Do fim de 50 anos de regime Assad na Síria à nova Administração americana, passando por Moscovo e Pequim, o mundo está em convulsão e a Europa é obrigada a redefinir-se, num momento de enormes desafios, de reequilíbrios geopolíticos e com as suas maiores potências a viver uma crise económica, política e social. Em entrevista ao SAPO, Henrique Burnay, senior partner da Eupportunity, a primeira empresa portuguesa de consultoria em assuntos europeus, explica como as novas voltas do mundo podem afetar a Europa e revela as tendências que se desenham em Bruxelas — na reindustrialização, sustentabilidade, defesa e trocas comerciais —, com a nova Comissão Europeia acabada de tomar posse e a presidente Ursula von der Leyen a assumir mais protagonismo.
Comecemos pelo facto mais recente. A queda de Bashar Al-Assad na Síria é uma boa notícia?
O que aconteceu na Síria dá-nos duas indicações relevantes, sendo a maior a de uma derrota da Rússia. Há ainda a dúvida sobre se é possível alterar os dados naquela região sem intervenção americana, coisa que no passado normalmente não aconteceu. E depois, há uma terceira conclusão, que é uma certeza: chegou ao fim um horror; sobre isso não há dúvida nenhuma.
Mas ainda não se sabe se vai ser substituído por outro.
Exatamente, a dúvida agora é sobre o que virá a seguir. O primeiro comentário da futura Presidência Trump foi um sinal de desinteresse, ou seja, Donald Trump aproveitou para criticar Obama — e bem — por não ter sido feita uma intervenção na Síria quando se teve a oportunidade de o fazer; mas depois que os Estados Unidos não se devem meter em nada disso, o que indica que a América da Presidência Trump é uma potência em retirada de alguns focos.
Como já foi, aliás, na anterior Presidência Trump.
Exatamente. Portanto, sabemos o que é mau, sabemos quem perde, e temos este indicador sobre os Estados Unidos não terem tido e não quererem ter influência.
E pode a Europa ocupar esse lugar?
A Europa nunca conseguiu ser muito eficaz naquela região, menos ainda quando é preciso pôr botas no terreno, que é coisa que não está disponível para fazer, nunca esteve e não é provável que venha a estar, naquela região. Portanto, a questão que se coloca é se a Europa vai conseguir ter influência política sem ter influência militar ou se vamos ficar a assistir ao que vai acontecer na região, com uma reduzida influência política e sem o nosso maior aliado a assumi-la. E, portanto, nas mãos do que os poderes regionais consigam organizar.
E com uma consequência semelhante à que já assistimos quando se deu a grande vaga de emigração da Síria para a Europa? Corremos o risco de ter uma nova vaga de refugiados?
É diferente. Quando houve a Primavera Árabe, houve um momento de esperança que depois retrocedeu, sobretudo porque os processos voltaram atrás na maior parte dos casos. Mas havia um problema, que era não conhecermos os interlocutores. Desta vez, conhecemos, e a opinião que tínhamos sobre quem estava em Damasco não era positiva. Mas se calhar precisamos de tentar aproximar-nos. Por exemplo, havia um sinal imediato, que seria enviar já equipas que pudessem ajudar a desencarcerar os presos de Saydnaya. Isso seria um sinal de boa vontade. Nós vamos ter de falar com quem lá está, mas estamos com este problema: não vamos ter influência militar, temos reduzida influência política e o nosso principal aliado está desinteressado da região.
A União Europeia tem capacidade para ter essa intervenção política neste momento?
Não tem, desde logo porque sem um instrumento militar dificilmente é relevante naquela região. Os Estados Unidos são muito importantes na região porque têm, além de tudo o mais, a capacidade de projetar força militar. Quando Israel é atacado, põem um porta-aviões no Mediterrâneo a proteger o país; quando o Irão resolve reagir, avisam que se for além do aceitável vão retaliar; volta e meia fazem pequenos ataques cirúrgicos... Ora a União Europeia não tem capacidade de fazer nada disso. Nem vontade. Por isso tem de tentar ter influência de outra maneira, estando muito limitada. É uma crise perto da Europa, na qual nós somos sobretudo espectadores.
"A União Europeia não tem capacidade nem vontade de ter uma intervenção na Síria. É uma crise perto da Europa, na qual nós somos sobretudo espectadores."
E que influência terá esta queda de Assad na guerra que está a acontecer entre Israel e o Hamas?
Pelo menos há uma coisa: todos os inimigos diretos de Israel estão a perder. E este é mais um caso. Não que os vencedores aqui sejam propriamente a amigos de Israel, mas a verdade é que o ISIS nunca teve Israel como um alvo, ao contrário de outros grupos terroristas da região. Isto é um detalhe que não me parece de todo irrelevante, mas claramente a Síria fica a perder, o Irão fica a perder e a Rússia fica a perder; e nada disso é mau para Israel.
Em relação ainda à Europa, que efeito teria uma nova vaga migratória, tendo em conta a situação geopolítica europeia, com a direita mais radical a crescer muito e a recente queda dos governos de França e Alemanha?
Se houvesse uma vaga migratória outra vez, teríamos o problema de a Europa não estar de maneira nenhuma preparada para acolher positivamente estes refugiados. Mas desta vez pode acontecer o contrário: ouvindo alguns dos imigrantes da comunidade síria na Europa, esta semana, o que existe é gente a dizer que equacionava voltar para a Síria. Ou seja, pelo menos há um sinal de esperança e não parece evidente que vá suceder a esta situação uma vaga migratória. Pode haver algumas pessoas ligadas ao regime a fugir, mas isso não tem a dimensão massiva da outra vez. O que deixará de ser verdade, se o novo poder se tornar num poder parecido com o ISIS. E aí teríamos uma vaga migratória e não sabíamos o que fazer com ela.
Viajando até aos Estados Unidos e à nova Presidência, o que é que a Europa pode esperar? Naturalmente vamos ter uma América muito mais focada em si mesma, com mais protecionismo económico. O que pode representar este novo tempo para a Europa?
Estão aí as duas coisas que me parecem mais importantes. Os últimos 40 anos foram essencialmente anos de globalização, de mercados abertos e de queda de barreiras protecionistas. E os Estados Unidos lideraram isso, com a Europa. Mas os EUA agora — e não é só com Trump, mas vai ser mais ainda com ele — pensam de uma maneira diferente sobre a economia global. Já não acreditam na globalização, pelo menos nesses termos, nem nos mercados abertos. E se em relação às tarifas há uma dúvida sobre se Trump as deseja mesmo ou quer usá-las enquanto instrumento negocial, uma coisa é certa: Trump quer renegociar ou alterar as relações comerciais com a maior parte do mundo, inclusivamente com a Europa, em relação à qual os EUA têm um défice comercial enorme.
A Europa tem superávit comercial nas relações com os Estados Unidos.
Exato, os EUA têm um défice enorme em relação à Europa. Uma interpretação benigna dirá que se os Estados Unidos aumentarem a venda de gás e se nos venderem armas...
Armas?
Sim, há aqui um aspeto que tem sido pouco discutido. Quando se fala do aumento da despesa europeia em Defesa e Segurança, tem-se focado muito um investimento que permita alavancar a indústria militar europeia. Ora, estamos a esquecer-nos que os Estados Unidos, quando dizem que os europeus têm de gastar os tais 2% ou mais a que são obrigados pela NATO, estão obviamente a pensar que uma boa parte dessa despesa deve ser feita com compras ao EUA. Portanto, parece-me que há um equívoco na Europa sobre o que os EUA esperam que esses investimentos europeus sejam. Parte pode ser na Europa, parte com recursos humanos, mas não é suporto deixar os Estados Unidos e a indústria americana de fora desse investimento. Também já há sinais de que Bruxelas compreendeu; aquilo de que a Comissão Europeia está a falar em relação ao Fundo Europeu de Defesa prevê precisamente que se possa fazer compras em países terceiros.
"Um acordo de paz com Kiev que dê a entender que a Rússia venceu e pode voltar a dar cartas na segurança da Europa, como aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, deixará a Europa nas mãos de Moscovo."
Até porque a Europa não tem capacidade de produção para responder a esse desafio.
Mas queria ter, a ideia era usar o investimento na indústria de defesa para alavancar a indústria europeia, havia aqui uma lógica industrialista. Só que vai ter de fazê-lo pensando também na indústria americana ou os Estados Unidos não ficarão satisfeitos com o resultado. Portanto, esse é um dos aspetos relevantes da relação Europa/EUA, a par do protecionismo. E depois há aqui uma questão fundamental que é a Ucrânia. Para a Europa, o resultado da guerra na Ucrânia que seja por acordo de paz com uma derrota de Kiev, ou pelo menos uma solução que dê uma aparência de vitória à Rússia, dará a Moscovo um sinal de que tem mão livre no continente. Será lido como a Rússia ter carta branca para estabelecer as regras de segurança no continente ou pelo menos em parte dele, como aconteceu a seguir ao fim da Segunda Guerra, quando a União Soviética, na prática, ocupou quase metade do continente, direta ou indiretamente. Um acordo de paz que dê a entender que isso pode voltar a acontecer vai pôr a Europa nas mãos da Rússia.
Mas é o que se prevê que vá acontecer?
Eu acho que não, mesmo porque há duas coisas que está a tentar fazer-se. Para a Europa é fundamental que o acordo de paz não tenha como resultado Putin concluir que pode fazer o que quiser, nomeadamente nos alvos mais óbvios, que seriam a Geórgia, a Moldávia e, por outro lado, os Bálticos. Não estou a pensar que vá invadir a Polónia, mas isto faz sentido na cabeça de Putin e para que não aconteça é preciso que Putin continue a acreditar que os EUA se interessam e que se interessam ao ponto de manter em vigor o artigo 5.º da NATO (que consagra o princípio da defesa mútua, estabelecendo que um ataque contra um ou vários aliados na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque contra todos). Ou seja, não é só a questão da segurança da Ucrânia, é a questão da segurança europeia e a convicção de que o artigo 5.º ainda interessa aos EUA, que Washington responderia a um ataque na Europa.
Como é que a Europa está a fazer isso?
Há dois sinais curiosos. Um foi o elogio de António Costa a Donald Trump: numa entrevista ao Financial Times, o presidente do Conselho Europeu diz que espera que os Estados Unidos não queiram sair da Ucrânia como saíram do Afeganistão; leia-se, espera que Trump seja sensibilizado pela ideia de não terminar esta questão da Ucrânia com um resultado vergonhoso para a América como aconteceu no Afeganistão com Biden, portanto, é uma maneira de tentar elogiá-lo. E o segundo foi uma entrevista de Mark Rutte, secretário-geral da NATO, na qual diz que os EUA não podem deixar a Rússia sair daqui com ar vencedor, que Trump não pode deixar que o Putin saia daqui vencedor, porque isso seria mau para os interesses americanos em mais lugares do mundo. Ou seja, no fundo, está tudo a tentar convencer a América de que um acordo que fosse mau para a Ucrânia seria mau para a reputação americana. Ele usa mesmo o exemplo de Taiwan, diz que um mau resultado na Ucrânia pode dar ideias a Pequim sobre o que pode fazer em Taiwan.
É uma boa estratégia?
Depende de se vai ter sucesso. Se olharmos a reação de Trump à situação da Síria, a preocupação é que considere que não lhe interessa o que acontece nas fronteiras do continente europeu. Tudo se joga aqui. Se a América achar que o que se passa no continente europeu lhe é indiferente, o risco de um acordo de paz que seja péssimo para a Ucrânia e mau para a Europa existe. Se a América acreditar que a sua reputação global conta, então talvez não... Estão portanto a tentar convencê-lo que o resultado na Ucrânia tem consequências para os interesses da América noutros lugares do mundo. Se a mensagem passar, a posição americana pode estar alinhada com os interesses europeus; se a posição dos EUA for de indiferença será péssimo para a Europa. A opinião que Mike Waltz, que vai ser o conselheiro de segurança nacional de Trump, publicou na Economist na semana antes das eleições é um bom sinal. Ele defende que tem de se obrigar a Rússia a ir à mesa de negociações e conseguir uma paz, mas dá a entender que será uma paz que proteja a Ucrânia; e que se isso não acontecer, deve aumentar-se o apoio a Kiev para forçar Moscovo a negociar.
Ou seja, Waltz quer os EUA empenhados numa solução diplomática?
Waltz defende que os EUA não devem perder tempo, homens ou dinheiro com esta guerra ou com outros assuntos que não sejam a China, mas que deve forçar Putin a uma negociação, portanto que possa ser justa para a Ucrânia. Se prevalecer a doutrina de Waltz, ótimo, mas se vencer a doutrina que ouvimos agora em relação à Síria, de que não interessam regiões que não são prioritárias aos EUA, isso pode ser trágico para a Europa.
Em termos de política externa, Trump está sobretudo concentrado em retirar poder à China?
Exatamente. Aquilo que parece ser o essencial da política externa do Trump são as suas relações comerciais, a visão de Trump da política externa é uma visão comercial, e enfraquecer a China, seja por causa da balança comercial ser muito favorável a Pequim seja porque o comércio com a China tem prejudicado, na dele e de muitos, as indústrias e os empregos americanos. Portanto, o foco da política externa de Trump é a China e a perspetiva comercial, havendo na Administração quem acresça a isso uma capacidade militar no Indo-Pacífico, caso venha a ser necessário. Daí também a ideia de tirar a presença ao continente europeu, à tensão no Médio Oriente e por aí fora.
"No Parlamento Europeu, onde o que importa são as capacidades e não acertar contas de política nacional, o que se apontou a Maria Luís Albuquerque foi que a comissária portuguesa tem a integridade, a independência, a experiência e a aptidão profissional necessárias, que mostra o compromisso europeu e capacidade de comunicar, bem como iniciativa."
Isso também justifica que tenha havido alguma presença mais vocal dos Estados Unidos, por exemplo em África, onde a China tem imenso poder.
Aí está. É que não é possível querer ser contraposição ao poder chinês ignorando a expansão da China. África é um bom exemplo. Não é por acaso que Biden escolhe Angola para última viagem internacional, é porque há uma importância estratégica do continente que é rico em matérias-primas fundamentais para as duas potências. O mesmo vale noutras situações. Se há suspeitas de que a China é responsável por ataques aos cabos submarinos no Mar Báltico — e há essa suspeita — , a América, se quer ser uma potência global, não pode ignorar essas geografias. O problema é que a visão que Trump parece ter sobre o lugar da América no mundo não é tanto uma de America first, mas uma de America only. E uma potência não pode ser only, não pode estar só. Mas essa parece ser a visão de Trump, ao mesmo tempo que a China vai expandindo os seus interesses e se torna mais agressiva, nuns casos de forma mais simpática do que noutros; isso vê-se por exemplo na maneira como lida com países da Europa que sejam próximos, como a Hungria, ou para aquilo que tenta fazer em África, que passar por ter uma presença que traga vantagens e seja bem recebida pelos governos locais. Agora, uma nota: a expansão comercial da China também cria problemas noutros sítios. O Brasil, por exemplo, está a começar a abrir investigações por dumping contra a China, apesar de ter uma relação comercial e política que se aproxima de Pequim. Há mais países que se sentem prejudicados pela expansão comercial da China, não são só os americanos e os europeus. O problema da América e querer ser uma potência uni-regional, enquanto a China está a expandir-se para o mundo inteiro; é uma ameaça aos interesses americanos.
E qual é o papel da Europa nisto tudo? Tendo em conta esta incapacidade de se afirmar nos palcos internacionais e as crises políticas e económicas das grandes potências internas, as convulsões sociais que se está a viver, como é que a Europa poderá sair deste realinhamento geopolítico?
A situação da Europa é complicada. A vários títulos, mas começando pelo facto de as principais economias europeias estarem em grandes dificuldades. Alemanha e França, desde logo, ainda que o problema da economia francesa seja um problema das finanças públicas francesas. Porque as finanças públicas contagiam a economia e sobretudo num país altamente estatista, intervencionista, um problema das finanças públicas é um problema na economia e um problema social. Portanto, em primeiro lugar, temos a situação económica europeia. Depois, a resposta que está a ser apontada na Europa é uma resposta de mais Europa. Se olharmos para o relatório Draghi e para o Letta e até para o relatório sobre Segurança do antigo presidente finlandês, Sauli Niinistö, todos apontam que é preciso mais Europa. Mas se olharmos para a situação política nos vários Estados-membros, os partidos que estão a crescer são os que menos defendem a Europa. Não sendo já eurocéticos, agora são a eurossonsos ou eurocínicos que querem desfazer por dentro. Estes partidos não defendem mais europeização e há aqui uma tensão que vai vai chegar a palco em algum momento: ou temos mais resposta europeia, mas isso entra em choque com as tendências políticas a nível nacional, ou temos menos Europa e mais política nacional. E isso entra em choque com a leitura de que nós precisamos de mais Europa.
E pode acabar mal...
Podem acontecer várias coisas. Uma delas é um reforçar da Europa, mas em formato intergovernamental, ou seja, mais Europa mas a nível dos Estados, o que implicaria um reforço do poder dos Estados em formatos de coordenação europeia. Esse é um caminho possível mas diferente do sentido que está a ser pedido nos vários relatórios. Há aqui várias tendências que se anulam e contrariam... Pode haver também aquilo a que eu chamaria uma visão mais francesa: os franceses sempre desconfiaram dos americanos, sempre acharam que os europeus deviam ter uma visão do mundo autónoma, eventualmente contrária à dos americanos, mas isso nunca fez escola na Europa por causa da NATO, da Aliança Transatlântica, do Reino Unido. Mas hoje, por causa de Trump e da viragem para o Pacífico, que já é anterior a ele, começa a fazer caminho. E a Europa começa a convencer-se que tem de ter uma história própria, que não é de oposição aos EUA, que não é de meio-termo entre China e EUA, mas que é autónoma.
De autoafirmação.
Exatamente. Agora, como é que queremos ser uma potência se não temos disponibilidade militar — e não estou a falar do exército europeu, não é preciso nenhum exército europeu para ter disponibilidade militar; a NATO decide por unanimidade, não é um exército único e, no entanto, tem relevância militar. A Europa neste momento só tem uma potência nuclear, porque o Reino Unido saiu, e não tem disponibilidade para sacrificar homens... e mesmo material bélico, temo-lo visto na Ucrânia, tem pouco. Portanto, como é que queremos ser autónomos se não temos força militar nem sequer poder de dissuasão — que é o mais importante, a perceção no adversário de que, se for necessário, estamos disponível para usar força —... A Europa não tem esse poder, logo é muito difícil ser uma potência, nem sequer uma potência regional se não há a convicção de que a Europa tem poder militar e, no limite, está disponível para o usar.
Portanto, o tema da Defesa é fundamental.
É mas implica também um investimento político, porque não serve de muito ter armamento se houver a convicção de que não se está disponível para usá-lo. Não é por acaso que a França tem tido projeção de força em várias geografias. Isso faz parte do esforço para manter a convicção de que França é uma potência nuclear e militar e que, se for preciso, está disponível para exercer esse poder. A Europa, se não der sinais disso, não der sinais de que, no limite, o seus exércitos dentro da NATO ou noutro formato, estão disponíveis para projetar força, não é uma potência militar. Voltamos ao início, à questão da Ucrânia: à falta dos EUA, se houver ideia de que a Europa não é capaz, a Rússia fará na Europa mais ou menos aquilo que achar que lhe convém e precisa.
"A Rússia sabe que às vezes pode fazer intervenções militares na Europa e que não acontece nada. Nós estamos convencidos que as guerras acabaram, mas não acabaram."
Sabendo que não terá realmente grande grande oposição.
Exatamente. E isto não é inédito, veja-se o que aconteceu em Praga e em Budapeste durante a Guerra Fria. A Rússia sabe que às vezes pode fazer intervenções militares na Europa e que não acontece nada. Nós estamos convencidos que as guerras acabaram, mas não acabaram. Outra coisa é a narrativa económica. O pressuposto da política económica europeia e global, mudou, os EUA deixaram de achar que a globalização comércio internacional era a fonte de prosperidade. Agora a pergunta que se coloca à Europa é se ainda acredita que uma reglobalização, se quisermos — não é o fim da globalização, mas é uma globalização menos dependente da China, ainda em economia global aberta —, é o caminho, ou não.
E a balança pende para o crer.
A ida de Von der Leyen a Montevideu às escondidas de Macron, ou nas costas do presidente francês, que estava ocupado com a resposta à crise política nacional, para assinar o Mercosul dá a entender que a Europa continua a acreditar que enquanto os EUA se retraem como potência comercial, a Europa se quer manter no palco. E acredita que uma das maneiras de manter amigos no mundo é manter mercados abertos. Mas isto não irrita só Macron, irrita os agricultores europeus e mais uma quantidade de gente, portanto a pergunta será se a Europa vai conseguir contrariar a tendência a que assistimos nos EUA antimercados abertos, antiglobalização, ou não. Dando o salto lógico e lembrando o debate na Assembleia Nacional Francesa quando foi a votação da moção de censura (que fez cair o governo), há uma frase de Marine Le Pen que nos indica como pensam os partidos que estão a ganhar poder na Europa. Le Pen diz: Isto é o fim de 40 anos de políticas económicas ruinosas. O que ela quer dizer é que é o fim do chamado neoliberalismo, da política pós-Guerra Fria, e o Mélenchon, que estava sentado nas galerias, certamente concordaria com a frase. Por isso a grande questão é se os partidos e o consenso ao grande centro europeu se vai manter favorável ao comércio global ou se, pressionados pela extrema-esquerda e pela extrema direita e pela revisão do Estados Unidos em relação ao comércio, a Europa também se vai fechar nesta sua lógica de suposta reindustrialização.
"A grande questão é se os partidos e o consenso ao grande centro europeu se vai manter favorável ao comércio global ou se, pressionados pela extrema-esquerda e pela extrema direita e pela revisão do Estados Unidos em relação ao comércio, a Europa também se vai fechar nesta sua lógica de suposta reindustrialização."
Dada esta reconfiguração, as pastas mais importantes da nova Comissão Europeia serão certamente a da Defesa, o Comércio...
Verdadeiramente importante será a Presidente da Comissão, porque ela desorganizou as pastas de tal modo que há poucos necessários tenham um portefólio coerente e circunscrito. Maria Luís Albuquerque é um dos casos raros, porque a maior parte das pastas está desenhada para situações de sobreposição ou de conflito entre comissários — e no limite, quem decide é a Presidente. Em cima dos gabinetes, Von der Leyen começou já a criar task forces temáticas, ou seja, distribuiu os portefólios com uma misturada de competências e agora cria task forces com vários comissários que têm de organizar-se para cumprir uma determinada missão que ela lhes atribuiu. Portanto, a pasta mais importante vai ser a da Presidente da Comissão. Dito isto, sim, vai contar muito o Comércio Internacional e a Concorrência, bem como a Defesa. Embora a Defesa seja uma parte apenas industrial, ou seja, a Europa não tem competências fora da parte industrial. Mas vai contar muito o que a Teresa Ribera faz na Concorrência: vamos ter ou não uma revisão da lógica, ou seja, o racional vai continuar a ser manter um level playing field dentro do mercado interno ou passará a contar mais o mercado global e nesse caso interessando sobretudo à Europa ter empresas que sejam capazes de competir à escala global. Se a interpretação for esta, que é a que tem sido seguida, isso vai permitir auxílios de Estado e campeões europeus, o que levanta problemas aos países periféricos e com orçamentos menos capazes.
Que é o caso de Portugal.
Exatamente. É uma forma de dizer Portugal, sim. A reindustrialização está ligada a isto. Se fecharmos comércio com a China, tentarmos subsidiar as nossas indústrias, é um caminho, se formos por acordos comerciais, importações e economias abertas, é outro, que provavelmente vai levantar protestos políticos na Europa, porque há a convicção de que os mercados abertos prejudicaram os europeus. Simplificando muito, a tese é que a globalização deslocalizou empregos. Mesmo que isso fosse verdade, a globalização também deu às classes médias acesso a bens e serviços que antes não tinham. Ou seja, mesmo que a reindustrialização trouxesse mais emprego, as classes médias dificilmente terão poder de compra para adquirir aquilo que andaram a comprar nas últimas décadas.
"A política europeia passou da Greta Thunberg ao Mario Draghi, ou seja, passámos do 'tem de ser verde' ao 'pode ser verde mas é preciso que seja competitivo'."
Teriam emprego, eventualmente, mas tudo seria mais caro sendo produzido aqui.
Sim, se deixarmos de fazer roupa na China e no Vietname, se deixarmos de fazer de maquinarias e os produtos todos que hoje compramos massivamente vindos da Ásia, onde são produzidos a baixos custos, acaba por se perder essa vantagem da globalização à custa da suposta desvantagem da perda de empregos. Os produtos vão ser muito mais caros e as pessoas não vão conseguir comprá-los. E ainda há uma dúvida acrescida: a reindustrialização da Europa terá fábricas cada vez mais automatizadas, portanto irá de facto reempregar-se?
Como é que as políticas ambientais e energéticas europeias pesam nisso? Vamos continuar com este grande foco na sustentabilidade e eletrificação da economia ou com todas estas tensões haverá a tentação de abrandar ou mudar estratégias?
O discurso que temos ouvido a Von der Leyen, mas também a Macron e até a alguns socialistas alemães, mas sobretudo PPE e liberais, foi no sentido de pôr algum travão nesta transição forçada. Mas o problema de fundo não desapareceu, as alterações climáticas existem, ainda que politicamente seja menos importante. Em segundo lugar, muitas empresas acreditaram na trajetória da União Europeia indicou e se agora se altera completamente as indicações, as empresas vão ficar sem saber para onde se dirigir. Há empresas que estão com estratégias de carbonização muito caras, mas que começaram a fazer esse caminho e se isso se altera ficarão meio perdidas; até podem ter legislação de que gostariam mais, mas entretanto já se tinham preparado para fazer um caminho diferente. Depois, curiosamente, uma Presidência Trump que possa vir a revogar IRA (Inflation Reduction Act), no fundo o Green Deal americano, pode voltar a dar razão à tese de que essa estratégia europeia de chegar primeiro às tecnologias da economia verde pode resultar. Pode haver este paradoxo de fazer sentido desacelerar porque isso tem um custo que reduz a competitividade das empresas europeias, mas por outro lado, se os americanos estão a desacelerar a desinvestir nisso mas os chineses continuam a insistir, se calhar faz sentido a Europa manter essa estratégia. Seja como for, a política europeia passou da Greta Thunberg ao Mario Draghi, ou seja, passámos do "tem de ser verde" ao "pode ser verde mas é preciso que seja competitivo".
E quanto ao papel da comissária portuguesa, Maria Luís Albuquerque? Nesta nova Comissão e tendo em conta o momento que vive a Europa, a pasta da antiga ministra das Finanças será fundamental?
O papel de Maria Luís Albuquerque é dos poucos que estão bem circunscritos e tem muita importância, porque é onde está a diferença entre os 200 e os 800 mil milhões de que fala o relatório Draghi. Ou seja, Draghi diz que a União Europeia precisa de 800 mil milhões e que dos dinheiros públicos podem vir 200 mil milhões. O que isto significa, na prática, é que precisa de um mercado de capitais que funcione e que seja competitivo em relação aos EUA, porque há a tese de que as empresas quando querem crescer fogem para os Estados Unidos, porque o mercado de capitais e tudo quanto tenha que ver com financiamento da economia funciona melhor do lado de lá. Há uma coisa em que poucos acreditam: que Maria Luís Albuquerque consiga resolver o nó górdio da União Bancária — que passa pelo esquema de garantia dos depósitos, porque os alemães continuam a não estar disponíveis para garantir os depósitos do sul da Europa. Mas se a opção de Maria Luís for fatiar o problema e ir resolvendo parcialmente, tentar animar ou simplificar o mercado e os fluxos de capitais dentro da Europa, pode ter sucesso. Se tentar o grande objetivo, dificilmente. Mas por exemplo, há uns anos era impossível investir em crowdfunding transfronteiriço; nos Estados Unidos esse problema não existe, um investidor da Califórnia pode investir na Florida e vice-versa. Se na Europa, isso for um problema, é óbvio que não estamos a chegar aos investidores e não estamos a conseguir mobilizar os investimentos.
E como é que Portugal pode beneficiar dessa posição?
Primeiro, porque se isso ajudar a economia europeia nós somos beneficiários indiretos, nem que seja a fazer os parafusos das máquinas construídas no centro da Europa; temos um benefício, mesmo que sejamos apenas uma parte da cadeia de valor. Outra hipótese, um pouco idílica mas que pode acontecer tendo em conta até a nossa reputação de grandes inventores, é que o facto de estar numa economia pequena e periférica pode deixar de ser uma desvantagem absoluta para empreendedores. Porque podem passar a ter acesso a investimentos à escala europeia. Portanto, se correr, isto pode trazer um benefício para essa capacidade criativa portuguesa. Há aqui algum romantismo e otimismo? Talvez.
Mas é então um ato de grande confiança entregar esta pasta a Maria Luís Albuquerque?
É, e há uma coisa que merece ser dita, sobretudo depois de alguns comentários feitos em Portugal, perfeitamente despropositados. À exceção da Esquerda Europeia, onde está o PCP e o CE, a Comissão dos Assuntos Económicos do Parlamento Europeu, quando terminou a audição, concluiu que os coordenadores, ou seja, os representantes do grupo político, estavam satisfeitos. Apontaram que a candidata tinha a integridade, a independência, a experiência e a aptidão profissional necessárias, mostrava o compromisso europeu e capacidade de comunicar, bem como iniciativa. Tudo isto, e nomeadamente a integridade, a experiência profissional e a retidão, mostra que aqui o que realmente importa discutir são as competências da pessoa, e não tentar acertar contas de temas políticos nacionais.