de rejeitar superstições num mundo que as respeita. O turco sobrepôs ao minuto 13 o golo da sua autoria. Mérito de Bah ao travar a saída do Atlético Madrid para o ataque antes da clarividência encarnada escorrer até ao extremo situado no lado oposto.
Quando Marcos Llorente saiu lesionado, ainda na primeira parte, e, para o flanco direito dos colchoneros, entrou Nahuel Molina, passaram a estar em campo seis campeões do mundo pela Argentina repartidos por ambas as equipas. Muitos segredos devem esconder entre si sobre a ramboia dos festejos que acabou com uma evacuação de helicóptero.
Ainda que não tão conhecido globalmente, Samuel Lino era uma cara familiar ao público português. O brasileiro tirou uma licenciatura em Gil Vicente nos três anos que passou em Barcelos antes de ter uma ascensão tão rápida como invulgar. Sempre que se conseguia pôr a rondar a área, o Atlético Madrid inventava uma solução prática (raramente adequada, para definir o lance). A tentativa de cruzamento de Lino não pode ser criticada, pois, com a complacência de Trubin, acabou inesperadamente na barra. Pavlidis respondeu com uma bola no poste, completando um hat-trick de oportunidades falhadas.
Desde a vantagem que o Benfica se poupava ao esforço de atacar. Apesar de tudo, era uma situação confortável. Koke e Rodrigo De Paul não estavam a ser imaginativos o suficiente para descobrirem soluções em migalhas de espaço. Foi por aí que Simeone começou as alterações (também Griezmann não resistiu às mudanças ao intervalo). Acabadinho de entrar, o malfadado Conor Gallagher foi demasiado pugnaz no contorno que fez a Pavlidis e pisou o avançado dentro da área.
Di María fez o segundo da equipa encarnada. Mais do que isso, desencantou do seu núcleo uma vitalidade que veio ao de cima nos minutos seguintes. Com menos empolgamento e mais raciocínio, podia ter batido Oblak quando apareceu na cara do guarda-redes esloveno. Ou, quiçá, passado ao lado. De qualquer das formas foi aquilo que Bruno Lage procurou quando o salvaguardou de estar constantemente atrás de Samuel Lino e Reinildo. Aursnes, como sempre, não se importou com a tarefa.
O Benfica deixou de recuar a partir daí. As bancadas pediam mais e mais. Bah de canto deu o que era pretendido, o terceiro golo. Depois, Amdouni foi entornado dentro de área e Kökçü, de novo de penálti, foi lá marcar o quarto. A fintar os cacos da moral do Atlético Madrid, os encarnados não fecharam a torneira até ao apito final e Rollheiser ainda acertou na barra.
As bancadas cantaram por João Félix, o internacional português que passou com pouco sucesso pela capital espanhola. Muitos adeptos rojiblancos vieram a Portugal tentar reaver os 120 milhões de euros. Por parte do Benfica, de modo pouco acolhedor, levaram um saco cheio.