Segundo o Expresso, “o nível do índice de intensidade do fogo, vivido esta segunda-feira em distritos como Aveiro ou Viseu, é o mais extremo desde 2001” e ardeu em três dias mais do que em todo o ano até agora.
A tentação é quase irresistível para dedicar hoje o programa ao tema dos incêndios. Mas vou resistir, apesar de poder quase fazer copy paste do que dissera no passado.
Prefiro perder em atualidade o que possa ganhar em mais informação e reflexão. Na próxima semana – mesmo que esteja a chover – os incêndios serão o tema principal.
Mas de algum modo o que direi hoje vai ajudar a antecipar o que direi sobre incêndios para a semana.
Vou falar de ruturas reformistas e de reformas feitas de pequenos passos. E também, de novo, do “chicken game” do Orçamento entre o PS e o Governo.
O PSD É REFORMISTA?
A Iniciativa Liberal (IL) é célebre também pelos seus cartazes e slogans. O que agora surge é um bom exemplo e serve de ponto de partida para a minha primeira reflexão de hoje.
Esta minha reflexão teve o seu momento genético numa conversa com um bom amigo que se me queixava que o PSD estava a optar por não fazer reformas, apesar de elas serem possíveis e facilmente viabilizadas se houvesse coragem de fazer um acordo com o CHEGA.
A minha resposta foi simples e curta. É um equívoco pensar que o CHEGA queira (i) reduzir o peso do Estado, (ii) acabar com o teto de vidro que reserva para funcionários e entidades públicas a concretização de políticas públicas, (iii) aumentar a concorrência e liberalizar a economia, (iv) premiar o mérito, (v) reduzir fortemente a cultura de assistencialismo.
E isto para dar apenas uns exemplos, mesmo não falando do facto essencial: o CHEGA não quer acordos com a AD, quer apenas que a AD os proponha.
A réplica não se fez esperar: segundo o meu amigo, é o PSD no fundo que não quer fazer reformas, mas apenas tentar gerir melhor o sistema estatizante e assistencialista herdado do PS e em que vivemos. No fundo, é esse o simbolismo do cartaz da IL.
Penso que este debate é essencial e para ele não é sequer muito relevante saber o que quer realmente o PSD e se o CHEGA pode aderir a uma agenda reformista.
Em minha opinião – desde que me conheço não me resigno perante o “atraso português” – o debate está distorcido. Do que se trata aqui é de saber se queremos (ou podemos) modernizar o país de modo revolucionário ou se devemos (e queremos) modernizar de modo reformista.
REFORMAR: RUTURA OU PASSINHOS?
Sá Carneiro é um bom exemplo para trazer à colação. Quando tomou o poder (em eleições democráticas, claro), sabia que se vivia uma época de enorme plasticidade social e política.
A sociedade reagira às medidas extremistas que o PCP, o MFA e o radicalismo esquerdista tinham implementado em 1975 e por isso um reformismo liberalizante (“liberalismo avançado” era a sua ideologia, como desenvolvi em livro publicado em 1981) era viável e podia/devia ser feito com uma rutura política, pois se assim não fosse demoraria décadas (como demorou) e não resolveria o problema (como não resolveu totalmente).
Eu era nesses tempos um soldado dessa causa e defendia que, no fundo, as reformas tinham de se processar com um momento de rutura revolucionária, que a dupla vitória eleitoral em 1979 e em 1980 legitimava democraticamente. E achava que isso era viável naquela conjuntura, com a liderança de Sá Carneiro, e valia a pena tentar.
A morte de Sá Carneiro, dois meses depois da renovação da maioria absoluta, e a vitória presidencial de Ramalho Eanes (um prudentíssimo reformista) inviabilizaram para sempre essa estratégia.
Como é evidente, não podemos saber se o líder da AD teria conseguido. Mas a sua morte precoce (tinha 46 anos) criou uma irresistível narrativa mítica e uma pulsão para que se fizessem com urgência as reformas que levassem Portugal para uma senda de modernização, encerrando e “selando” a deriva revolucionária: no fundo, queria-se “Sá Carneirismo sem Sá Carneiro”.
O PSD ficou refém disso, e Cavaco Silva beneficiou da narrativa. Mas – sendo tão prudente como Eanes e em cima disso macroeconomista e keynesiano… – abandonou o discurso estratégico da rutura e instalou-se num reformismo de pequenos passos que teve sucesso … até deixar de ter.
1979-2024: REFORMAS 45 ANOS DEPOIS
O Mundo mudou, entretanto. Portugal também, e muito. As instituições e a própria sociedade perderam a sua plasticidade, as condições para um reformismo feito em rutura não existem mais numa sociedade envelhecida, com um peso enorme de pensionistas, com aumento da esperança de vida após reforma, com um Estado omnipresente.
Para se perceber basta comparar três indicadores relativos a 1979 e a 2024 (45 anos de diferença):
- o emprego público duplicou (passou de 383.000 para 750.000);
- o número de reformados e pensionistas também duplicou (passou de 1,670 milhões para 3,420 milhões);
- a esperança de vida aos 65 anos aumentou 35% (passou de 14,6 para 19,7 anos).
Ou seja, a estrutura da sociedade portuguesa é hoje sociologicamente muito mais renitente às mudanças.
Também por isso não existe nem pode existir um consenso social favorável a uma mudança profunda do paradigma da organização social. E sem isso não é possível em democracia fazer reformas em rutura.
Como referiu Miguel Tamen (no texto intitulado “O Barco da Neurose”, publicado domingo no Observador), “as soluções para problemas políticos são mais parecidas com torneiras novas em casas de banho velhas do que com propostas de lei para abolir a humidade”.
Ou seja, as reformas são (cada vez mais) essenciais. Mas a sua viabilidade só pode concretizar-se por políticas de pequenos passos. No entanto, para não nos perdermos nesses passinhos, é fundamental haver uma clara e inequívoca linha de rumo (“route map”, chama-lhe Blair), que infelizmente vezes de mais se esquece ou se perde de vista.
A grande questão, portanto, é saber se a AD tem uma linha de rumo reformista. Para isso seria bom que os defensores de ruturas revolucionárias saíssem das suas zonas de conforto e tentassem influenciar a cultura social, intervindo no espaço público com propostas concretas e não com teorização de mágicas alianças partidárias.
Por isso termino citando de novo Tamen: “atrai-nos a disjunção segundo a qual ou as coisas são feitas em condições, ou não há condições para fazer nada. A mesma atração neurótica leva-nos a decidir no alto mar substituir todas as tábuas do casco ao mesmo tempo”.
Ou seja, a IL tem talvez uma missão para o reformismo: ser maximalista, ser até insensata no radicalismo reformista, combater culturalmente, tentar ser a Grécia da Roma que é a AD. Encher o País de cartazes. E fazer mais algumas coisas.
COVID: PROTEGER DE SER PROTEGIDO
O Observador revelava há uma semana um estudo da Universidade de Washington segundo o qual o confinamento de adolescentes na covid fez aumentar “os níveis de ansiedade, depressão e stress”, o que já se sabia com base científica.
Mas o estudo revela também que a estratégia maximalista da luta contra a covid provocou nos adolescentes um “envelhecimento cerebral” súbito de 4,2 anos no sexo feminino e 1,4 anos no masculino, sendo a diferença explicada pela maior necessidade de “interação social nas raparigas, que tendem a confiar mais nas relações íntimas para partilhar emoções”.
Aqui aconteceu, portanto, a aplicação da tese das ruturas que abordei atrás a propósito das reformas. Na luta contra a covid – como denunciei meses a fio – o radicalismo de uns e o receio de outros, junto ao assistencialismo reinante, fizeram que se não modelasse a estratégia para os mais jovens.
Apesar de entre março de 2020 e janeiro de 2022 apenas terem existido 6 mortes na faixa etária até aos 19 anos, e de se saber que a covid atingia sobretudo idosos (86,6% da morbilidade acima dos 70 anos e só 4,3% abaixo dos 60 anos), ninguém fez uma análise custo-benefício ou, se a fez, não teve coragem de proteger os jovens das evidentes (ao menos para quem tinha filhos ou netos) consequências da brutal proteção pela interrupção do processo de socialização que lhes causou danos evitáveis e dificilmente reparáveis.
GOVERNOS: VASCO DA GAMA E CAMÕES
Há dias fiquei contente ao ler numa pesquisa na Google “Celebração de Vasco da Gama!”. Infelizmente tudo se referia aos 25 anos do Centro Comercial Vasco da Gama e não à comemoração dos 500 anos da morte do Grande Almirante, que devia ocorrer este ano em 24 de dezembro.
Nem de propósito, no excelente programa “Radicais Livres”, de Maria Flor Pedroso, Jaime Nogueira Pinto e Pedro Tadeu (aos sábados na Antena 1), Camões e Vasco da Gama foram há dias tema e – com abordagens distintas que a diferença ideológica explica – os dois “radicais” deram a Vasco da Gama a atenção que o Ministério da Cultura continua a não lhe dar.
Há dois meses que pergunto, chegou-me a mensagem que não ia ser esquecido, mas o tempo passa e nem um sinal. O Governo anterior fez o mesmo a Camões. Será que na Cultura o cartaz da IL está correto?
MONTENEGRO COMO SOARES?
Entretanto, a saga do Orçamento continua. Agrava-se o “chicken game” de que falei na passada semana: na passada sexta-feira dia, 13, o líder do PS disse que para que viabilize o Orçamento não basta que o Governo retire a redução do IRC e do IRS para menores de 35 anos, que prometera nas eleições e inseriu no seu programa.
Realmente para ele essas cedências do Governo não chegam: nas palavras de PNS, “há duas medidas que não podem constar e depois há algumas que nós depois apresentaremos ao Governo que queremos que passem a constar”.
Ou seja, o carro do PS aumentou a velocidade quando o ministro Pedro Duarte declarou publicamente que “deve haver humildade suficiente de ambas as partes para podermos encontrar-nos eventualmente a meio do caminho” do IRC e do IRS Jovem.
Isto fez-me lembrar uma história de 1978: havia um denominado “Governo do PS com personalidades do CDS”, desde janeiro, e, um dia em agosto, Freitas do Amaral e Amaro da Costa apresentaram um conjunto de exigências para que ele pudesse continuar.
Isso levou-me a escrever no “Diabo”, na terça-feira em que se reuniram para negociar, que se Mário Soares cedesse passaria a haver um “governo do CDS com personalidades do PS”.
Segundo me contou em 1980 Amaro da Costa – para negar a minha tese de que os comentadores dizem umas coisas, mas isso não tem nenhuma importância –, na reunião Soares terá dito: “Vocês leram hoje o Júdice? Não posso realmente ceder”.
Na altura deverei ter-lhe respondido que a importância é nula, pois a rutura não resultou do que eu escrevi, mas eu apenas antecipei a inevitável rutura.
Seja como for, parece-me que PNS – qual Narciso que não resistiu a olhar-se nas águas do rio apesar do que dissera o oráculo Tirésias – está inebriado por si próprio, pela sua coragem no “chicken game”, quiçá pela sua beleza.
O choque frontal parece, pois, inevitável. A minha única dúvida é se Luís Montenegro se vai revelar como Mário Soares ou se prefere a prudência dos que têm receio de fazer reformas.
Uma coisa é certa: para além de toda a retórica agressiva, PNS e LM têm muito interesse pessoal em se desviarem do choque frontal ao mesmo tempo, depois de se elogiarem mutuamente pelo seu realismo, pragmatismo e recusa de aventuras.
Ainda podem fazê-lo? Claro que sim, mas esta semana parece-me mais improvável do que na anterior. Mas pode ser que eu – passados 46 anos – esteja menos capaz de perceber o óbvio do que em 1978. Coisas da idade, por certo…
O ELOGIO
Esta semana o Elogio só poderia ser para todos os que se uniram (a exceção foi o ex-ministro Eduardo Cabrita que pareceu querer gabar-se dos seus alegados sucessos) perante a tragédia dos incêndios, sobretudo os que – bombeiros e populares – têm estado incansavelmente na primeira linha.
Esta rara unidade nacional não deve ser menosprezada nem desperdiçada para se fazerem reformas essenciais, mas isso é tema para a próxima semana.
LER É O MELHOR REMÉDIO
Alguém escreveu que Deus existe, mas também foi inventado. A religiosidade é essencial aos humanos, mesmo que optem por religiões laicas pois, como disse Herman, “hoje, vivemos na era surrealista das várias culturas woke. Um disparate absoluto”.
Sugiro dois livros sobre religião, um deles (ainda) não traduzido: “Magisteria – the Entangled Histories of Science and Religion”, de Nicolas Spencer, e “Deus – a Ciência e as Provas” (D. Quixote), de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies.
Mais do que lerem estes livros (e porque não?) a sugestão é que abram espaço nos vossos interesses para ler e refletir sobre a religião e/ou as religiões, mesmo que não acreditem, pois sem isso corremos o risco de não percebermos a história da Humanidade.
A PERGUNTA SEM RESPOSTA
Começa dentro de dois dias a vacinação sazonal contra a gripe e a COVID.
Vão passar a ser vacinados com dose reforçada os maiores de 85 anos (isso já ocorria há dois anos, mas apenas em lares), mas terão de se deslocar a centros de saúde, não podendo fazê-lo em farmácias como acontece com todos os outros que se queiram vacinar.
A Associação de Farmácias de Portugal (AFP) lamentou a exclusão e vários idosos e familiares me falaram dessa limitação para pessoas que mais facilmente irão a uma farmácia próxima do que a um centro de saúde longínquo.
Pesquisei para tentar perceber a razão e nada encontrei. A pergunta, como habitual, é óbvia: o Ministério da Saúde pode explicar? Ou acha – como no caso da covid – que o melhor é comer e calar e que quanto menos soubermos melhor será?
A LOUCURA MANSA
Nuno Melo é voluntarioso e batalhador. Tudo qualidades, que muito prezo. E os média querem (compreensivelmente) que os políticos falem muito, respondam a quente a tudo, digam qualquer coisa ainda que não seja necessário.
O problema é que os políticos acham que precisam de estar sempre a aparecer e não resistem a um microfone.
O fait-divers de Olivença revela-o.
Sim, o Estado português nunca reconheceu essa zona da linha de fronteira e, como lembra o Observador, “em 7 de maio de 1817, aquando da ratificação do Congresso de Viena, já depois do fim das guerras napoleónicas, Espanha reconheceu que Olivença era terra portuguesa e comprometeu-se a retirar-se do território”. O que em mais de 200 anos não fez.
Mas, não, o ministro de Defesa, em cerimónia oficial não deveria ter respondido à pergunta. Por vezes, realmente, “o calado é o melhor”…