Numa era em que imagens e conteúdos feitos com recurso a inteligência artificial (IA) enchem todos os dias os telemóveis e as redes sociais, a Real Academia das Ciências da Suécia decidiu laurear com o Prémio Nobel da Física 2024 dois cientistas, John J. Hopfield e Geoffrey E. Hinton, conhecidos pelo estudo inovador de redes neuronais artificiais e pelo papel que tiveram na criação da base da inteligência artificial que existe atualmente.

O comité do Nobel elogiou Hopfield e Hinton pelas “descobertas e invenções fundamentais que permitem aprendizagem automática [ou ‘machine learning’] com redes neurais artificiais”, ou usarem “ferramentas da Física para desenvolver métodos que são a base do poderoso ‘machine-learning’ dos tempos de hoje” - processos que vemos hoje em dia em aplicações como o ChatGPT ou em imagens artificiais.

Mário Figueiredo, professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa e membro da Academia das Ciências de Lisboa, admitiu ao Expresso que a escolha pelo norte-americano John Hopfield, de 91 anos, e pelo britânico Geoffrey Hinton, de 77, foi “um bocadinho surpreendente, porque eles não têm, de facto, contributos para a Física” e, em particular, para a Física Estatística.

“O que eles fizeram foi utilizar técnicas e ferramentas matemáticas da Física e aplicá-las na área de ‘machine learning’. Utilizam Física para resolver problemas noutra área e não utilizam ferramentas de outra área para resolver problemas em Física. É uma utilização de Física e não um contributo para a Física”, aclarou o docente. Nota, também, que não é a primeira vez que o Nobel da Física é atribuído a cientistas de outras áreas, incluindo da Medicina.

Nas redes sociais e em fóruns científicos, debate-se a escolha de dois cientistas proeminentes numa área menos tradicional da Física - discussões que se repetem nos restantes prémios, especialmente nos da Paz e da Literatura. Figueiredo lamenta apenas que Hopfield e Hinton não tivessem sido os primeiros a desenvolver inteligência artificial e que uma justa menção devia ser feita a outros cientistas, como Arthur Samuel nos anos 1950, que popularizou o termo ‘machine-learning’. Mas considera que ser “boa ideia que se dê” o prémio Nobel da Física a “utilizações técnicas da Física em outras áreas”.

Hopfield lançou a base do conhecimento artificial, Hinton aprofundou-o e, agora, alerta para os riscos

As carreiras de John Hopfield e de Geoffrey Hinton estão há muito ligadas ao desenvolvimento de técnicas de inteligência artificial e à área da Física Estatística. Mário Figueiredo explicou que esta área da Física “estuda o comportamento macroscópico de sistemas complexos e grandes, constituídos por muitas partículas ou muitos objetos simples, mas que quando em grande quantidade e com interações simples, têm comportamentos emergentes e macroscópicos”.

O uso da Física Estatística é vasto, desde sistemas de aprendizagem automática na medicina, à descoberta de exoplanetas e de objetos no espaço, a aplicações na área das Humanidades e da Sociologia, para entender esse sistema complexo que é a sociedade humana.

Nos anos 1980, a partir da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, Hopfield - que vem da área da física teórica - desenvolveu redes neuronais artificiais que seriam mais tarde consideradas “redes de Hopfield”, procurando reproduzir o cérebro humano numa máquina que tivesse a mesma clareza de aprendizagem. Por exemplo, através de uma imagem distorcida, uma rede de Hopfield seria capaz de usar técnicas de aprendizagem automática para recuperar o resto da imagem.

As redes neuronais artificiais, refere o professor do Instituto Superior Técnico de Lisboa, são “modelos computacionais que simulam o comportamento dos neurónios no cérebro biológico” que, em muitos pontos, é passível de ser estudado pela Física Estatística por ser “um sistema complexo, constituído por muitos objetos pequeninos, que são neurónios, que têm interações relativamente simples uns com os outros, mas que todos em conjunto criam um comportamento complexo”.

Nos anos 1980, a partir da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, Hopfield - que vem da área da física teórica - desenvolveu redes neuronais artificiais que seriam mais tarde consideradas “redes de Hopfield”, procurando reproduzir o cérebro humano numa máquina com a mesma clareza de aprendizagem. Por exemplo, através de uma imagem distorcida, uma rede de Hopfield seria capaz de usar técnicas de aprendizagem automática para recuperar o resto da imagem.

Geoffrey Hinton, psicólogo e cientista de computação de 77 anos, da Universidade de Toronto, no Canadá, é considerado por muitos como o “padrinho” da inteligência artificial. Mário Figueiredo explica que Hinton foi um “pioneiro das técnicas de aprendizagem profunda, ou ‘deep learning’”, e em 2018 foi condecorado com o Prémio Turing - uma espécie de Nobel da computação -, pelo seu trabalho nessa área. Em 2023, teve uma saída mediática da Google, mostrando-se descontente, em parte, com os riscos associados ao desenvolvimento de inteligência artificial na empresa.

O comité do Nobel selecionou Hinton, não pelo seu trabalho na área da computação, mas por usar redes de Hopfield para criar o seu próprio método, a máquina de Boltzmann, e por usar outras ferramentas da Física Estatística para desenvolver ainda mais a aprendizagem automática e a IA.

Hinton mantém-se uma voz ativa na promoção de ferramentas de inteligência artificial, mas tem sido igualmente crítica das suas aplicações atuais e dos riscos de segurança que acarreta. Em 2023, na entrevista ao New York Times em que anunciou a sua demissão da Google, descreveu o perigo da exploração de ‘bots’ de conversação, como o ChatGPT, como “algo assustador”, e disse que “é difícil ver como prevenir os maus atores de usarem [a IA] para coisas más”.