“Eu canto o corpo elétrico”, escreveu Walt Whitman, ode a todos os aspectos da fisionomia humana, proveniente do amor furioso que o poeta detinha pelo seu semelhante. Como com Whitman e os exércitos que o envolveram e que ele envolveu, as canções de Patti Smith têm o mesmo efeito no ouvinte. Ela canta, também, o corpo eléctrico, como voltámos a testemunhar na noite de domingo no festival Jardins do Marquês - Oeiras Valley, em Oeiras: o corpo rock n' roll, a testa que pinga suor sobre uma guitarra, os dedos que se desfazem em sangue nas cordas, os músculos que doem, no pescoço e nos braços, após uma sessão de headbanging, as pernas que tremem na saída de um daqueles concertos que a mente guardará enquanto for mente. Patti, como Whitman, é uma das grandes poetas da literatura americana. Dizem-na do punk, palavra que outrora detinha um significado esdrúxulo, era vista como insulto. Patti, e os que vieram a seu lado naquele CBGB's nova-iorquino que não existe mais, mudou-lhe completamente o sentido.

“E se o corpo não for a alma, o que é a alma?”, perguntou Whitman e poderia perguntar Patti, os olhos postos sobre mais um livro naquela adolescência que parece eterna mesmo já se tendo passado quase meio século desde o lançamento de “Horses”, o álbum que a tornou poeta e a tornou estrela de um rock n' roll que, pensou-se, poderia mudar o mundo mais do que aquilo que o fez. Mudou, pelo menos, as vidas de todos os presentes nos Jardins do Palácio do Marquês, em Oeiras, para a acolher uma vez mais em solo luso, poucos meses após se ter apresentado no Centro Cultural de Belém e no Theatro Circo para uma sessão de poesia com música de vanguarda como acompanhamento. Desta feita, o acompanhamento foi outro: a electricidade, o groove, a batida que dinamiza um coração.

O rock n' roll é música para esfomeados, para aqueles com ganas de se encherem de algo mais que rotina. “Estão com fome?”, pergunta a norte-americana antes de arrancar com ‘Summer Cannibals’, canção de “Gone Again” (1996), que compôs ao lado do falecido marido, Fred “Sonic” Smith, dos MC5. Perguntou-o quando o público já se encontrava de pé para a aplaudir, sabendo-se que aplaudiam a figura, a mitologia. Sendo que Patti Smith é uma das poucas a quem se perdoa olhá-la com olhos de crença - não há, aliás, outra forma, todas as suas palavras potenciam a crença, quer no rock, quer na humanidade. Um choque de energia eléctrica percorre os corpos, há sorrisos estampados nos rostos de todos, dos mais velhos à juventude que teve uma boa educação.

‘Ghost Dance’, escrita em 1978 a pensar nas tribos indígenas americanas que haviam sido expropriadas das suas terras, foi esta noite repescada a pensar em todos os povos expropriados das suas terras - óbvia referência à Palestina, sem mencionar o seu nome, numa das poucas vezes em que Patti Smith foi explicitamente política (a outra foi em ‘People Have the Power’, canção que é impossível de se ler alienadamente). Há um “possível genocídio” em curso, acrescentou. A milhares de quilómetros da barbárie, milhares de pessoas são obrigadas a pensá-la quando tudo o que queriam era assistir a um espetáculo musical enquanto pagam mundos por uma cerveja. Mas é Patti Smith: já deviam saber ao que vinham. Esta é uma poeta de intervenção.

Matilde Fieschi

Gravilha e bourbon

Uma versão de ‘Man in the Long Black Coat’, de Bob Dylan, antecedeu ‘Cash’, tributo ao Johnny com esse sobrenome, “com uma saudaçãozinha a Baudelaire”, notou a artista logo de seguida. A morte, ou mais concretamente o luto, foi uma constante no alinhamento desta noite. A Cash sucede-se uma história envolvendo um marinheiro por Lisboa, que se cruza com Fernando Pessoa - “mas qual dos Pessoas?”, brincou -, que rapidamente desemboca em ‘Nine’, o velho marinheiro, capitão, despedindo-se de Fernando depois de ambos chorarem as suas mães. Fred “Sonic” Smith, morto em 1994, foi recordado com o momento mais imprevisível da noite, tão imprevisível que se notou alguma confusão em rostos mais velhos: uma versão de ‘Summertime Sadness’, de Lana Del Rey. “Quando ouvi esta canção, lembrou-me da minha juventude e do meu namorado”, futuro marido, pai de Jackson Smith, que acompanha a mãe Patti na guitarra. Justificação dada.

Fred ainda seria alvo de homenagem por mais um par de vezes: ‘Because the Night’, uma das mais aclamadas da noite (é um êxito pop e a esmagadora maioria das pessoas vai a concertos para ouvir êxitos pop), foi dedicada ao homem que no coração de Patti “será sempre o [seu] namorado”; o mesmo com ‘About a Boy’, mais perto do final, sendo que esta tinha sobretudo como figura Kurt Cobain, igualmente falecido em 1994. Mas Cobain “vive no seu trabalho, na sua música, na sua filha”, explicou. O mesmo se poderá dizer de Fred “Sonic” Smith… Pelo meio, deixou a sua banda (Jackson Smith, Jay Dee Daugherty na bateria e Tony Shanahan no baixo e teclas) divertir-se sozinha com uma versão de ‘Fire’, de Jimi Hendrix, e mostrou toda a sua garra em ‘Pissing In a River’, a voz arrancada às profundezas do blues, gravilha misturada com bourbon, o grito punk a eclodir nos Jardins.

Por falar em gritos, alguém ainda arriscou um Vive La France na tentativa de obter uma reacção de Patti, que só sorriu. E isso chega perfeitamente: quando Patti Smith sorri, mesmo cantando a morte em cada esquina do alinhamento, o mundo parece um lugar mais terno, mais apto a merecer ser vivido. Novamente com Cobain no coração vemo-la entoar uma versão desacelerada de ‘Smells Like Teen Spirit’, que resulta num quasi-moshpit num festival para um público mais envelhecido, e tudo faz tanto sentido que só nos resta agradecer a Patti, a todos os poetas, ao Grande Deus Eléctrico. ‘People Have the Power’ substituiu ‘Gloria’ no encore, ergueram-se os punhos, mas a noite já estava ganha. Aos 77 anos, a poeta ainda é do punk, a música ainda é do rock, o futuro ainda lhe pertence. Caminhando a seu lado, será igualmente nosso.