A melancólica melodia da morna, género musical imortalizado por Cesária Évora, contrasta com a alegria e o sorriso aberto dos cabo-verdianos que povoam a maior ilha do arquipélago. Com cerca de 500 mil habitantes nas 10 ilhas, uma deserta, Santiago concentra 90% da população. Gente e local definem-se pela palavra crioula morabeza, usada para descrever o que é afável, amável e hospitaleiro. Foi na cidade da Praia, capital e maior cidade de Cabo Verde, que escolheu instalar-se, abraçado pelo mar, no lugar da Prainha, o primeiro hotel com a classificação de cinco estrelas da ilha. A partir do conforto dos espaçosos quartos do Barceló Praia Cape Verde, a maioria com vista de mar, e depois de um pequeno-almoço bem recheado – que até inclui “Cachupa” – parte-se à descoberta da cidade, onde abundam referências à presença portuguesa, à história do país, percorrem-se mercados locais e conhecem-se os bairros da capital numa viagem de calhambeque. Um percurso mais longo convida a descobrir a Cidade Velha, classificada como Património Mundial da Unesco, com marcas da primeira colonização portuguesa, a passeios pela verdejante serra da Malagueta, uma visita à cidade da Assomada ou a um encontro com o passado no Tarrafal. Siga o mantra local “No Stress”: mais do que uma estadia, oferece-se uma experiência em contacto com o ritmo cabo-verdiano, com crioulo, música e arte urbana dentro.
Em diálogo com o mar
A piscina infinita no exterior é uma das imagens de marca do hotel, debruçado sobre o mar. Em forma de meia lua, acompanha a arquitetura do edifício compondo uma espécie de baía e fundindo-se discretamente na paisagem da zona da Prainha, uma das mais exclusivas da cidade. Quem prefere mergulhar no oceano tem a praia mesmo ao lado, com o som do mar a dominar a paisagem e a embalar dias e noites. Mas este é local para partir à descoberta da faceta cultural e natural, aqui mais acentuado do que noutras ilhas onde o turismo é focado na praia. Decorado em tons vivos e enérgicos nas zonas comuns, com inspiração na arte africana, revela em tons serenos e repousantes, de areia e azul, no interior dos 80 quartos (desde €200), dos quais sete são suítes, com vista mar, duas júnior e uma presidencial. Há 12 quartos sem vista direta para o oceano e os restantes pertencem à tipologia deluxe vista mar, alguns dotados de terraço ou varanda.
Nas zonas comuns destaca-se a ampla receção, que faz as vezes de zona de estar, e a esplanada em torno da piscina, servida pelo bar e pelo restaurante Breeze. Ao ar livre ou na eleganta sala de refeições, privilegiam-se os ingredientes locais em entradas como o “Tataki de atum” (€18), o “Camarão ao alho” (€18), as “Vieiras com molho de café” (€17) ou a “Tempura de legumes” (€15). Nos principais, o atum volta a destacar-se num naco grelhado na pedra, servido com legumes salteados e batata frita. Do mar chegam também a “Espetada de búzio grelhado” (€22), a “Caldeirada de Peixe” (€27), a “Lagosta “bronzeada”” e o “Esmoregal grelhado” (€29). Nas carnes, além do “Peito de frango com crocante” (€20) (de amêndoas), pode optar pelo “Medalhão de vitela com molho” (€30), pelo “Bife na pedra” ou pelo “Segredo ibérico” (€26), de carne de porco com legumes salteados e batas fritas. O prato nacional, a “Cachupa Regional” (€17), um guisado com diversos tipo de carne e grão, também integra a ementa onde constam opções vegetarianas como “Risotto de cogumelos” ou o “Hamburguer vegan”. Nas sobremesas, o destaque vai para a “Mousse de kamoca” (€7,70) que tem como ingrediente principal o milho, também abundante na ilha e presente no “Cremoso de milho tropical” (€7,70). Para acompanhar, há cocktails e bebidas espirituosas, vinho português e cabo-verdiano: o Terra Chã, branco e tinto, produzido na ilha do Fogo.
Do lado oposto, rodeado de mar e com vista sobre o Farol D. Maria Pia, vive o amplo Jasmim, espaço onde é servido o abundante pequeno-almoço buffet e que acolhe também eventos.
Ginásio e Spa, com duas salas de tratamentos baseados em elementos locais, completam a oferta. Num local que se debate com dificuldades no acesso à água, o Barceló Praia Cape Verde (Avenida Rotary International, Praia, Cabo Verde. Tel. +238 2617700) dispõe de tecnologia de dessalinização da água do mar, que a torna potável.
De calhambeque pela Praia
Chegam vestidos a rigor, a combinar com os “calhambeques”, requintados tuk tuks em formato de carro antigo, para conduzir os turistas pela cidade a partir do hotel. Além dos principais pontos de visita à Praia, o tamanho reduzido dos veículos da Go Electric City Tour permite aceder a bairros mais inacessíveis, onde se cruzam com o dia a dia da população e se observam as muitas obras de arte urbana que dão colorido à cidade. Em bairros como a Achada Grande, Achada de Santo António, ou Terra Branca, o coletivo de artistas “Viagem nas tintas” intervém nas fachadas das casas com pinturas que retratam ícones cabo-verdianos. Cesária Évora, Amílcar Cabral, mas também elementos da natureza, como pássaros, retratos da vida comum, músicos locais ou pinturas abstratas conferem colorido singular à cidade e alegram os moradores para quem, sem este expediente, seria inacessível pintar as fachadas.
O passeio, que pode ser personalizado, passa pela emblemática praia de Kebra Kanela e tem primeira paragem no Plateau, bairro mais antigo da Praia, capital de Cabo Verde desde 1770. Dominado pela arquitetura colonial e localizado num ponto alto, goza da panorâmica vista sobre outros pontos da urbe e o mar, sobretudo junto à estátua erguida a Diogo Gomes, navegador que em 1460 descobriu a ilha. Passa pela central Praça Alexandre Herculano, em frente à Câmara Municipal e a diversos edifícios estatais e religiosos, como o Quartel Militar, o Palácio Presidencial ou a concorrida Igreja Matriz de Nossa Senhora da Graça, para desembocar na principal rua de comércio, onde também se localiza o mercado municipal. Frutas, legumes, linguiça da terra, peixe e carne, além de “ramedi terra” - chás e ervas frescas para curar as mais variadas maleitas - encontram-se neste local animado onde também pode almoçar o prato do dia a preço moderado (cerca de €2,5).
Reserve algum tempo para visitar a Fundação Amílcar Cabral, figura central na independência de Cabo Verde e fundador do PAIGC, a cuja visão muito se deve uma transição pacífica do país. Para mergulhar a fundo nas tradições antigas da cidade, da ilha e do país, o destino é o Museu Etnográfico.
O passeio, que desperta sorrisos e interação com os locais por onde passa, pode durar entre 1h30 e duas horas e custa €75 horas por veículo, que leva até quatro visitantes.
Dias quentes, noites festivas
Nos bairros mais tradicionais da cidade, onde todos se conhecem, as noites são longas. A rua é ponto de encontro para ouvir música, conversar, jogar e dançar pela noite dentro, por vezes na companhia da Strela, cerveja local, ou do Grogue, a bebida nacional, a aguardente de cana elaborada a partir da abundante cana de açúcar. Simples, envelhecida ou mesclada com mel de cana, é também servida como digestivo nos restaurantes. A bebida tem por companhia frequente a moreia frita, que tanto se alinha como petisco como serve de jantar. Para juntar dois prazeres num só, recomenda-se uma visita ao Quintal da Música, onde todas as noites a cozinha afamada de Alia dos Santos se une à música ao vivo. A chef, conhecida pela mestria na elaboração da cozinha tradicional – a “Cachupa Rica” (€12) é especialidade - tem também pratos de criação própria, como o “Arroz do Suriname” (€15), um dos favoritos da casa. “Tataki de atum com sésamo e salada oriental” (€18), “Polvo com legumes” (€20), “Camarão ao alho”, “Paella” e “Mista de carne” (€16) são outros destaques da ementa neste restaurante que anima a noite da Praia há 25 anos, há 23 sob os comandos de Alia, que não aparenta a soma de 74 anos. “Sempre gostei de cozinhar desde criança”, conta. “Aprendi praticamente sozinha. A minha mãe não tinha muito jeito e eu quando pegava, qualquer coisa dava resultado”. A criatividade de Alia, com obra publicada em forma de receitas clássicas e outras criadas por si, vai sendo alimentada pelo espírito autodidata: “De vez em quando vou a Portugal e compro livros, vou à internet, vou estudando”, explica. “Cachupinha”, elaborada com milho verde e “Caril de cachupa”, com atum, constam das opções do espaço, sobretudo para quem não come carne. “Bo tem mo pa panela”, elogia-se em crioulo quem “sabe cozinhar bem”.
De 1490 a Património da Humanidade
Classificada como Património Mundial pela UNESCO desde 2009, a Cidade Velha, outrora chamada de Ribeira Grande e primeira capital de Cabo Verde, guarda alguns vestígios dos primeiros tempos da colonização. A rua da Banana terá sido a primeira construída pelos portugueses em África e é ainda possível observar as casinhas de pedra pintada de branco – para aliviar o calor – ainda habitadas. Segue-se viagem até ao Convento de São Francisco, do século XVII. Na zona baixa, junto ao antigo porto, um pelourinho marca o local onde se comercializavam escravos que chegavam de vários pontos do continente. O passeio continua pelo altaneiro Forte de São Francisco, erguido em 1593 como sistema defensivo para proteger a ilha dos ataques dos piratas que se descobre numa visita livre ou guiada. Com vista abrangente sobre o mar, a Cidade velha, as montanhas e planícies desenham uma paisagem pontuada por milhares de acácias. A fortaleza foi recuperada e aberta em 2022 a visitas.
Cachupa na montanha
Subindo a serra, a paisagem justifica o nome do arquipélago numa imensidão de verde, agora que chegou a estação das chuvas. A estrada cruza a ilha até à altaneira cidade da Assomada, e pede paragens frequentes para fotografar e petiscar. Primeiro apeadeiro: São Domingos, a curta distância da cidade da Praia, onde um quiosque à beira da estrada serve afamados “Pastéis de milho”. Pouco mais à frente, um restaurante familiar é ponto de paragem obrigatório para provar o prato mais emblemático da ilha, a “Cachupa”, elaborada no exterior, ao lume em enormes panelas e frigideiras. Além da “Cachupa”, que leva diversas carnes de porco, enchidos e fígado, o Padjuco, na localidade de Orgãos, é também célebre pela linguiça da terra, que nasce dos porcos de criação caseira e chega a vários espaços de restauração da ilha. Mas aqui, assada ao lume e com um ligeiro travo picante, prova-se sob telhados de colmo enquanto se troca dois dedos de conversa com a família que gere o concorrido negócio – ao fim de semana em especial, convém reservar. Aberto pelo patriarca na década de 1990, entretanto falecido, hoje é a esposa Ângela Vaz, o filho Mário Vaz e família que dão conta das muitas travessas servidas em ambiente informal. “Carne grelhada” e “Sandes de torresmo” são outras especialidades.
Do inferno ao paraíso no Tarrafal
Tal como os diversos regimes totalitários que marcaram a Europa do início do século passado, também o português Estado Novo desenhou um centro de reclusão e tortura na localidade de Chão Bom para encarcerar quem se opunha ao regime e lutava pela liberdade em Portugal ou nas ex-colónias. Escolheu instalar no Tarrafal uma “colónia penal em Cabo Verde para presos políticos e sociais”, onde criou diversos instrumentos de tortura para os prisioneiros de países como Angola, Guiné, Cabo Verde ou Portugal. Durante a visita ao Museu do Campo de Concentração do Tarrafal, que recebeu os primeiros presos a 29 de outubro de 1936, descobre-se história e vivências de má memória do espaço onde estiveram detidas 588 pessoas. Em duas fases, a primeira até 1954; a segunda até à semana a seguir ao 25 de abril de 1974, observam-se as condições em que viviam neste “Campo de morte lenta”, como ficou conhecido, os prisioneiros, os castigos infligidos, nomeadamente em celas solitárias ou na desumana cela cujo interior podia atingir 50 graus, conhecida como “frigideira” ou a escassez de cuidados de saúde. “Não estou aqui para curar mas passar certidões de óbito”, ficou célere a afirmação do médico responsável pelo campo, Esmeraldo Pais. Celas, cozinha, solitárias e outros espaços que marcavam a rotina do Campo de Concentração apresentam informações sobre os reclusos, revelando a escassa assistência média, a censura da correspondência e também histórias de superação. No local, dominado pelo silêncio, uma centelha de esperança acende-se na “Biblioteca dos títulos proibidos” onde constam diversos exemplares de livros banidos pela censura. Vá com tempo para uma visita obrigatória, para não mais esquecer.
Do inferno do campo de concentração parte-se em direção ao paraíso. Colorida por barcos de recreio e de pescadores e abraçada por densa vegetação, a praia do Tarrafal merece um mergulho com tempo nas águas tranquilas e temperadas que se sobrepõem à areia fina. Muna-se de água de coco junto das vendedoras junto ao areal. Antes ou depois de ir a banhos, equilibrado sobre as rochas e as ondas, o restaurante Ribamar oferece produtos do mar confecionados de forma genuína e saborosa. Sobre o mar e com música de fundo, o espaço descontraído aposta em entradas como a “Moreia frita” (€5), “Camarão” (€6) ou “Polvo” (€7) e pratos como o “Esmoregal grelhado” (€12), acompanhado de legumes, arroz e batata frita e o “Arroz de marisco” (€18), especialidades que pode acompanhar com vinho ou cocktails.
Como chegar
A TAP voa três vezes por semana entre Lisboa e a cidade da Praia, aterrando no Aeroporto Nelson Mandela às quartas, sextas-feiras e domingo, com preços a partir de €299.
Os preços apresentados são arredondados para euros a partir do escudo cabo-verdiano: €1 = 110 escudos cabo-verdianos.