A partir de agora, em Lisboa e Vale do Tejo, as grávidas não entram diretamente no hospital: ligam primeiro para uma linha telefónica. Antes de serem assistidas, devem provar que merecem ser acolhidas. O Governo chama-lhe organização racional; mas a lógica é outra. A tradução real é um Estado que exige, mas não protege. Não ligou? Problema seu. Não há médicos suficientes? Culpa sua, porque falhou o protocolo. A responsabilidade desloca-se: o que antes era um dever público é agora um peso individual. O SNS, que devia acolher, empurra.
A frieza da medida reflete-se nos cartazes colados à porta dos hospitais. Quem desconhece a regra fica fora; quem liga é obrigada a descrever, sozinha, sintomas a uma voz do outro lado da linha. Como é que uma grávida decide, em casa, se uma dor é suficientemente urgente? O Governo exige que façam o que até médicos experientes hesitam em fazer: decidir, em minutos, o que pode custar vidas.
Mas nem o próprio Governo acredita na medida que implementou. Diz o Ministério da Saúde que, “ao final de três meses, haverá uma avaliação do impacto”. Tradução: as grávidas de Lisboa e Vale do Tejo são cobaias de um sistema experimental. Testa-se a viabilidade de um plano que coloca, possivelmente, vidas em risco. Os hospitais transformam-se em laboratórios e as grávidas em ratinhos de ensaio. Se algo falhar, o Governo usará o mesmo argumento de sempre: era um piloto. O preço será pago por quem hesitou, por quem foi rejeitado à porta, por quem confiou num sistema que já não está lá.
Esta medida não organiza; filtra. Não protege; afasta. Serve apenas para mascarar o caos: bancos de horas impossíveis, obstetras solitários a supervisionar internos, equipas reduzidas a um mínimo que não suporta a urgência. Os sindicatos são claros: não faltam telefones; faltam médicos. O caos não desaparece; apenas se esconde. E, desta vez, a face do problema é a grávida que hesita ao telefone ou a que chega ao hospital e descobre que, afinal, lhe falta um protocolo.
Há outros países que implementam medidas parecidas. No Reino Unido, por exemplo, existe a triagem telefónica. Mas é uma escolha: um recurso para orientar. Cá, é uma obrigação. Lá, as grávidas têm apoio; cá, têm de provar a urgência da sua própria condição. O que lá é uma ajuda, aqui é uma barreira. Não é a tecnologia que falha, mas a decisão política de transformar um direito em privilégio.
O Governo desresponsabiliza-se, culpa os utentes, argumentando que as urgências estão sobrecarregadas porque a população as “percepciona como ilimitadas”. Mas esta perceção não é um erro; é o reflexo de um sistema que falhou. Centros de saúde sem vagas, consultas hospitalares adiadas, falta de acompanhamento primário: o recurso às urgências não é um capricho. É a última porta que resta aberta. E, em vez de enfrentar o colapso, o Governo fecha a porta.
A linha telefónica é um improviso, um remendo aplicado sobre uma ferida que não se quer sarar. Não resolve a falta de médicos nem o caos das urgências. À porta das urgências, as grávidas não encontram apenas um cartaz. Encontram a confissão de um país que deixou de saber cuidar. Não é só o preço da vida que está em risco — é a própria promessa de um Estado que devia estar lá.
E já não está.