Dalila Rodrigues devia saber melhor. E devia ter memória. Quando em 2007 foi demitida do Museu Nacional de Arte Antiga por se opor à visão da tutela sobre a autonomia dos museus, teve parte significativa do setor e do pensamento cultural e político do seu lado, sem olhar a campos políticos. Eu estava lá. Era uma visão atenta ao papel dos museus na sociedade e o reconhecimento do trabalho que tinha feito, num país que olha sempre com desconfiança para a cultura. Querem-na sempre veneranda e obrigada, e Dalila Rodrigues havia mostrado que era possível fazê-lo de forma independente e atenta àquilo que eram, à altura, as expectativas dos públicos, dos artistas e dos agentes económicos e sociais.

O que se passou para que em 2024, agora enquanto Ministra da Cultura, tenha empreendido uma batalha que parece pessoal, e que custa em saber-se explicar, contra a presidente do CCB? Francisca Carneiro Fernandes, também ela independente e como a atual Ministra, foi nomeada, serviu e trabalhou com governos de direita, de esquerda e movimentos independentes, em instituições nacionais e municipais.

O que aconteceu para que voltássemos a uma visão que afunda a direita no património e a esquerda na contemporaneidade e que Dalila Rodrigues saber ser errada e injusta, porque o praticou antes e no MNAA, numa abertura pioneira que se tornou, depois, prática regular e indispensável?

A verdade é que, desde a sua nomeação, a Ministra viveu encerrada no seu palácio, não deu qualquer entrevista, faltou a audiências na Comissão de Cultura da Assembleia da República, nem foi confrontada com qualquer abordagem que indicasse qual a sua visão e a do governo. No fundo, sobre o que pensa para um setor tão vital para a memória e identidades do país, ficamos a saber pouco de quem sempre quis fazer tanto. E contam-se pelos dedos, se os houver, os habituais artigos institucionais sobre o que pensa, viu ou quis distinguir, tanto quanto foi parca em elogios fúnebres ou de celebração de conquistas nacionais ou internacionais.

A apresentação que fez dos 25 pontos que continua a apresentar como uma estratégia foi feita na sequência de uma reunião de Conselho de Ministros, e com perguntas limitadas, para além de muitas das intenções terem sido apresentadas sem uma discussão com os organismos diretamente por si tutelados. E, num arrepio ao que deve ser a ação de um governo, muitos desses pontos são programação direta, com ingerência assumida nos compromissos dos organismos, sem acautelamento orçamental de instituições que terão os seus orçamentos de receitas próprias reduzidos, por fecho para obras, gratuitidade imposta ou cativações. Mas sobre isso, pouco se falou, face à repetição de que o orçamento não diminuía. Mas diminuiu.

Do interior do palácio, a Ministra decidiu programar o país, num gesto que, no mínimo, desrespeita o muito que já é feito e, só por educação democrática, não se pode definir por populismo. Mas devia: porque algumas das medidas já existiam; porque muitas são de impacto circunstancial; porque é um programa impositivo e desajustado quando muitos estão ou vão estar fechados. Mesmo que algumas ideias mereçam discussão, sejam bem-intencionadas e possam ser articuladas e postas em prática, são 25 ideias, não é uma política cultural.

Apesar de todos os atropelos, atrasos, desorçamentação, imposições, revisões e cativações, vivemos num país em que, e bem, por força do passado, o governo não programa, não interfere nem decide a oferta cultural das instituições que estão sob sua tutela direta ou na esfera da sua ação. Não é uma conquista de Abril, é uma vitória da transparência que se traduziu numa melhoria do acesso, da produção e da qualidade da oferta cultural. Nem sempre se traduziu numa melhoria das condições de trabalho dos profissionais das instituições culturais, mas era isso que se esperava de quem tutela um setor que se estrutura a partir da sociedade civil. Uma Ministra que ignora os trabalhadores, os seus únicos tutelados é uma Ministra que, sendo independente, e porque que diz servir as comunidades artísticas (e os públicos, portanto) e não o partido, não está a fazer o seu papel. E sendo assim está na altura de assumir que esta Ministra não serve.

Aquilo que quem ocupa a pasta da Cultura deverá saber é que o titular da pasta da Cultura não faz processos de intenções nem usa o argumento de uma nova estratégia para o país a partir de um equipamento e da sua presidência. Não é sequer lógico que um equipamento cultural na esfera indireta de ação do Estado, como é uma fundação, possa ser responsabilizado pela relação com o país. Para isso, existem as direções-gerais, os institutos públicos e as entidades empresariais que estão sob tutela direta do Ministério da Cultura. Os restantes “braços” são complementares.

Uma Ministra que foi diretora de dois museus e de um monumento nacional, administradora em duas fundações e historiadora com currículo e reconhecimento sabe melhor. E deveria saber ainda mais o que faz um programador, o que se pede de um espaço, e para que serve, e a que serve. Para mais tendo sido administradora do CCB, deveria saber que esta é uma casa para as artes performativas e a arte contemporânea, não é um museu, apesar de contemplar um, que durante anos não o pôde ser, precisamente por ter sido tomado de assalto pelo poder da economia, das finanças, do compadrio e dos negócios obscuros que lesaram o Estado.

Quem agora se senta no Conselho de Administração do CCB, com responsabilidades sobre o museu, e que coordenou a abertura de um concurso para a nova direção, deveria estar na primeira fila de todos os debates sobre as oportunidades que agora não serão perdidas. Do mesmo modo, quem ali se senta com responsabilidades sobre a imagem, a comunicação e a gestão de eventos, saberá que, para o mercado, uma casa com má fama é uma casa com a qual as marcas não se querem envolver. O facto de Delfim Sardo e Madalena Reis terem sido poupados a esta exoneração, é revelador das intenções políticas, compadrios e cunhas que são agora usadas como argumento para um novo rumo. Porque o “penoso” e “frágil” plano de atividades, bem como os resultados, também os envolve e responsabiliza... A Ministra sabe a fragilidade dos seus argumentos, porque esteve do outro lado, quando foi afastada de instituições porque o seu bom trabalho ofuscava quem mandava.

Acusar a prática de uma cultura de programação de ser de nicho, ou woke, é assumir uma estratégia de exclusão, de discriminação e de relativização sociais, que é precisamente o combate com que estão comprometidas as instituições culturais: abrir, dialogar, acolher. Isso faz-se em escalas distintas, nem todas para as massas – que é o apanágio das ditaduras sejam mais ou menos assumidas, válido também para as de pensamento e de gosto – equilibrando retornos, gerindo propostas, projetos e ideias, apostando no que ainda é difícil, investigando e inventando, para que a história não se repita e as instituições possam, de facto, ser e servir para todos. Seria expectável que uma historiadora que passou por tantas e tão diferentes instituições o percebesse e praticasse.

Com um novo rumo, e uma participação na atividade do país, a Ministra parece esquecer a longa lista de proveniências dos diferentes agentes culturais, o trabalho em rede nacional e internacional que assegura coproduções que permitem praticar preços mais baixos e que fazem de instituições como o CCB lugares de validação e de reconhecimento para os artistas, mas muito em particular, para os públicos. A manifestação de interesse a que faz permanente alusão é o contrário da prática de programação, que implica equilíbrios, escolhas e uma gestão aturada e atenta do que de melhor possa traduzir a missão dos equipamentos. E programar é escolher. As instituições culturais não são armazéns vazios à espera de quem os ocupe. Servem propósitos complementares e têm regras que aqueles que sopram aos ouvidos do poder parecem nunca querer saber, porque se consideram com direitos adquiridos (a lista de convidados para o único encontro que o primeiro-ministro teve com o setor é elucidativa das raízes do discurso agora apresentado).

Não somos todos o resultado de cunhas, compadrios e favores. Há quem tenha currículo, percurso, e trabalho comprovado, com impacto social e económico, para lá do cultural e do discurso. E sirva as instituições e as tutelas, os trabalhadores e os públicos, recomponha e refreie os impulsos dirigistas, utilitários e aproveitadores, e faça das instituições um exemplo. Foi isso que Dalila Rodrigues fez no Grão Vasco e no MNAA, nos Jerónimos e na Torre de Belém, por exemplo.

O que falta é escrutínio permanente, continuado e informado não só da imprensa, que trata a cultura apenas pela agenda, mas de muito dos deputados, na Assembleia da República e municipais, dos comentadores políticos e dos próprios agentes culturais. Faltam fóruns, debates e manifestações, essas sim verdadeiramente de interesse, que sublinhem, denunciem e discutam a cultura para lá da estética, das identidades coletivas e do sal da democracia. Porque falta democracia ao debate cultural, para lá da estafada frase da sua importância para o que nos constituiu, falta saber falar sobre cultura, para lá dos orçamentos baixos, das crises e do espúrio debate sobre mercado e independência. Por isso, é importante que a cultura não saia, agora, do espaço público. Aquilo a que estamos a assistir é o resultado desta falha e responsabilidade coletivas.

Em bom rigor, ainda aqui estaremos quando esta Ministra passar. Foi sempre assim. A cultura ficou sempre cá e depois de todos os ocupantes da pasta. Ainda que desfeita, sempre preparada e pronta para se reerguer. O consolo que pode ficar é que a atual Ministra não está sozinha na longa lista de ministros dos PSD e do PS que empreendem a gerência da pasta da cultura como uma guerra aos interesses que dizem estar instalados -mas sempre de um dos lados -, e na defesa dos públicos, sempre novos, mas raramente acompanhados. Sabemos em que é que isso tem dado: uma radicalização do discurso político sobre a cultura, uma desconfiança sobre o trabalho de preparação que justifica o seu papel social, uma depauperização dos orçamentos, um enfraquecimento da oferta, da diversidade e da continuidade.

Onde estão os agentes que, ao longo dos últimos anos assistiram, e se construíram, também e através do acompanhamento feito, na direção artística e administrativa de figuras agora resumidas a cunhas e compadrios? Onde estão aqueles que esperavam do CCB um outro acompanhamento e, ao longo de anos, se queixaram, à boca pequena e atrás da porta, da anemia da instituição? Onde estão os que voltaram a ser recebidos, foram desafiados e começavam a pensar os projetos para os próximos anos? Onde estão os responsáveis pelas instituições que negociaram projetos e parcerias, que construíram redes e defenderam um trabalho em comum, num momento em que o que foi, e queria ser feito, é descrito como penoso, de nicho e que não serve o país? Isto também é sobre vocês.

Onde estão, como estiveram – e bem – quando Dalila Rodrigues foi erradamente demitida do MNAA, e por discordar da tutela, o que nem é, aqui, o caso? Onde estão os que foram nomeados por esta tutela para o Conselho Diretivo do CCB e que aprovaram a programação que a Ministra agora descreve como penosa? E onde estão os públicos que, em todas essas instituições por onde passaram quem agora é enxovalhado, puderam ver o que os ajudou a serem cidadãos, a pensar, a agir, a exigir mais não apenas dos artistas e das instituições culturais, mas da tutela? Onde está, afinal, o sobressalto que contradiga a mentira, que se oponha ao insulto, que diga, claramente, que não vale tudo?

Como lembra o famoso poema, porque antes achamos que não era nada connosco, um dia que nos venham buscar, não haverá quem nos defenda. Desta e das próximas rainhas e reis de copas.


Crítico e Programador. Comissário convidado do festival FeLiCidade.