![Ao som de Cante Alentejano, cumpriu-se a tradição do](https://homepagept.web.sapo.io/assets/img/blank.png)
“Eu devo meu corpo à terra. A terra me está devendo. A terra paga-me em vida. Eu pago à terra em morrendo”. É o primeiro verso de Cante Alentejano que se ouve após a tradicional matança do porco promovida pelo restaurante Páteo Real, em Alter do Chão, liderado pelo chef Filipe Ramalho. O momento é abençoado pelo padre da vila e acompanhado pela veterinária municipal. Garantem as pessoas mais antigas que o método tradicional preserva o sabor das carnes e implica menor sofrimento para o animal, demonstrando o respeito pelo suíno, que outrora alimentava toda uma família ao longo de cada ano e do qual tudo se aproveitava, do focinho à cauda, como comprova o património gastronómico da região.
Recriar e reavivar as tradições populares
Dando continuidade a “uma cultura transmitida pelos pais e avós”, Filipe Ramalho organizou, este sábado, dia 8 de fevereiro, a terceira edição do “Dia da Matança”, uma iniciativa que pretende “recriar algo que caiu em desuso”: “A primeira edição foi apenas dentro do pátio do restaurante e agora já é cortada uma rua paralela, com o apoio do município de Alter do Chão. Tentamos fazer um híbrido daquilo que é a nossa filosofia, o que queremos oferecer, aliando à cultura da matança e não a deixando morrer”, explica Filipe Ramalho, que lidera o restaurante Páteo Real, em Alter do Chão.
“Na rua da minha avó, durante uma semana, começava-se numa casa, matava-se o porco e dois dias depois na casa da vizinha e toda a gente ajudava, a rua juntava-se para se entreajudar. Após morto o porco, desmanchada a carne e feitos os enchidos e montado o fumeiro, seguia-se para a casa seguinte e passávamos o mês de janeiro nisto, até estar feito em toda a rua, este era o verdadeiro sentido de comunidade”, acrescenta.
Crescer sem perder autenticidade
Se na primeira edição marcaram presença, entre 60 e 80 pessoas, este sábado, o “Dia da Matança” contou com a presença de mais de 320 convidados. “Poderíamos ter tido aqui mais de 900 pessoas”, garante Filipe Ramalho, orgulhoso e surpreendido por ter esgotado em apenas 15 dias os bilhetes de acesso ao evento. Em 2025, a entrada custou €50, dando acesso a toda a comida servida. Apesar da enorme afluência, o objetivo tem sido cumprido e a autenticidade mantém-se intacta, recriando o mais próximo possível do que foi outrora a matança do porco no Alentejo. Apesar do sucesso, o cozinheiro não quer que a iniciativa cresça, "mas que se volte a fazer matança tradicional do porco e não se perca nas diferentes regiões”.
Ribatejo, Trás os Montes e Lisboa na matança
Com o pretexto de contagiar as regiões onde a matança do porco ocorria de forma tradicional, este ano, a iniciativa contou com três chefs convidados: Rodrigo Castelo, responsável pelo restaurante Ó Balcão, em Santarém, Lídia Brás, cozinheira transmontana do restaurante Stramuntana, em Vila Nova de Gaia, e Joaquim Saragga Leal, da Taberna Os Papagaios, localizada em Lisboa.
“Todos os anos faço uma matança em Santarém com os amigos e os meus filhos porque as tradições são para se manterem e nós cozinheiros somos responsáveis por isso também”, garante Rodrigo Castelo. Galardoado pelo Guia Boa Cama Boa Mesa, como “Chef do Ano” 2024, e proprietário de um restaurante distinguido com um Garfo de Ouro e uma estrela Michelin, destaca ainda que todo o processo "envolve engordar um porco durante um ano com o desperdício alimentar e isso é trabalhar verdadeiramente a sustentabilidade”.
Já Lídia Brás, recorda que “quando era miúda era a menina do alguidar, os cozinhados era para as mulheres mais velhas, como a minha mãe e a minha avó, depois era a parte de desfazer o porco, lavar as tripas, tirar o redanho e começar a confecionar" Após a matança eram também assados os “chichos” na brasa”. Joaquim Saragga Leal, natural de Lisboa, rumava ao Alentejo para assistir à matança do porco, na casa dos avós: “A primeira vez que fui tinha a idade do meu filho, que está aqui, com 12 anos, era um momento mais familiar e de aldeia”.
Ao almoço, Rodrigo Castelo serviu o “Arroz da matança”, explicando ser uma receita da sogra, que é alentejana, e que lhe ensinou todos os momentos da preparação: "É feita com osso do peito e do espinhaço, que sobram da matança do porco e que, normalmente, ficam a salgar do dia anterior e no frio para ter textura e ser cortado. Aproveitamos a língua, o bucho e o coração, do Ribatejo vem o arroz carolino das lezírias e um grão de bico ribatejano. O caldo é feito à base das mãos do porco”.
Já com a gordura do redanho, Lídia Brás preparou “Rojões do Soventre”, uma receita transmontana de dia da matança, que acompanha com castanhas de vinhais IGP. O tempo de confeção varia conforme o lume e o vento. Já o chef Joaquim Saragga Leal confecionou um “Cozido Saloio”, diferente do habitual: "Só leva cabeças de porco, abóbora e grelos”, garante.
Além dos chefs convidados, o evento contou com um cardápio alargado e com a colaboração de Fátima e Joaquim Ramalho, pais de Filipe e proprietários do também afamado restaurante Tintos e Petiscos, em Vaiamonte. Durante a manhã foi servida a “Molhanga”, que é “prato tradicional da minha terra - Vaiamonte - e só se faz no dia da matança... tiram-se as barbelas, as carnes sujas de sangue do peito, as molejas e outras carnes, tempera-se com vinho tinto e alho e depois vai ao lume para apurar muito bem, é muito gorduroso e é servido com legumes cozidos para cortar a gordura e fica muito bom”, garante orgulhosa a cozinheira Fátima Ramalho.
Outro prato tradicional do dia da matança do porco apresentado no evento foi a “Sopa de cachola”, com o fígado, o bofe, o coração do porco, cortado em pequenos cubos, e ainda o sangue do animal. Ao jantar, Fátima Ramalho serviu “Couves Grossas”, um prato que consiste “numa espécie de cozido desconstruído, que tipicamente se confecionava no dia após a matança do porco, com couves, batatas, cenouras, pezinhos, chispe, os ossos de suã e fazem uma sopa muito agradável”.
De Campo Maior, esteve presente António Borrega, conhecido por “mestre António João”, com o tradicional “Cozido de grão”: “O amigo Filipe viu-me a fazer uns grãos numa concentração de confrades e gostou e o ano passado pediu-me para vir, mas eu não sou cozinheiro, sou apenas um curioso que gosto de fazer isto”. Confecionado em pote de ferro, o cozido tradicional é preparado com batata partida aos cubos, grão, pimento, cebolas, tomates e arroz. Os caldos são misturados durante a cozedura.
A morte na matança
Nesta iniciativa, são cumpridos todos os procedimentos legais e é respeitada a morte do animal, que é encaminhado calmamente e sem stress para o terreiro coberto de palha e a tradição cumpre-se com mestria e engenho. O golpe misericordioso (e único) coube a Joaquim Ramalho: “Há um osso no peito, em que se mete a faca para ir direito ao coração”. Para evitar o sofrimento do animal, o segredo é apanhar um nervo na parte traseira da orelha que atordoa o animal”, explica. Rosarinho Matutinho, veterinária municipal, inspeciona o animal antes e depois da matança e garante que o processo “não é ofensivo, nem bárbaro para o animal” e acrescenta que o evento é uma recreação “de uma tradição que tende a desaparecer”.
Joaquim Ramalho já realizou centenas de matanças ao longo da vida. Começou ainda antes de atingir a maioridade, ensinado pelo pai e avô: “No Alentejo, matávamos um porco todos os anos e depois andávamos a ajudar de casa em casa e cada família tinha a sua própria receita” e a prioridade era aproveitavar todas as partes do porco. O animal era morto de manhã, descansava durante a tarde, e só era desmanchado à noite. “Agora, utilizamos o maçarico, que é uma solução mais prática, mas antigamente era a carqueja, tínhamos que deixar secar e depois com o lume é que íamos chamuscando o porco para tirar os pelos”, recorda Duarte Graça, que auxilia Joaquim Ramalho na matança. Acrescenta ainda, sobre a matança tradicional, que ”se não for desta maneira a carne não tem o mesmo sabor, já diziam os antigos".
No dia seguinte à matança, eram migadas as carnes do porco: uma parte para enchidos, para a farinheira, para as morcelas, e outra para os lombos. “Dá muito trabalho...”, confessa Joaquim Ramalho, lamentado que a tradição se venha a perder, principalmente nos últimos 20 anos: “As novas gerações já não querem ter este trabalho, porque depois da matança, durante vários dias, tem que se mudar os enchidos no fumeiro, para que toda a carne receba o mesmo calor” explica. Com o fim da tradição da matança, perde-se também a confeção tradicional de enchidos e o convívio familiar, alega.
Jenoveva Graça, do Rancho Folclórico de Alter do Chão “As Ceifeiras”, que promovem a representação etnográfica da matança no Alentejo, recriando o método tradicional de limpeza e enchimento dos enchidos, recorda que “a matança era uma festa de família, juntavam-se os amigos e nunca se desmanchava no dia que se matava, era sempre no dia a seguir e dividiam-se as carnes... a carne ficava temperada uma semana em vinha de alho e pimentão. Só no último dia de se encher é que o chouriço levava vinho, mas todos os dias se dava uma volta à carne”.
Animação popular e Feira do Fumeiro
O evento “Dia da Matança” contou com o apoio do município de Alter do Chão, do Turismo do Alentejo, e a participação do Grupo de Cante Alentejano “Os Cá d’Cima”, do grupo de cantares tradicionais Abelterium e do Rancho Folclórico de Alter do Chão “As Ceifeiras”.
Além da animação constante ao longo do dia, os participantes no evento tinham à disposição uma Feira do Fumeiro, com a presença da Salsicharia Canense, da Montifumeiro, da Salsicharia Estremocense, e das Carnes Alter. “Temos o privilégio de ter aqui a Salsicharia Canense, que está agora no último ano de produção. Quantas semelhantes ainda são assim, tradicionais? Nenhuma. Equacionei ficar com o negócio da Dona Octávia e morri na praia... A quantidade de regulamentação que existe, inibe as pessoas de fazer os enchidos de forma tradicional. Era uma forma mais natural de fazer aquilo que hoje a regulamentação obriga, com tecnologia e produtos químicos, como controle de temperatura e de humidade, já se faziam, mas era com o vento, dependendo da direção tinham que se baixar ou levantar os enchidos no fumeiro”, lamenta Filipe Ramalho.
Sobre o restaurante Páteo Real (Avenida Dr. João Pestana, 37, Alter do Chão. Tel. 960155363) pode ler-se no Guia Boa Cama Boa Mesa 2024: Filipe Ramalho é embaixador da terra e promotor dos produtos locais, como o açafrão-bastardo. O orgulho nos enchidos da região inspirou criações à mesa e levou o chef a recuperar a tradicional matança, evento que organiza anualmente. Em julho de 2023 remodelou a sala do piso superior e nas novidades da ementa salta à vista a "Cacholeira" e os "Miolos rotos". Nos imperdíveis estão o "Bacalhau d'Oro" e os "Croquetes de pato".