Os investimentos em ‘private equity’ e ‘venture capital’ em Portugal já deviam estar a jogar na “primeira liga”, a par do que acontece nos outros países desenvolvidos, mas tal não está a acontecer, aponta Stephan de Moraes, presidente da Associação Portuguesa de Capital de Risco (APCRI). Uma das razões é o peso do capital público nos investimentos em Portugal, mas não só.

A nível europeu, o também fundador e administrador-executivo da Indico Capital Partners sublinha que criar um mercado financeiro único é “absolutamente crucial”, para resolver os problemas de competitividade identificados no Relatório Draghi e fazer frente a um mercado americano mais flexível. Porque, refere, “senão nunca vamos ter capital suficiente para investir nas PME e startups europeias, que são tão boas ou melhores que as americanas”.

Em entrevista ao Jornal PT50, Stephan de Moraes sublinha também a necessidade de promover a literacia financeira na sociedade portuguesa – um problema que diz afetar não só os consumidores, mas também os empresários – e que as criptomoedas vieram mesmo para ficar.

O mercado de investimentos sustentáveis tem mostrado uma desaceleração nos últimos tempos. Deve-se em parte à influência dos EUA?
Acho que não tem muito a ver com a questão dos Estados Unidos, porque isso ainda é muito recente. Muitas vezes os investimentos na área da sustentabilidade têm um caráter científico preponderante. Nomeadamente, os que implicam investimentos em hardware são produtos mais complexos, têm tendência a falhar e a necessitar de mais dinheiro, mais testes e mais tempo. O que acontece é que, quando surgem alguns fundos ou empresas dessa área a testar produtos novos e demoram tempo, há uma curva de ‘hype’, depois as coisas demoram mais tempo do que se pensa e saem de moda. Creio que é mais isso do que propriamente um ‘backlash’ contra a sustentabilidade. Essa parte do ‘backlash’ contra a sustentabilidade tem mais a ver com a parte regulatória.

Sente-se isso em Portugal e na Europa?
Já há bastante tempo que há um certo ‘backlash’ também na Europa e dúvidas sérias em relação à capacidade de serem implementadas as regulamentações ligadas à sustentabilidade, nomeadamente no que toca a startups e a PME, que não têm a estrutura, nem a capacidade de produzir tantos relatórios.

A UE já anunciou que quer simplificar a regulação. Estão a sentir que está a descer o investimento em produtos sustentáveis?
Eu não tenho estatísticas sobre isso. Digamos que após um entusiasmo muito grande sobre esse tipo de soluções talvez já não esteja tão na moda, mas não quer dizer que não se continue a fazer. Aliás, a Europa continua a ser líder nessa área, e bem, e tem imensas soluções que podem ser muito úteis ao mundo. Portanto, acho que estamos a falar mais de notícias do que propriamente de realidade. E o efeito americano também ajuda a que se tirem essas consequências.

Esse aparente desinteresse está a afetar as gestoras dedicadas?
Em termos de Indico, cumprimos com a regulação europeia e nacional em termos de sustentabilidade em todos os nossos fundos. Mas só temos um fundo, que é o Fundo Azul, que tem uma dedicação maior a estas questões por estar relacionado com os oceanos. Mas não notamos ainda nada contra, nem a favor, ou seja, continua tudo normal. Não há nenhuma implicação prática neste momento.

Qual diria que são os grandes desafios no mercado dos investimentos? Defende que é preciso captar mais capital privado?
Em termos de capital de risco, o que acontece é que é preciso oportunidades de investimento e é preciso capital para investir. Hoje em dia, a nível de PME e de startups, existem muitas oportunidades para investir. Ou seja, há mercado em Portugal, mais do que antigamente, tanto na área de startups como na área das empresas industriais e PME em geral, porque há mais consciência dos empresários e das famílias de que a entrada de capital externo pode reforçar significativamente a competitividade da empresa e fazê-la alcançar novos patamares de rentabilidade, faturação, conquista de mercado, exportação e por aí fora.

Portanto, os associados da APCRI reportam que há mercado para investir. Mas muitas vezes o capital não é privado e institucional. E porque é que é importante que ele seja privado, institucional e profissional? Porque o capital privado e institucional joga por leis do mercado, não distorce o mercado. Por outro lado, quando o capital é apenas público, direto ou indiretamente, normalmente vem com um conjunto de regras, requisitos, recomendações ou imposições que, de certa forma, não maximizam o valor potencial dos investimentos ou podem distorcer mais ou menos a política de investimento daquele fundo. Portanto, não é que não seja bom que haja capital público, o que devia haver era capital privado que substituísse paulatinamente e cada vez mais o capital público, porque esse capital é a base do sucesso da indústria de capital de risco nos países mais desenvolvidos, nos Estados Unidos, Inglaterra, na Alemanha, nos países nórdicos. Portanto, os fundos deviam ser constituídos maioritariamente por capital privado e não capital público.

Mas não são?
Não, não são. A vasta maioria do capital da maioria dos fundos a atuar em Portugal será público. Apenas alguns dos grandes fundos de capital de risco português têm uma maioria de capital privado. É o caso da Indico, mas na vasta maioria das sociedades capital do risco os fundos que gerem têm capital público. Público direto ou público indireto. Capital que é privado, mas tem origem em regras públicas e com muitas condicionantes. E o problema do capital público é a quantidade de condicionantes, diretas e indiretas. Isso depois pode distorcer os resultados dos fundos, o que leva a afastar, não só a curto prazo, mas a médio e a longo prazo, o capital privado. Portanto, o que a APCRI tenta fazer é trabalhar com o Governo, com o Banco Português de Fomento (BPF) e com todos os outros atores institucionais, de forma a que se criem condições para que entre mais capital privado.

E quando fala de entrar mais capital privado está a falar de que fontes?
A grande base da indústria de capital de risco nos outros países são os fundos institucionais – fundos de pensões, fundos de fundos, seguradoras, bancos, ou seja, são grandes detentores de capital institucional. Nos Estados Unidos, os grandes detentores de capital institucional são os fundos de pensões das enfermeiras, dos médicos, dos bombeiros, dos professores, os fundos das universidades, esses são os grandes grupos capitalistas que depois aplicam dinheiro em várias classes de ativos. Aplicam em bolsa, aplicam em obrigações e aplicam também em mercados alternativos. Na Europa, há pouco capital institucional, no sentido em que há poucos fundos de pensões, nomeadamente em Portugal há muito poucos. E as seguradoras e os bancos têm dificuldade em aplicar capital nestas áreas, porque são penalizados a nível regulatório, porque são considerados investimentos de risco, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos.

E mesmo que exista, essas fontes de capital não o fazem porque também não conhecem a indústria. Não têm dentro de casa especialistas que possam escolher entre as várias opções. Portanto, não é só falta de capital, depois também não se investe nesta área, investe-se apenas em obrigações do tesouro, obrigações, etc. Não há uma alocação e é disso que nós precisamos em Portugal para passar para a primeira liga, porque já está na hora. Os outros países andam a fazer isto há dezenas de anos.

Portugal, na área dos investimentos, é um país muito conservador. Os particulares investem sobretudo em depósitos e certificados de aforro. E as empresas?
As empresas também são o mais conservadoras possível. Eu acho que isso tem duas razões. Uma é a instabilidade económica e a falta de crescimento económico das últimas décadas que leva a que as pessoas se tornem conservadoras, porque não querem perder o pouco que têm, é natural. E também há uma grande falta de literacia financeira. Um dos grandes déficits educacionais da população portuguesa, e até dos empresários, é a literacia financeira. Uma das diferenças gigantes de performance e de criação de riqueza entre os Estados Unidos e a Europa é o facto de os americanos massivamente investirem na bolsa. Há 30 anos, éramos equivalentes aos Estados Unidos em termos de riqueza económica e hoje em dia os Estados Unidos são muito mais ricos do que a Europa. Ou seja, apesar de todos os defeitos e desigualdades, a verdade é que a vasta maioria da população americana é muito mais rica do que a vasta maioria da população europeia.

E também há a questão da fuga de capital da Europa para os Estados Unidos. Quem tem vontade de investir vai investir nos EUA?
Precisamente, porque o mercado de capitais lá é integrado, existem soluções para todos os gostos, o menu de oportunidades de investimento é muito amplo. Um dos grandes problemas da Europa, que está agora a tentar ser resolvido pela Comissão Europeia, é não haver um mercado único. Quando não se pode comprar um carro num outro país e trazê-lo para cá, quando não se pode abrir uma conta bancária, quando não se pode ter um seguro, há imensas barreiras. Claro que podemos andar livremente de um lado para o outro e até transportar coisas de um lado para o outro e vendê-las. Mas, na realidade, na parte financeira, não somos um mercado único, somos mercados nacionais. Portanto, a criação de um mercado único financeiro europeu é absolutamente crucial para que todos os problemas que foram identificados pelo relatório Draghi se comecem a resolver, porque senão nunca vamos ter capital suficiente para investir nas PME europeias e nas startups europeias, que são tão boas ou melhores que as americanas. Nós não temos um problema de falta de capacidade de ciência ou de engenharia. Temos um problema de falta de aplicação de dinheiro nas nossas melhores empresas.

A comissária europeia Maria Luís Albuquerque está a tentar criar essa união. Pode realmente aumentar a competitividade dos mercados europeus e reduzir a fragmentação entre os países?
A comissária Maria Luís Albuquerque tem aí um papel fundamental. Agora, a forma como se tomam decisões, pelas unanimidades, tem vindo a impedir que haja um aprofundamento da integração europeia. E há aqui outras questões de menor confiança nas instituições europeias, até pela representatividade ou falta dela. Enfim, é um processo de democracia que está pouco aprofundado e os países não querem dar demasiada preponderância à Europa. Mas a verdade é que, ao contrário disso, os Estados Unidos e a China têm mercados centralizados, únicos, gigantes e onde existe muito menos regulação, e nós somos peritos em regulação na Europa.

Mas a comissária já veio dizer que, se não se conseguir avançar com a unanimidade, então que se juntem pequenas “bolsas” de países. Acha que é por aí?
Eu acho que sim, porque à medida que vamos alargando e tendo cada vez mais países que pensam de maneiras diferentes não há outra maneira senão ter uma Europa a várias velocidades em termos de integração.

Voltando a Portugal, o ministro da Economia anunciou que quer relançar o Banco de Fomento, para desenvolver a área dos investimentos e promover as empresas. Como é que a APCRI pode trabalhar com o Banco de Fomento neste objetivo?
Nós temos vindo a trabalhar sempre de perto com as várias administrações do Banco de Fomento, para cumprirem os objetivos de defesa do país e da própria indústria. Tenho a certeza de que esta nova administração continuará a fazer o melhor possível para que isso aconteça. E este governo, em particular, tem feito localmente o possível para que haja pontos de diálogo entre o setor do capital de risco e o Banco de Fomento no desenho de novos programas que sejam cada vez mais orientados para o mercado. Mas as situações são complexas, porque muitas vezes as condicionantes que chegam ao Banco de Fomento também vêm da própria Europa. Portanto, a questão não é tanto o Banco de Fomento e tem muitas vezes a ver com os pacotes que vêm da União Europeia. O que nós tentamos fazer e vamos fazer com o Governo e com o Banco de Fomento é dar a nossa recomendação sobre esses pacotes financeiros, como é que os podemos organizar e preparar para que cheguem rapidamente às empresas e sejam executados da forma correta, sem distorções de mercado, sem condicionantes excessivas e aproximarmo-nos cada vez mais de um mercado totalmente livre, onde haja menos dinheiro público e muito mais dinheiro privado.

Que desafios identifica no país para desenvolver este mercado?
É um desenvolvimento que não se faz a curto prazo, embora se notem melhorias. Nota-se que os novos empresários, não só das startups, mas das PME, têm muito mais apetência pelo crescimento, pela partilha do risco, e são, de forma geral, pessoas com uma mentalidade muito mais internacional, que não querem só conquistar os mercados locais, mas querem ser competitivos à escala global.
Mas continuamos com o grande problema do acesso ao capital. O que se poderia fazer mais era criar um conjunto de incentivos para que haja mais fusões e aquisições, para que haja mais investidores privados a entrarem nestes fundos. Isso são matérias que podem e estão a ser trabalhadas connosco e com o Governo. Nós estamos a tentar produzir recomendações que façam com que se ultrapassem estas questões. E aqui o papel da comunicação social é importante. A verdade é que há muitos casos de sucesso e as pessoas também gostam de ver boas notícias, não é só más notícias.

Relativamente às criptomoedas, são uma oportunidade real de investimento ou ainda há muita incerteza? É uma área que abordam na APCRI.
Não diretamente. Ou seja, na APCRI, temos fundos de todas as naturezas, mas não temos fundos neste momento de criptomoedas, não temos nenhum associado dessa área. No âmbito da Indico, nós temos investimentos relacionados com a Web3 e com criptomoedas.

Nota interesse por esse tipo de investimentos tendo em conta o seu risco e volatilidade?
A cripto é algo que está para ficar, ou seja, é uma classe de ativos que se está a institucionalizar e é preciso distinguir entre o que são projetos mais ou menos virtuais de outros que são reais, como a Bitcoin. Ou seja, já há muitas instituições no mundo que têm reservas significativas de Bitcoin, que fazem ‘trading’ como se fosse ouro ou como se fosse qualquer outra ‘commodity’. Portanto, é inevitável que cada vez mais os bancos e as instituições financeiras e os reguladores abracem algumas destas moedas e alguns destes ativos digitais. Isso já está a acontecer e os Estados Unidos, mais uma vez, lideram, mas a Europa também aceita. Outra coisa tem mais a ver com o Web3. É uma filosofia de descentralização que está na base das fintechs ligadas ao cripto e das próprias criptomoedas, que também não está para desaparecer, porque tem uma série de vantagens de transparência, de rastreabilidade.

Na Europa, temos a nova regulação MICA (Markets in Crypto-Assets), ou seja, mais um conjunto de regras da União Europeia. Que comentário lhe merece?
É muito importante que haja. Defendendo a regulação, não haver regulação ou se for demasiado leve leva a que as pessoas desconfiem e com razão. E na área do cripto têm existido escândalos atrás de escândalos na última década, desde roubos, usurpações de identidade, etc. Mas a tecnologia está aí para ficar e é como em todas as tecnologias, ao início as coisas são confusas e depois há um momento em que se começa a definir quem são os vencedores. E a regulação tem um papel importante, porque obriga a que haja um caminho comum que dê confiança aos investidores e aos consumidores.

Quais são os investimentos que estão a captar mais interesse na atualidade? É na área da inteligência artificial?
Efetivamente, acho que estamos a assistir a uma revolução equivalente à descoberta da luz na questão da inteligência artificial. A vasta maioria das pessoas hoje em dia usa o ChatGPT ou algo equivalente, mas isso é só o início da revolução. Ou seja, estamos a começar a ver duas outras grandes tendências, que é o aparecimento de empregados virtuais, portanto, empresas de software que criam agentes virtuais, que em vez de venderem software vão vender recursos humanos digitais que substituem ou aumentam significativamente a capacidade dos humanos. Isso é inevitável.

E depois temos à porta uma revolução de robótica gigante. Estamos quase a chegar ao ponto em que milhões de robôs entram nas fábricas. Já temos algumas empresas no mundo que estão a começar a produzir e a instalar esses robôs humanoides, que de certa forma vão suprir a falta de capital humano que existe na maior parte dos países. E, portanto, essa é a grande revolução que já está a ser preparada, que é alimentada por avanços na robótica e avanços evidentes na capacidade de computação e inteligência artificial. Será um mundo totalmente diferente daqui a 10 anos.