Na véspera da cerimónia de “concessão de honras”, que assinala a transladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, vale a pena recordar este monumento, que é construção da memória nacional e uma homenagem a incontornáveis figuras portuguesas. Desde a política à literatura, passando pelos descobrimentos e pelo fado, várias são as figuras homenageadas. Já foi um monumento “de homens” e uma ode aos descobrimentos, agora vai escrever-se um novo capítulo na sua história.

Quando Eça de Queiroz faleceu, em 1900, as obras da Igreja de Santa Engrácia estavam longe de estar terminadas, apenas o seriam em 1966. Ainda assim, a origem deste monumento remonta a 1836, quando o então ministro Passos Manuel decreta a edificação de um Panteão Nacional, sem definir um local. “O Panteão português é um caso bastante paradigmático”, afirma Frederico Pereira Martins, historiador, investigador e autor da tese de mestrado “O Panteão Nacional - a Ideia dos Heróis e do Panteão em Portugal”: a obra foi demorada, houve indecisões no modelo a seguir e envoolveu algumas polémicas, entre as quais uma recente, a propósito do jantar de encerramento da Web Summit.

Panteão Nacional à francesa ou à inglesa?

O escritor Almeida Garrett e ministro Passos Manuel foram os grandes promotores do monumento, embora discordassem quanto ao modelo a ser seguido: o inglês ou o francês. Quando, em 1836, decreta a construção de um Panteão Nacional, o Ministro do Reino, Passos Manuel, é acusado pela fação cartista da monarquia liberal de D. Pedro IV de ter redigido um documento jacobino, “numa clara alusão àquilo que são as influências francesas do Panteão”. O documento definia que a decisão de colocar uma personalidade no Panteão seria tomada pela Assembleia da República, um regulamento que se mantém até hoje, e que a panteonização só poderia ocorrer quatro anos após a morte, para evitar a retirada das ossadas no monumento após a decisão, tal como ocorrera em França, com Jean-Paul Marat e Honoré Mirabeau, figuras ligadas à Revolução.

O modelo francês é uma rutura completa no paradigma. O país tinha o templo de Saint Denis, onde estavam panteonizadas as famílias reais e as grandes figuras de França, e a Revolução Francesa veio mudar tudo, colocando o novo altar cívico em Santa Genoveva e, a partir daí, passa a ser panteão nacional em França”, explica Frederico Pereira Martins. Já Inglaterra, encontrou na Abadia de Westminster um local para honrar a monárquica e as grandes personalidades históricas.

Quando em 1836 se tentou definir as figuras que poderiam ser transladadas para o Panteão Nacional, Almeida Garrett, membro da comissão e descontente com o resultado, afirmou que “o Panteão deveria ser aquilo que apelidou de nosso Westminster", referindo-se ao Mosteiro dos Jerónimos.

“A construção do Mosteiro dos Jerónimos é feita como Panteão de D. Manuel I e da dinastia de Avis”, nota António Valdemar, jornalista e responsável pela proposta que colocou Aquilino Ribeiro no Panteão Nacional. O objetivo do edifício de Santa Engrácia era homenagear “figuras civis e não monárquicas”.

Tal como o novo Panteão francês, criado para conservar na memória nacional os “Grandes Homens”, também no decreto português oitocentista consta que o monumento português deveria estar “consagrado à memória dos Grandes Homens, que bem mereceram da Pátria”, referindo personalidades como Luís de Camões, Infante D. Henrique e D. Pedro IV.

“O conceito de Grandes Homens distancia-se dos heróis por várias questões, mas uma delas é por um conjunto de ações valorosas que conduzem ao bem comum e ao progresso das sociedades”, explica Frederico Pereira Martins. Ou seja, o valor passa a ser definido pelo mérito e não pela monarquia ou pertença ao clérigo.

O Panteão de Paris é o “irmão mais velho do nosso” e “como o nosso, figuras literárias, da filosofia, do pensamento, das artes, convivem com os políticos”, explica Pedro Delgado Alves, deputado do PS e coordenador do grupo de trabalho das honras no Panteão de Eça de Queiroz e de Aristides de Sousa Mendes e também autor da última alteração à lei do Panteão.

É um “Panteão de homens”, mas tem figuras que alteraram o paradigma

Da ideia até à sua concretização, foi um longo caminho. Só em 1966, após o término das obras, que duraram quase 400 anos, foram transladadas as primeiras personalidades: os escritores Almeida Garrett, Guerra Junqueiro e João de Deus e os antigos presidentes da República, Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona. A transladação seguinte (impulsionada pelo então Presidente Mário Soares) aconteceu em 1990, com o Marechal Humberto Delgado.

Embora o término das obras tenha ocorrido durante o Estado Novo, “não foi através do Panteão que se fez grande parte da propaganda do regime", constata Pedro Delgado Alves: "Se virmos, durante aquele período praticamente não há [transladações], com a exceção do general Carmona”. Ainda assim, António Valdemar ressalva que “há figuras nitidamente do fascismo, como é o caso precisamente de Carmona, um dos três presidentes do Salazar e uma das faces mais agressivas do salazarismo”.

Também Frederico Pereira Martins recorda que a Comissão Consultiva para as obras de Santa Engrácia, constituída em finais de 1965, decidiu transladar Óscar Carmona, transferindo do Mosteiro dos Jerónimos as ossadas das restantes personalidades colocadas no Panteão nesse ano. Foram ainda criados cenotáfios -túmulos sem a presença dos restos mortais - para Luís de Camões, Vasco da Gama, Nuno Álvares Pereira, Afonso de Albuquerque, Pedro Álvares Cabral e o Infante D. Henrique.

A escolha de homenagear figuras ligada à época dos descobrimentos não foi um acaso. O historiador lembra que “em 1961 tinha começado a guerra colonial", pelo que o Panteão foi inaugurado "num momento já de grande desafio para o próprio regime, com várias nações nas Nações Unidas (e não só) a olhar com desconfiança para o regime, precisamente pela possessão de territórios e de colónias”.

Já em democracia, a decisão de homenagear Humberto Delgado foi uma forma de “reconciliação do Panteão Nacional com as instituições democráticas”, diz Pedro Delgado Alves. Para Frederico Pereira Martins, o Marechal “representa simbolicamente e, acima de tudo, a restituição da Presidência da República Portuguesa, que lhe fora negada durante o Estado Novo, e representa também uma contra memória de todos aqueles que foram oprimidos pelo regime ditatorial português”.

Até então ligado à literatura e à política, uma alteração de paradigma acontece em 2001 com a entrada de Amália Rodrigues no monumento nacional. Além de ter sido a primeira mulher homenageada, a fadista representa a entrada de uma “cultura mais popular” que “não se enquadra na narrativa programática”. O historiador afirma que “os agentes políticos perceberam a adesão do povo português a Amália Rodrigues e perceberam que ela era uma representante da identidade nacional”.

“É uma artista que marca uma geração e é, de facto, uma elegida na cultura portuguesa que ultrapassa décadas. Isso em França não teria motivado polémicas, por exemplo Josephine Baker foi representada pelo Panteão em França”, diz Pedro Delgado Alves.

Após a fadista, seguiram-se a transladação do primeiro Presidente da República, Manuel de Arriaga, em 2004, o escritor Aquilino Ribeiro, em 2007, e a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, em 2014. O futebolista Eusébio da Silva Ferreira foi transladado em 2015.

O caso do futeboista causou, na altura, acesas discussões. Como o Panteão era “mais fechado e restritivo”, reservado apenas aos grandes ícones literários e políticos, Pedro Delgado Alves recorda que a figura de Eusébio não “encaixa diretamente em nenhum destes perfis". Mas sendo "uma personalidade marcante da cultura nacional naquele momento”, o deputado acredita que a questão da sepultura do futebolista no Panteão Nacional ficou resolvida.

Frederico Pereira Martins explica que "Eusébio representa até uma confirmação de um paradigma” e pode ser uma “reconciliação e uma aproximação àquilo que são hoje as comunidades CPLP, os PALOP, nomeadamente as antigas colónias portuguesas”.

“É um bocado forçado e o Eusébio muito mais. Agora, se me perguntar o que dá vida ao Panteão, claro que é a Amália e o Eusébio”, conta António Valdemar. Numa entrevista ao Expresso, em 2023, o diretor do Panteão Nacional, Santiago Macias, revelava que a maioria dos visitantes quer ver os túmulos do jogador de futebol e da artista. “A Amália Rodrigues tem flores muitas vezes, e também já vi flores no Eusébio e no Sidónio Pais”, conta Frederico Pereira Martins.

Em 19 personalidades sepultadas e homenageadas, 20 com Eça de Queiroz, apenas duas são mulheres, Amália Rodrigues e Sophia de Mello Breyner. Ainda assim, a homenagem a ambas é uma garantia que “as mulheres também têm um lugar”, sublinha o historiador.

A falta de representatividade “é fruto das circunstâncias e da infelicidade do peso que as mulheres têm na vida nacional”, descreve o deputado socialista que indica que Maria de Lourdes Pintasilgo, a primeira e única mulher a exercer o cargo de primeira-ministra em Portugal, poderia constituir um novo nome no Panteão.

A seleção era muito feita com base no género, era um Panteão para homens. Há grandes figuras como a Josefa de Óbidos ou a Marquesa da Lorna” que não foram sepultadas - mas podiam ter sido - em Santa Engrácia, defende também António Valdemar.

Ao longo dos anos, tem havido ainda discussões sobre a influência da maçonaria. Desde Sidónio Pais a Humberto Delgado, há personalidades no Panteão ligadas à maçonaria, mas Frederico Pereira Martins descarta a hipótese de que o monumento “esteja tomado por essa dimensão” e realça que é preciso “enquadrar Portugal na conjetura histórica, social e cultural”.

“Tinham essa vivência maçónica, porque fazia parte da forma como se participava politicamente na altura. É mais uma circunstância do tempo”, afirma Pedro Delgado Alves. “Não é requisito de entrada, nunca foi, mas hoje seguramente não é, mas também não é requisito de exclusão”.

Panteão é uma forma de manter uma memória nacional

O panteão tem de ser entendido de um ponto de vista simbólico porque aquilo é representação de memórias e de identidades”, afirma Frederico Pereira Martins. Trata-se da perpetuação de memórias “intencionalmente” para que “as gerações futuras memorizem todas estas personalidades que vão passar a figurar, pelo menos em teoria, o imaginário coletivo dos portugueses, porque ali estão aquelas que são consideradas as maiores figuras da pátria portuguesa”.

Em 2016, a lei de acesso ao Panteão foi alterada para que a decisão de transladação só possa ser tomada após 20 anos da morte e a lápide alusiva seja apenas colocada após cinco anos do falecimento. Responsável pelas alterações na legislação, Pedro Delgado Alves afirma que esta foi uma forma de “proteger o Panteão também de quem potencialmente quer aproveitar o sentimento e a emoção do falecimento”, considerando que “é uma decisão que não deveria ser tomada a quente” e que deve ser tomada com base na “memória coletiva”.

A exigência temporal é ainda uma forma de garantir o consenso sobre uma determinada figura nacional. “Há personalidades, que na altura em que foram para o Panteão, eram mais consensuais do que seriam hoje. Há dois casos em que se é muito evidente, João de Deus e Guerra Junqueiro, não sei se, em 2025, tivessem de ser decididas honras de Panteão a qualquer um deles, se se concluiria que tinham de estar no Panteão Nacional”, explica o deputado socialista.

Relativamente à “viagem dos ossos” de Eça, como António Valdemar a descreve, Pedro Delgado Alves salienta que “é simultaneamente a transladação mais polémica porque houve quem se opusesse à transação, mas também, do ponto de vista da concessão das honras, é consensual, porque ninguém se opôs a uma homenagem no Panteão”.

Zeca Afonso, Passos Manuel, Salgueiro Maia: quem serão as próximas figuras no Panteão?

Enquanto a família de Zeca Afonso se opõe à transladação do artista para o Panteão Nacional, e há personalidades que expressam como querem ser sepultados, como o caso de Salgueiro Maia, a lista de figuras que seriam consensuais é longa, mas as decisões das próximas sepulturas não serão tomadas tão cedo. Uma das mais recentes concessões de honras aconteceu em 2021 quando foi colocada uma placa comemorativa de Aristides de Sousa Mendes.

Frederico Alves Delgado indica que deverá haver uma continuidade do paradigma iniciado por Amália Rodrigues, enquanto Pedro Delgado Alves defende que essa é uma decisão que “depende de cada geração” e que deverá estar agora nas mãos das gerações futuras, considerando o grande número de personalidades que entraram no Panteão nos últimos 15 anos.

António Valdemar salienta que a vontade popular é uma enorme “pressão política”, mas cabe à Assembleia da República tomar a última decisão. O jornalista destaca uma longa lista figuras dignas de irem para o monumento, entre elas Egas Moniz, prémio Nobel da medicina, ou o pintor Amadeo de Souza-Cardoso.