A denúncia de violação de uma DJ contra um pianista de jazz, amplamente conhecido no meio, rapidamente se espalhou nas redes sociais seguindo-se dezenas de partilhas sobre experiências de abuso e assédio sexual, visando o pianista mas não só. Pela primeira vez em Portugal, assistimos então à quebra de um pacto de silêncio implícito dentro da comunidade do jazz e observa-se a uma escala aterradora a quantidade e semelhança de vivências partilhadas por mulheres e que rompe dinâmicas de isolamento em que muitas vezes estas se encontram quando são vítimas de assédio ou abuso sexual. No caso em concreto as alegações são sobre um músico que durante anos exibiu um comportamento predatório, dentro e fora de instituições, através de contactos insistentes, insinuações sexuais, mensagens predatórias e uso do seu estatuto para pressionar a vítima.
Será isto novidade para as mulheres, pessoas não binárias ou de uma minoria historicamente discriminada ou em desvantagem que trabalham no mundo do jazz? Infelizmente não.
Estas experiências de assédio ou abuso não são pontuais, são sim sistémicas. Apesar de haver uma evidente separação entre ações individuais e instituições, quando se diz que um problema é sistémico, significa que está profundamente enraizado nas estruturas, valores e práticas de uma cultura. Existem inúmeras formas de participar nesta dinâmica, seja como facilitador, testemunha e, por diversas razões, cúmplice. A precariedade laboral, as relações de co-dependência, ou simplesmente uma ausência de consciência sobre a extensão da gravidade destes comportamentos, inibe que professores e colegas utilizem o seu poder para erradicar todas as formas de abuso.
Não é novidade que situações de abuso e assédio sexual são transversais à sociedade e expressam-se em diversos contextos. Falamos de Portugal, país em que a violência contra as mulheres, seja verbal ou física, está normalizada por estatísticas deprimentes de violência doméstica e mulheres mortas por companheiros. Em 2022 contaram-se 30389 ocorrências de violência doméstica à PSP e em 2023 o crime de violência doméstica foi o mais ocorrido em Portugal.
Olhando atentamente para o panorama do jazz nacional há uma realidade impossível de negar: a falta de equilíbrio em termos de género em toda a comunidade. Desde 2017 que o Movimento #metoo abanou o mundo do jazz, mas Portugal peca por chegar tarde. Em vez de olhar para si próprio, acreditou que isso não acontecia cá, e "para quê abanar um meio tão pequeno?” “Somos todos parte da família do jazz português”. O jazz permaneceu um meio dominantemente masculino e heteronormativo, as escolas com um fortíssimo desequilíbrio de género na representação de alunas e professoras. Quantas mulheres ou pessoas não binárias (adolescentes, jovens ou adultas) terão desistido de perseguir uma carreira no jazz após experiências de assédio ou abuso, aprofundando ainda mais este desequilíbrio?
Pensemos no percurso de um músico de jazz em Portugal: talvez comece como adolescente em contextos de aprendizagem relativamente informais, onde as relações de professores facilmente se misturam com relações de amizade. Estudantes entre os 13-18 anos seguem com admiração os professores muitas vezes bastante mais velhos. No seguimento disto, vem as escolas onde o/a aspirante a músico tenta continuar os seus estudos, culminando com os estudos na universidade. Sendo Portugal um país pequeno, será frequente encontrar os mesmos músicos a ensinarem adolescentes, jovens músicos e a liderarem organizações, festivais ou instituições educacionais. A partilha dos espaços de aprendizagem e profissionalização com professores que, futuramente, serão seus colegas, todos interligados por relações de interdependência profissional, cria terreno fértil para situações de abuso de poder e o sentimento de impunidade. Contam-se pelos dedos das mãos as mulheres que singram neste percurso ilesas.
Esta denúncia expôs uma ferida aberta que tem gerado ansiedade e tensões, mas também conversas profundamente urgentes. Porque demorou tanto tempo à comunidade de músicos, escolas, festivais ou publicações a tomarem iniciativas explícitas contra o assédio e abuso sexual? Porque demorou tanto tempo a ouvirem as vítimas e a ouvirem as mulheres profissionais que sofrem desde há décadas discriminação no meio?
Existe então agora uma oportunidade única para dar a palavra às profissionais que trabalham neste campo. Muitas mulheres e pessoas não-binárias no mundo da música desenvolveram iniciativas e estratégias para criar espaços de trabalho mais seguros e justos para todes. O silêncio dos colegas já não é aceitável. É urgente a comunidade do jazz entender o que pode ser considerado assédio ou abuso, o que significa consentimento e que ser passivo ao testemunhar situações de descriminação não é opção. É fundamental criar espaços seguros para as vítimas falarem, códigos de conduta, repensar os lugares educativos e dar oportunidades às profissionais que por tanto tempo têm silenciado o seu sofrimento. Para que a justiça seja feita e a confiança seja reposta é essencial ouvir e agir sem demoras.