Professor e historiador, Jaime Nogueira Pinto lançou em outubro de 2022, com Rui Ramos e Carlos Maria Bobone, uma revista trimestral, a Crítica XXI, que se propõe criar pensamento político estruturado numa nova linha de direita. Ao SAPO, explica as razões que levaram à publicação, que já conta com sete números editados, e faz uma análise à atualidade nacional e mundial, começando pelo facto político que marcou a última semana, o atentado ao ex-presidente e candidato republicano às eleições americanas de novembro, Donald Trump.

O atentado que Donald Trump sofreu neste fim de semana parece ter consolidado o rumo das presidenciais americanas de novembro. Como é que olha para este episódio?
Eu fui alertado para o que estava a acontecer porque alguém me mandou uma mensagem confesso que me chocou a primeira narrativa que se seguiu, uma criatura que estava a dizer que aquilo podia ser uma montagem e o sangue podia ter sido plantado...

De propósito para sensibilizar as massas.
Isso, mas depois ultrapassou-se, até porque se viu que era uma coisa séria, morreram pessoas... Mas analisando do ponto de vista puramente técnico — e aliás o Erik Prince, que foi um dos responsáveis da Blackwater, publicou uma coisa muito interessante sobre as deficiências da segurança do secret service, que é um serviço do Departamento do Tesouro que está adstrito à segurança dos presidentes e ex-presidentes, de figuras de topo da estrutura, como Trump — parece que de facto não houve muita atenção. Não quero daqui tirar implicações conspiratórias, mas de facto não foram atentos, nem havia drones de vigilância, no fundo um atirador podia agir. E este atirador é uma daquelas figuras que surgem na História, que não são movidos por uma causa, não há propriamente uma conspiração. Parece que o rapaz que tinha sido vítima de bullying e tinha talvez encarnado no Trump uma figura de ódio. E a própria narrativa sobre o Trump, de certo modo, também pode encorajar — e encorajou com certeza — muita gente a odiá-lo sem nunca o ter visto. Agora, quanto às consequências, como como normalmente acontece nestas coisas, acabam por ser talvez positivas para Trump — ainda que seja um bocado imbecil aquela coisa de dizer a quem aproveita e partir sempre do princípio de que foi uma montagem porque aproveitou à vítima.

Mas de facto Donald Trump tirará algum partido disto.
Acho que vai tirar, sim, primeiro porque sobreviveu — se não tivesse sobrevivido, aliás, acho que teria havido um problema seriíssimo nos Estados Unidos por, porque o espírito da América está muito tenso, há muito tempo. Está tudo muito polarizado. Há uma espécie de barreira ideológica muito forte e é um bocadinho exagerado falar em guerra civil, mas há de facto essa polarização. As narrativas são completamente diferentes de uma parte para a outra. Eu devo dizer que olho para a política americana há muitos anos, há mais de 60 anos, e nunca vi, de facto, um ambiente tão polarizado. E isso acontece por várias razões. Trump escapou, teve sorte — se ele não tivesse mexido a cara naquele momento, naturalmente, tinha apanhado com a bala em cheio — e depois a própria reação dele foi notável.

O punho erguido, aquela fotografia que ficará para a História, com a bandeira atrás...
Isso também é engraçado, porque o punho erguido era um sinal dos comunistas, não era propriamente um emblema deste lado... mas que ele popularizou neste momento. E portanto aquela saída, digamos, por cima, com força, projeta-o. E depois inaugura a Convenção Republicana e faz logo uma coisa que é muito interessante e importante.

Eu devo dizer que olho para a política americana há muitos anos, há mais de 60 anos, e nunca vi, de facto, um ambiente tão polarizado

A escolha de JD Vance como vice-presidente.
Exato, e ele tinha várias escolhas, tinha uma lista muito, muito vasta e curiosamente com figuras que se opuseram quase todas a ele. O próprio JD Vance é muito crítico dele, em 2016, a Nikki Haley, o Marco Rubio, a quem ele na campanha de 2016 destratou chamando-lhe "little Marco", e  outras figuras que já não estavam nessa situação mas que incluíam cinco ou seis mulheres, dois ou três afro-americanos... É portanto muito a ideia de um novo Partido Republicano.

O facto de JD Vance ter apenas 39 anos pode ser também, demonstrativo dessa tentativa de renovação do partido?
Sim, mas não é só isso. Eu conheço o JD Vance como escritor, por causa do Hillbilly Elegy, que é um livro muito interessante. É uma memória autobiográfica sobre os brancos pobres da América: ele nasceu zona dos montes Apalaches do Kentucky, e vem de uma família bastante destratada, um pai alcoólico, uma mãe habituada às drogas, uns avós que já são de alguma forma referências, mas é muita história dos tais white trash, aquilo a que Hillary Clinton, num momento muito infeliz, chamou os deplorables. Os brancos excluído, de quem ninguém se lembra. O JD Vance é uma memória de superação dessas condições.

É um bocadinho o regresso à fórmula americana de que é possível superar-se e ter sucesso.
É! Não é aquele sucesso de ganhar muito dinheiro, mas de sair do pior contexto social e conseguir ascender. Ele vem dessa família, vai para os Marines, creio que esteve na guerra (do Iraque) e depois vai para Yale, tira os cursos com altíssimas classificações e depois, em 2014, casa com esta rapariga que é hindu, em 2019 converte-se ao catolicismo — isso também é interessante, porque ele teve uma fase de ateísmo e uma de protestantismo antes... E tudo isto também renova muito o Partido Republicano. E é curioso que Trump tenha feito esta ponte , porque parece que ele estava muito pressionado para ir buscar Haley, que representaria um bocado mais aquele Partido Republicano mais tradicional, mais convencional. E o Vance é um homem com conteúdo histórico, que fez os estudos com altíssimas classificações e trabalhou com um homem que por acaso até conheço pessoalmente, Peter Thiel, também um dos grandes apoiantes do Trump, mas era muito crítico dele antes. Aliás, como a maior parte desta gente que agora se juntou.

Mas é possível que a escolha de JD Vance seja uma forma de conseguir ir buscar eleitorado a que Donald Trump não teria acesso? Ou é uma redundância?
Isso por acaso está bem sugerido, mas ele já não vai precisar de ir buscar, porque neste momento tem o Partido Republicano unido e seguro, não vai precisar de mais. O que é curioso é que nesta Convenção do Partido Republicano apareceram sindicalistas, por exemplo, os estivadores, que tradicionalmente só na segunda eleição de Reagan, quando Reagan ganhou em todos os Estados e teve uma votação maciça, estiveram deste lado. Deve ter sido das poucas vezes que houve este tipo de apoios. Biden teve, aliás, um papel importante a segurar os sindicatos em 2020, porque enquanto a Hillary Clinton era é um liberal chique de Nova Iorque, o Biden tinha essa ligação aos sindicatos, era uma pessoa de origens modestas... A Clinton também, mas rapidamente se converteu muito àquele socialite de Nova Iorque. E agora essa gente parece estar ali. Outra coisa muito impressionante foi a quantidade de afro-americanos, negros que falaram da sua adesão ao Partido Republicano, muitos vindos das tais famílias monoparentais.

Hillary Clinton era é um liberal chique de Nova Iorque, o Biden tinha essa ligação aos sindicatos, era uma pessoa de origens modestas.

Portanto, não é o eleitorado típico.
É um fenómeno. Não é o eleitorado a que estávamos habituados, de classe média suburbana relativamente instalada. É uma mistura muito grande. E lá está, ele podia ter ido buscar o Rubio, que já é um político mais antigo, já é um senador com experiência, vem de uma família de cubanos exilados que chegaram ali com uma mão à frente e outra atrás e que depois subiu... Mas lá está, eu acho que ele já não precisa muito disso, porque já conseguiu reunir todos esses grupos. E este é uma coisa até mais simbólica, porque o Vance é um escritor, é um intelectual, a Netflix fez um filme com este livro, que foi um best-seller.

E o que é que este atentado trouxe de novo também à campanha de Joe Biden?
Bem, ele teve uma frase infeliz e que agora foi citadíssima, em que dizia que era preciso pôr Trump no alvo... quer dizer o alvo que pode ser aquele bullseye das barracas de dardos mas também dos atiradores.

E isso pode ser entendido como um incentivo ao ódio...
Se fosse ao contrário, toda a gente dizia que tinha sido uma incitação e uma consequência direta. Mas Trump também não explorou muito as debilidades de Biden... olhou para ele com aquele ar que pode ser até pior, de quem diz "eu não estou a perceber bem o que ele diz e dá-me impressão que ele também não"... Não vale a pena estar a moralizar, mas dá que pensar termos a potência mais importante do mundo e escolher entre estas alternativas... é evidente que Trump está bem enquanto Biden nota-se que está muito fragilizado...

Não vale a pena estar a moralizar, mas dá que pensar termos a potência mais importante do mundo e escolher entre estas alternativas...

Mas também Biden acabou por capitalizar alguma coisa com o atentado? Contribuiu para que se libertasse um bocadinho daquela perseguição que estava a ser feita, muito pelos media, para empurrá-lo para a saída? Isto acabou também por consolidar a sua posição enquanto candidato final dos Democratas?
Pois, não sei. Podem acontecer muitas coisas até novembro, mas acho que o Partido Democrático está um bocadinho numa alternativa diabólica porque ou fica com Biden e não é muito bom ou tira o Biden e também não tem muitas alternativas.

Antony Blinken não poderia ser uma alternativa?
Não, é um funcionário. Não me parece que tenha aquela coisa fundamental a um político em democracia, que é subir para um caixote de lixo, começar a falar e as pessoas pararem para ouvir. Biden também neste momento é capaz de já não ter, mas já teve, e apesar de tudo é um politicão, tem muita experiência política. Enfim, está fragilizado, mas tem muita experiência. Blinken é um académico, um funcionário. É outro género.

Não lhe custa então dizer que já está definido o vencedor de novembro, que já está definido o próximo presidente dos Estados Unidos?
Não sei, eu não sou nada de festejos ou funerais antecipados. Tudo indica que sim, até porque eles estavam mais ou menos equilibrados... mas vamos ver. Há estados que estão completamente adquiridos para um e para outro. Sabemos que o Vermont ou a maior parte da Nova Inglaterra vai sempre votar democrata e que o Midwest e o Sul em peso votam republicano. Portanto, o que interessa são os chamados swing states. E vê-se, por exemplo, em 2016 a Hillary tem mais votos nacionais, tem mais de 3 milhões de votos, mas o Trump ganha nos swing states, nalguns por margens pequenas, mas ganha. Os Founding Fathers tinham a preocupação de não dar aos estados mais populosos o poder da decisão — tanto que criaram o Senado, em que  o Vermont, que é mínimo, tem dois senadores, tal como a Califórnia, que é gigantesca. E depois criaram esse sistema dos colégios eleitorais, que obriga a levar em conta a maioria nacional, mas depois tem o winner takes all, ou seja, mesmo que seja uma maioria por dez votos, o colégio eleitoral fica todo daquele lado do vencedor.

Atravessando o oceano aqui para a Europa, e falando nestas vitórias adquiridas, o resultado eleitoral em França foi surpreendente? E pode dizer-se realmente que Marine Le Pen foi de facto derrotada?
Não. Não acho que seja. Aliás, teria sido uma vitória pírrica para Le Pen ter ganho nesta altura. Vamos imaginar que o Rassemblement National tinha tido maioria absoluta e fazia governo e depois ficava entre o Eliseu nas mãos de Macron e a esquerda a fazer barulho na rua. Ia ser muito complicado. E a coligação também foi contra-natura. O grande definidor destas coisas políticas foi o Carl Schmitt, com a questão do amigo/inimigo (a essência da política e o instinto político definem-se na capacidade de distinguir entre amigo e inimigo). Mas quando a gente seleciona o amigo em função exclusivamente do inimigo, cria-se alianças que são um bocadinho contra-natura; e isto foi uma espécie de geringonça que se quebrou logo na hora da vitória.

E o que é que se pode esperar deste governo francês?
Agora mesmo, na Nouveau Front Populaire, desde sexta-feira que já nem é só o desacordo com o Macronismo, é mesmo entre eles, dentro da Nouveau Front Populaire, que não chega a uma solução. Há cisões por todo lado, portanto, para já não vejo governo nenhum. Arranjam um governo de tecnocratas? Mas que tecnocrata aceita ir para lá?

E Mélenchon provavelmente não está disponível para isso.
Não. Não vai apoiar. Mélenchon é uma espécie de Robespierre barulhento, é uma criatura que embirra muito, está sempre a quezilar. Portanto, não há entendimento aí, também não vejo que haja com o centro. E depois há aqui um outro tema: nos Estados Unidos, os partidos tradicionais continuam, porque o sistema obriga; ou seja, o Partido Republicano mudou de pele e de entranhas, quase, o Partido Democrático está mais ou menos parecido mas foi muito marcado por uma ala woke que os desencaminhou um bocado, mas mantêm-se os dois. Tem aquele terceiro candidato que parece a pessoa mais interessante daquilo, mas que não tem chances num sistema de dois partidos. E na Europa, o que é que se deu? Os novos partidos.

Mélenchon é uma espécie de Robespierre barulhento, é uma criatura que embirra muito, está sempre a quezilar. Não vejo como pode haver entendimento em França...

Houve uma renovação...
Os partidos tradicionais em França estão assim: o Les Républicains representa o que resta do Gaullismo e os socialistas... eram os grandes partidos que há 40 anos dominava e agora têm 48 ou 50 pessoas lá metidas, porque os partidos novos é que ganharam. Aliás, o Rassemblement vem do Front National, fundado pelo pai Le Pen em 1972, que era um partido marginal e depois foi crescendo e vem sempre a crescer. Entre as últimas eleições, cresceu mais de 2 milhões de votos. Portanto, aqui na Europa esses antigos desapareceram, os partidos comunistas, por exemplo, desapareceram.

Mas é por uma recomposição das necessidades das pessoas, que encontram agora respostas noutras propostas ou é um movimento de revolta, de oposição ao que existe?
É muita coisa. Primeiro, o fim da União Soviética e da Guerra Fria mudou tudo: o anticomunismo era uma coisa importante, mas hoje não há comunistas.

Havia de facto dois lados do Muro.
Pois, e hoje a China é um capitalismo de direção central, autoritário, monopartidário. A Rússia é uma coisa quase czarista, reacionaríssima, em termos de valores e religiosos. E, portanto, os partidos comunistas de certo modo acabaram. Os Partidos Comunistas persistem em Portugal, em Chipre e na Grécia e são pequenos partidos. O Partido Comunista francês tinha quase 30% do eleitorado nos anos 50/60 e hoje são uns 12 deputados, é uma coisa completamente marginal. O segundo ponto que mudou tudo é a desindustrialização. Esses eleitores comunistas foram para o Front Nacional (ainda no tempo do pai Le Pen). É um bocadinho o fenómeno também do white trash americano: Detroit era a capital do automóvel, hoje praticamente já não se fazem automóveis; Pittsburg era a capital da siderurgia, e tudo isso desapareceu. As indústrias foram para a China, para o México, para a Ásia... e essas pessoas, que antes viviam bem — os operários das fábricas americanas eram pessoas de classe média, tinham uma casa deles, automóvel, podiam pôr os filhos a estudar na universidade... e isso acabou. Essa gente está marginalizada, com empregos precários em bombas de gasolina e coisas assim. Portanto, há uma revolta muito grande. E também na Europa aconteceu isso.

Mas são as fórmulas destes novos partidos que lhes oferecem as respostas?
Sim, porque esses partidos têm por exemplo a questão da fronteira. Por exemplo, Marine Le Pen insiste muito nisso e diz que não é da direita nem da esquerda, é nacionalista, é identitária. E tem uma certa razão. Nós temos muito, por causa do comunismo, associado à direita a questão da liberdade económica e ao comunismo a da nacionalização dos bens de produção, etc. E o que ela diz é que isso hoje já não conta, porque também hoje ninguém quer nacionalizar coisas.

Não diga isso a Mariana Mortágua...
Está bem, é uma das causas da Mariana Mortágua, mas as pessoas acham que ela está mais interessada por exemplo nos direitos dos animais ou na definição de famílias de uma forma nova e de certo modo revolucionária do que com isso. Portanto, os Estados hoje entram pela fiscalidade. Até porque em Portugal também já não podem nacionalizar nada, porque é quase tudo de estrangeiros, não é? Quem é que hoje defende que a economia socialista é mais eficaz? Não vejo ninguém, verdadeiramente...

Marine Le Pen insiste muito nisso e diz que não é da direita nem da esquerda, é nacionalista, é identitária. E tem uma certa razão.

Portanto, é mais pelas questões nacionalistas e de fronteira e pelos valores tradicionais que se destacam esses partidos.
Sim, exatamente, a identidade. E depois entra em jogo a terceira questão, que é imigração, não é? Sobretudo a imigração que culturalmente não é assimilável, porque vem de uma religião diferente ou de uma área diferente. O que também é um problema muito complicado porque, de facto, um continente como o nosso, que tem uma demografia péssima e negativa, faz o quê?

E fechar as fronteiras não é uma hipótese. No entanto, essa é uma das fórmulas que têm sido sugeridas.
Bem, o Leste da Europa está a fazer isso. É curioso porque o Leste da Europa — o primeiro-ministro da Hungria chamou-me a atenção para isso —, esses países que viveram sob o jugo soviético, com sociedades comunistas à séria, com partido único, polícia política e tudo isso, de certo modo, também ficaram mais conservadores. Porque não tiveram aquela deriva toda que nós tivemos no Ocidente, sobretudo a partir dos anos 60, mais libertária nos costumes. Ali a sociedade ficou muito como era, estabilizou, para bem e para mal. Voltando à sua pergunta, esses partidos, o que trazem é exatamente isso primeiro: a ideia da fronteira. E do controlo. Ou seja, a ideia da preferência nacional. Porque de certo modo, os interesses em relação à emigração também são diferentes. E eu compreendo que um proprietário ou empresário tem vantagens em ter imigrantes que pode contratar a um preço relativamente mais barato.

É uma forma de recuperar as vantagens da deslocalização.
Tem que ver com isso, porque eu ponho a minha fábrica de sapatos no Vietname e pago 200 dólares por mês a uns tipos que não fazem greves porque têm medo do governo, e dá-me mais jeito do que estar aqui a pagar mil e mais taxas sociais e tudo isso. Foi um bocado o que aconteceu, na Europa —  e não estou a dizer que a culpa é dos proprietários, a culpa é dos políticos, que deixaram fazer essas políticas. E agora apanharam um grande susto com a covid e as consequências da guerra na Ucrânia e recuperou-se uma espécie de protecionismo, que se vê nesta vontade de reindustrialização, porque perceberam que não podem ter a produção longe, porque não têm nenhumas garantias. A realidade do mundo está muito contra aquela ideia do pós-Guerra Fria que era a de ver aqui um grande mercado.

Mas agora também não temos quem trabalhe nessas indústrias, não é?
Pois, isso é outro problema e ainda estamos naquela ideia de que as pessoas perderam os seus empregos há 20 ou 30 anos em indústrias mais ou menos tradicionais, florescentes, como o automóvel ou as minas, e quebrou-se a cultura operária. E temos de ver uma coisa: é que no Ocidente há, de facto, uma perda de rendimentos das classes trabalhadoras, da classe média sobretudo, porque apanha por um lado com tributações muito elevadas e por outro com salários baixos. Esta ideia, que é uma das ideias base do populismo, da contraposição entre elites e povo comum também tem não é tão demagógica como é apresentada. Tem uma tradução económica e cultural. É a tal coisa de que a senhora Clinton falava, a ideia dos deploráveis. E não sei se é por oportunismo, estratégia ou realidade, mas não há dúvida que estes novos partidos estão a pegar exatamente nisso, bem como nos valores tradicionais, no conceito de família tradicional. Que já não é a família de há 100 anos.

No Ocidente há, de facto, uma perda de rendimentos das classes trabalhadoras, e os partidos populistas agarraram isso.

Adaptou-se o conceito aos tempos?
Sim, é curioso, porque estes partidos começam a ter aqueles grupos que tiram sentido à narrativa da esquerda dos oprimidos. Estes partidos têm dirigentes negros, têm mulheres... Veja Meloni, Le Pen, e há vários ali no Norte. O problema nessa narrativa de esquerda é também juntar coisas que já não estão juntas.

Exatamente um certo anacronismo no discurso.
Exatamente. Há 100 anos a sociedade era machista, as mulheres só tiveram direito de voto no Estado Novo — o doutor Afonso Costa nunca lhes deu direito de voto porque achava que os padres as influenciavam...

E a direita acabou por criar um novo tipo de pensamento, mais estruturado? Giorgia Meloni é um bom exemplo: todos a demonizavam, mas tem tido uma liderança sem grandes episódios...
E a Meloni vem verdadeiramente de um partido fascista, um partido neo ou pós fascista, e lá está: não acabou com os partidos políticos, não instituiu o partido único, não invadiu a Etiópia...

E não fechou as fronteiras.
E até abriu um plano muito interessante para a África, aquele Plano Mattei.

Mas isso é decorrente de um novo pensamento político à direita ou é a realidade que acaba por se impor?
É decorrente também de pensamento. A esquerda fez muito aquele caminho em que tinha o monopólio de duas ou três coisas. Primeiro, era a superioridade moral, depois a intelectual, cultural, etc. Mas quando há uma revolução que muda as coisas, é porque as cabeças das pessoas também já mudaram. E normalmente como é que se muda a cabeça das pessoas? É convencendo as pessoas que estão em cima que estão ilegitimamente a ocupar o lugar em que estão e convencer os de baixo que têm todo o direito a irem eles para lá. Na Revolução Francesa, a aristocracia estava cheia de complexos de culpa, outros eram libertinos, já não acreditavam nas bases do poder deles.

E é isso o que está a acontecer agora?
De certo modo. Mas acho que o que choca esquerdas é que isto acontece pelo voto. Porque dantes achavam que eram golpes de Estado, golpes militares, etc. Agora é o voto do povo.

O sistema que defendem virou-se um pouco contra as esquerdas?
Um pouco não, muito. E não conseguem enfrentar as coisas e tentar perceber o que estão a fazer de mal. Na direita, também foi uma batalha para se aceitar. Mas repare, não é preciso ter uma fé... a ideia rousseauniana na "vontade do povo" é uma coisa quase religiosa. Aliás, o Cabral Moncada tem isso muito bem analisado, é uma passagem para a maioria e a maioria é uma espécie de destino divino. Tem de se obedecer à vontade geral. Isso aliás entrou muito na linguagem comum, vê-se naquela expressão "os portugueses decidiram". Mas essa ideia passou e é curiosamente, uma forma de pacificação da luta política: em vez de andarmos à pancada ou termos uma monarquia absoluta, vamos arranjar aqui uma regra em que concorremos todos, em princípio com igualdade de circunstâncias, e quem tiver mais votos governa, na condição de não meter os outros na cadeia. Mas em países como Portugal, onde o regime autoritário foi durante muitos anos da direita, isto faz muita confusão à esquerda. Porque também se cria a ideia dos donos do povo. Isso cria problemas, porque a Europa está muito, muito, muito, muito fragmentada.

Muito polarizada também.
Está muito polarizada, muito fragmentada. A Guerra Fria tinha essa vantagem, porque como havia o tal perigo soviético, havia uma espécie de consenso. E depois veio aquele entusiasmo neoliberal na economia, que também faz sentido, porque os vencedores da Guerra Fria foram os americanos e houve um certo contágio dos modelos thatcherarianos e reaganianos. Mas a Inglaterra cortou a cabeça ao rei no século 17, os EUA nunca tiveram aquela ideia do Estado como na Europa existe, até porque são uma nação continente — os civis podem andar armados, que é uma coisa que em mais sítio nenhum do mundo acontece, mas isso faz parte de uma nação daquele tipo, uma nação de pioneiros. E depois a economia de facto tem essa tradição de uma grande liberdade económica, que agora até está um bocadinho abalada. E esse modelo chegou à Europa. Agora, regressando à questão de cultural, que é de facto muito importante, a Meloni chamou a atenção para isso. Ela disse que a hegemonia cultural não era por a esquerda ter um monopólio, mas por ocupar os pontos de comando.

Por exemplo?
Ela agora está a mexer na rádio e nas televisões públicas, que estavam ainda na mesma, na anterior administração. Mas se olharmos para a sociedade portuguesa, há certas universidades ligadas à parte toda de ciências humanas em que as pessoas têm de ter uma determinada ideologia para fazerem carreira. Talvez já tenha sido ao contrário antigamente, admito que sim...

Mas isso existe realmente, esse condicionamento? Onde?
Eu acho que voltou, voltou a existir de outra maneira. E também vemos isso nos órgãos de comunicação para o grande público, nos comentadores, dizem todos a mesma coisa sobre as coisas importantes. Nos próprios Estados Unidos, e conheci bastante bem esse fenómeno, toda a Vitória do Reagan foi preparada nos think tanks. E normalmente estes movimentos partem sempre de uma derrota. As pessoas também só se viram para isso quando perdem o jogo noutros terrenos.

Mas nota que está a haver um ressurgimento ou uma nova dinâmica no pensamento de direita? Há espaço para isso agora?
Há, porque também há um próprio fracasso da esquerda. A esquerda também tem um problema muito complicado, é ter-se deixado dominar. Tradicionalmente, a grande força da esquerda era ter as causas dos oprimidos, dos marginalizados, e isso dava uma certa nobreza às suas causas. Ora, a esquerda abandonou muito estas causas, por exemplo, dos trabalhadores, e passou para microcausas, para microagressões.

Tradicionalmente, a grande força da esquerda era ter as causas dos oprimidos, dos marginalizados, e isso dava uma certa nobreza às suas causas. Depois deixou-se dominar pelas microagressões.

É o fenómeno do wokismo?
Exatamente, de certo modo eles deixaram-se dominar por essas margens — na direita também podia ter acontecido que as pessoas, em vez de estarem em linhas nacionalistas, conservadoras, mas com um certo sentido global e de atenção à realidade, terem sido dominadas pelos neonazis, pelos skinheads. Mas não foi assim.

E esta revista Crítica XXI, que o Jaime Nogueira Pinto lançou com Rui Ramos e com Carlos Maria Bobone, pretende ser um pouco esse farol para o novo pensamento de direita?
Sim. Lançámos em 2022 porque achámos que tínhamos de fazer isso, de reconstituir um bocado, destas cinzas todas do pós-Estado Novo e da perda do Império, uma alternativa em Portugal que não fosse este repetir permanente do antifascismo.

Mas existe alguma ambição política ou de influência política nesta publicação?
Sim, queremos educar um bocado as pessoas. Eu acho que também é uma vergonha este deserto de ideias que se vê e que se manifesta. Eu vi perfeitamente, quando comecei a ter uma certa idade da razão, que a esquerda dominava, mesmo no tempo do Estado Novo e da censura, dominava a cabeça das pessoas. Ou melhor, dominava a cabeça das pessoas que tinham cabeça. E isso acontecia porque tinha páginas literárias, porque produzia revistas, literatura de qualidade. Hoje não produz nada.

E portanto esse espaço abriu-se. Mas nenhum de vocês tem uma ambição política própria.
Não. Há umas pessoas que colaboram na Crítica XXI que estão na política, por exemplo o Miguel Morgado, que é professor universitário e já foi deputado (PSD) e assessor político de Pedro Passos Coelho. Mas a maior parte de nós, não. Eu já não tenho idade para ter ambições políticas e nunca tive os defeitos, nem as qualidades para isso.

A ideia é então produzir pensamento e estruturar o pensamento, mas não é um regresso ao passado.
Não, não é invocar coisa nenhuma do passado, É produzir pensamento crítico. Nós também temos direito às nossas nostalgias, mas eu, por exemplo, que fui vítima de várias gerações de direita e de esquerda — as pessoas têm sempre a tentação de passar para as novas gerações as suas derrotas — , tive um desgosto grande com a perda do Império. Mas voltei a esses países muitos anos  depois, vou lá, tenho lá amigos, já me libertei disso tudo. E nunca passei isso aos meus filhos, que não são desse tempo. O nome que escolhemos para a revista é um pouco isso também, é Crítica também de nós, porque temos de nos habituar a fazer também uma exegese crítica, meter-se um bocadinho na pele do outro. Esse esforço faz sentido e apareceu nestes países todos, movimentos como o Club de l'Horloge, os think tanks, isso tudo teve um papel importante a construir uma alternativa. Também a Revolução Francesa resultou de um século praticamente de combate dos filósofos e afins à monarquia absoluta. Os escritores russos do século XIX... É muito engraçado que Lenin gostava muito dos romances de Tolstoi, mas depois ficava furioso e chamava-lhe o latifundiário obcecado com Cristo. E as mudanças resultam disso.

E daí também ter associados alguns livros à Crítica XXI, nesta coleção a que chamam Biblioteca Crítica Fundamental?
Sim, os nossos assinantes, que já são cerca de mil, além do que vendemos em banca, recebem um livro com cada número da revista.

Mas que são textos que não são os textos que estamos habituados a ver.
Não, são alternativos também. O próximo que vamos lançar é uma seleção de textos políticos menos conhecidos de Fernando Pessoa. São coisas um bocado politicamente incorretas, mas Pessoa tinha aquela frase a que eu acho imensa graça: a linguagem será propositadamente obscura para que selecione quem a entenda. Que é exatamente o contrário do subir para cima do caixote, que é a geração dos políticos que estão a vencer, como Trump.

E por cá encontra alguma saída que possa assemelhar-se àquilo que seria uma boa representação desta direita?
Bem, é óbvio que apareceu um movimento mais nacional, mais populista, mais popular... mas vamos ver como sai...

Falta intelectualidade ao Chega?
Eu acho que tem de ter, para além daquilo que todos estes partidos têm, que é o lado tribunício, de falar em nome daqueles que não têm voz — às vezes falam até demais —, mas para além disso tem de haver uma cultura política. Uma cultura política de alguma coerência ao pensamento. O desencontro das ideias numas coisas e outras não é só oportunismo, às vezes é mesmo ignorância e falta de fundamentação, e isso é uma vulnerabilidade, porque uma estrutura política tem de ter quadros médios. Tem de ter uma estrutura política. É um problema da modernidade: na antiguidade, o modelo de economia e de sociedade podia viver de chefes e de índios; a modernidade precisa de quadros médios.

Os partidos novos de direita têm o lado tribunício, de falar em nome daqueles que não têm voz, mas para além disso tem de haver uma cultura política.

E é isso que tem faltado, sobretudo na sociedade civil?
É isso que tem faltado e temos de fazer o que pudermos para emendar isso. Itália é de facto um país especial, porque tem pensamento, pensamento político, tem revistas, tem uma grande tradição nesse aspeto à direita e à esquerda. E não é só na literatura, é no cinema.

É o país que melhor representa esse pensamento na Europa?
Sim, por um lado a Itália, e depois se for um bocadinho para uma liderança diria que o Viktor Orbán. Talvez porque o conheça melhor, mas o líder húngaro é um homem que percebeu muito esta questão do poder cultural e da necessidade de investir aí. Até porque o investimento no poder cultural é muito mais barato do que em armas ou em coisas desse tipo.