O momento na economia mundial é de uma combinação perigosa de dívida pública elevada e de crescimento fraco, pelo que é altura de começar processos de ajustamento orçamental (vulgo austeridade), recomenda o Fiscal Monitor, o documento do Fundo Monetário Internacional (FMI) apresentado esta quarta-feira em Washington DC pelo ex-ministro Vítor Gaspar. O português é desde 2014 diretor do departamento de assuntos orçamentais do FMI e é responsável pelo Fiscal Monitor.

Mas, esse ajustamento tem de ser “amigo das pessoas e da economia”, disse Gaspar, que também recomendou que “o investimento público seja protegido”. O ex-ministro português das Finanças do período da troika referiu que “os cortes no investimento público têm impactos graves sobre o crescimento”, e acrescentou que, “no entanto, é, infelizmente, muitas vezes, a maneira mais conveniente de cortar gastos do ponto de vista político”.

O Fiscal Monitor foi apresentado esta quarta-feira no âmbito da assembleia geral do FMI que decorre até dia 26 de outubro na capital norte-americana. O documento é publicado duas vezes por ano, em abril e em outubro, e é o guia de análise da situação da dívida mundial e das recomendações de políticas orçamentais.

Dívida pública mundial em 100 biliões

Gaspar alertou que a dívida pública mundial deverá atingir este ano um máximo histórico de 100 biliões de dólares (93 biliões de euros) e que se aproxima de regressar em 2030 a um nível de 100% do Produto Mundial em que já esteve no ano da pandemia. Sublinhou que um terço das economias do mundo, que representa 70% do PIB global e é responsável por 50% da dívida, está em níveis de endividamento já elevados e muitos desses países revelam uma trajetória de agravamento até 2029

Daqui a cinco anos, ainda serão 12 as economias com níveis de endividamento acima de 100% do PIB e nove entre elas terão aumentado o rácio. Nas que terão o seu endividamento agravado até 2029 contam-se a China, que vê o rácio disparar 21 pontos percentuais do PIB, a França que regista um agravamento de 14 pontos percentuais e os Estados Unidos que sobem o nível de endividamento em quase 11 pontos percentuais.

Estes três casos integrarão em 2029 o grupo de economias com rácios de endividamento acima de 100% do PIB. A China passará a barreira dos 100% em 2027 e atingirá 111,1% em 2029. Os EUA verão o rácio subir de 121% em 2024 para 132% cinco anos depois. França subirá de 112,3% para 124,1% no mesmo período.

O nível de endividamento mais elevado é o do Japão. que se situará em 245% do PIB em 2029, mas terá feito uma redução de seis pontos percentuais em relação a 2024. O segundo nível mais elevado à escala mundial será o de Singapura cujo rácio aumentará para 178,4% do PIB em 2029. Itália com 142,3% e Bahrain com 142,1% virão logo a seguir daqui a cinco anos e fazem parte do grupo em que a trajetória é de subida do rácio.

A zona euro contará com quatro economias - Bélgica, França, Grécia e Itália - com níveis de endividamento acima de 100% do PIB daqui a cinco anos. Nos casos belga, francês e italiano, a trajetória é de subida do rácio até 2029.

Défices elevados em grandes economias

O Fiscal Monitor chama ainda a atenção para a trajetória dos défices orçamentais em algumas grandes economias. A China será campeão com o défice a subir de 7,4% do PIB em 2024 para 8,2% em 2029. O saldo negativo também subirá no caso da Bélgica, de 4,7% para 6,3% no mesmo período.

Apesar de revelarem alguma consolidação orçamental, o défice da Índia em 2029 ainda estará em 6,6% do PIB, o dos Estados Unidos em 6% e o de França em 5,9%.

Vítor Gaspar desdramatizou a situação da China e dos EUA dizendo que as duas maiores economias do mundo têm “um espaço muito amplo” para porem as contas em dia.

O trilema nas contas públicas

Nas recomendações de políticas orçamentais, Gaspar referiu que “os governos de todo o mundo enfrentam uma situação aparentemente impossível”, em que a escolha das decisões envolve “três imperativos incompatíveis”. Primeiro, há pressões "irresistíveis para gastar mais em uma variedade de áreas como a defesa, as alterações climáticas, a competitividade, o crescimento, a educação, a saúde e as infraestruturas". Mas, por outro lado, “há uma resistência política absoluta à tributação”. E, finalmente, há que garantir “o objetivo de estabilidade macroeconómica abrangendo a sustentabilidade da dívida pública, a estabilidade monetária e a estabilidade financeira”.

Em suma, "o trilema coloca os países numa situação difícil:
se um país ceder às pressões para mais gastos sem
aumentar impostos, os défices e a dívida continuarão a aumentar, o que que acabará por se revelar insustentável e causar instabilidade".

O responsável do Fiscal Monitor concluiu: “O trilema é um teste. Não precisa de ser uma armadilha”.