“Sou o único padre do mundo que usa os seus próprios meios para chegar ao céu”.

A frase é de Bob Richards, até há instantes o único homem na história a ganhar dois ouros olímpicos no salto com vara. O norte-americano foi campeão em Helsínquia 1952 e Melbourne 1956, com saltos a rondar os 4,50 metros, feitos que o tornaram uma lenda desta arte que vem da Grécia Antiga.

Mais de meio século depois, há alguém que voa quase dois metros mais alto que Richards. Se o norte-americano chegava ao céu, talvez este novo deus do atletismo vá além disso, voe para lá dos limites do Stade de France, entre em órbita, chegue à lua, resolva os mistérios sobre o que há nos confins do universo.

Porque Armand Duplantis não luta contra adversários. Quando se entra numa final com um recorde pessoal 18 centímetros acima do segundo melhor, não se vem, exatamente, para uma disputa. Não está em causa ganhar ou não. “Se só pensasse em medalhas, estaria a passar ao lado de todo o significado do que faço. O objetivo é levar-me ao limite, elevar a fasquia o mais alto possível. Quero saber o quão alto consigo ir”, disse recentemente.

Não é uma final o que se vê no Stade de France. É uma prova de superação de Mondo, a qual ocorre em paralela à disputa que, sim, existe pelas medalhas de prata e bronze.

Neste show do melhor varista da história, Duplantis conseguiu o seu objetivo. Superar-se, ir mais alto. Levou o ouro, igualando Bob Richards como únicos bicampeões olímpicos nesta disciplina, mas conseguiu algo mais importante: pela oitava vez, bateu o seu próprio recorde do mundo. O limite para o ser humano está, agora, em 6,25 metros.

Foi um momento extraordinário. As testemunhas privilegiadas deste herói que estão ali a fingir que são adversários incentivam o sueco. É proibido filmar na tribuna de imprensa, mas as pessoas que estão aqui para proibir que se filme foram as primeiras a sacar dos telefones. À terceira tentativa, Mondo conseguiu. Superou com limpeza a fasquia. Ainda não caíra e já se ouvia um tremendo rugido vindo das bancadas, uma celebração coletiva por se ter assistido a um momento único na história do olimpismo.

Patrick Smith/Getty

Como atores secundários do grande espetáculo do menino que nasceu em Lafayette, Louisiana, filho de pai norte-americano e de mãe sueca, Sam Kendricks, dos EUA, obteve a prata e Emmanouil Karalis ficou o bronze. Nenhum deles conseguiu, sequer, passar a fasquia aos 6 metros.

Desde cedo na quente tarde de Paris que os arredores do Stade de France são um quadro pintado de amarelo. Mais do que em qualquer altura destes Jogos, é a tarde da Suécia, a noite da Suécia, o momento em que se vê mais suecos dirigindo-se para o estádio de Éder — e foi no topo onde se marcou o golo mais importante da história do futebol português que Duplantis saltou.

A relação do atual nome maior do desporto sueco com o país que representa nem sempre foi fácil. Nascido e criado nos EUA, chegaram-lhe a criticar a falta de domínio perfeito do sueco. Mas, nos últimos anos, à boleia da orgia de títulos e da fluência que ganhou no idioma — em parte graças às aulas via Skype que a mãe o convenceu a ter —, Duplantis tornou-se, definitivamente, um ícone sueco. As bancadas do Stade de France provam essa devoção.

Nesta segunda semana de Jogos, na qual o foco de atenção se vira do centro de Paris para o Stade de France, com o atletismo a ser o rei da segunda metade olímpica, um pormenor evidencia logo quem é o protagonista da sessão. Na enorme bancada de imprensa, os primeiros lugares a serem preenchidos não são, como de costume, os centrais, com melhor vista. Não são, sequer, os mais próximos da zona de meta.

Os lugares mais requisitados são os localizados mais perto da zona do salto com vara. Todos querem estar mais perto da lenda de 24 anos. Pressente-se história.

Logo no aquecimento, salta à vista uma evidência. Duplantis corre rápido, corre muito mais rápido que os demais. O sueco é violento no momento antecedente ao contacto daquela vara feita de fibra de carbono ou vibro com uma caixa de 1,08 metros de comprimento, 60 centímetros de largura na parte dianteira, 15 centímetros na traseira e 20 centímetros de profundidade.

Quando começa o concurso, arrancando com a fasquia a 5,50 metros, altura que para Duplantis soará a estar com os pés no chão, o sueco tem um comportamento único entre os 12 finalistas. Enquanto quase todos se sentam no banco a aguardar ou vão dando pequenas corridas, ele está deitado. Tomba-se no chão do Stade de France a olhar para o céu, o céu claro de Saint-Denis. Estará a pensar no quão longe deseja chegar? Estará a questionar-se o que haverá para lá dos limites do mundo, até onde pode voar, qual o limite disto tudo, até onde irá este projeto de ambição pessoal transformado em espetáculo para o mundo assistir?

O relaxamento dura para lá do começo da competição. A fasquia é, no primeiro ensaio do concurso, colocada a 5,50 metros, mas Mondo abdica desse salto, tal como viria a abdicar dos 5,80 metros. Entre ambos, começa a sua prova na segunda altura, a 5,70 metros. São 19h29 em Paris, o sol vai, lentamente, pondo-se e o sueco supera essa fasquia com menos dificuldade do que o público sobe as escadarias para se sentar no Stade de France.

Mondo volta a saltar às 20h30, depois de uma prolongada espera. Naquele momento, dos restantes 11 finalistas, só dois não falharam qualquer ensaio. Bokai Huang, chinês que viria a ser o sétimo, já tinha, com 5,80 metros, o seu recorde pessoal, a mesma marca que deu a Sondre Guttormsen, norueguês que foi oitavo, o seu melhor registo na temporada. Feitos que os varistas festejaram efusivamente, mas não tanto como Emmanouil Karalis, o grego que, ao saltar a 5,90, pareceu possuído pelo espírito de Noah Lyles, sprintando com loucura e parando à frente de uma das bancadas em posse heroica.

Epopeias para uns, um passeio sonolento no parque para outro. Para Duplantes, passar os 5.85 foi feito sem esforço, um pró-forma que obteve entre um instante em que estava deitado e outro em que se sentou. De vez em quanto, mandava umas bocas às testemunhas de vara na mão que estavam perto dele, num tom cordial. Diz-se, nos meandros do atletismo, que os varistas são dos atletas que melhor relação pessoal têm, conexões talvez forjadas pelas longas esperas entre ensaio e ensaio. A forma como todos incentivaram o sueco para o recorde do mundo atesta-o.

Já com a questão do ouro decidido, com as restantes medalhas atribuídas, entra-se na zona Duplantis. Durante quase meia-hora, só ele salta. Anuncia-se pelo sistema sonoro do Stade de France que ele vai tentar o recorde olímpico.

Às 21h51, Armand vai para os 6,10 metros, a melhor cifra da história dos Jogos. Supera-o facilmente e, mal toca no chão, é anunciado que irá tentar o recorde do mundo. Tem três tentativas para superar os 6,25 metros.

"Mondo! Mondo"! Mondo!" Os gritos de incentivo ecoam pelas bancadas. A primeira tentativa não é com êxito, a segunda também não. A terceira é, num momento que ficará para a história como um ponto altíssimo de Paris 2024.

Pela oitava vez, o sueco bateu-se a si próprio. Este é um jogo de Duplantis contra Duplantis, de Mondo contra a história, do sueco para tentar voar, voar mais alto, voar até entrar em órbita. No final da época de 2023, ele já superara a fasquia dos 6 metros 74 vezes na carreira, o que significava que ele, sozinho, havia sido responsável por 34% das vezes na história que se superou tal marca.

Certo dia, quando tinha 3 anos, Duplantis pegou, pela primeira vez, numa vara. Foi na casa da família. O amor foi imediato. Aos 7 já batia recordes do mundo. E aqui prossegue ele, superando-se, voando, reescrevendo a história do atletismo.