“Que murro no estômago”, “que dor no coração foi ler este livro”, “dói-me a alma”, são alguns dos testemunhos de quem leu “A Cicatriz” - o mais recente trabalho de Maria Francisca Gama. A estas palavras acrescentam-se as lágrimas de quem se confrontou com uma história de dor e sofrimento, contada na primeira pessoa, por uma personagem feminina que é vítima de violação.
Da sua infância, Maria Francisca Gama recorda a 'Hora do Conto' que frequentava, religiosamente, todos os sábados na Biblioteca Afonso Lopes Vieira, em Leiria. Agora com 26 anos, está cada vez mais certa de que é um "desejo secreto da maioria dos leitores tornarem-se escritores". Desejo esse que, aparentemente, sempre foi o seu.
A paixão pela literatura brasileira, pelo Brasil e pelo Rio de Janeiro está representada em cada uma das páginas d'A Cicatriz. A cidade carioca - o "Rio da beleza, do ritmo e do sabor" - foi o cenário escolhido pela escritora para esta história ficcional. Mas que não está longe daquilo que é a realidade de muitas mulheres pelo mundo fora.
Ao mesmo tempo que vai enumerando as qualidades da cidade brasileira, desconstrói também os seus defeitos e perigos que, aos olhos de leitores mais críticos, podem ser mal interpretados. Reconhece que escreveu este livro de um "lugar de privilégio", mas também de "muito respeito para com todos os brasileiros, para com todas as vítimas de violência e sem quaisquer laivos de xenofobia ou racismo".
" Eu acho que ser artista é ter medo de ser mal interpretado, mas criar ainda assim", confessa.
"As minhas personagens femininas não refletem quem eu sou"
Maria Francisca Gama preferiu não atribuir nomes às personagens principais - um casal de namorados. Acredita que é mais fácil o leitor criar empatia com um "ele/ela" do que com um "Miguel/Ana."
"N ós conseguimos substituir mais facilmente esse ‘ele’ ou ‘ela’ por uma pessoa de quem nós gostamos. No caso d’A Cicatriz, pela nossa irmã, pela nossa mãe, pela nossa amiga, por nós próprias."
Com o mesmo propósito decidiu escrever toda a história na primeira pessoa. Um processo que tem os seus desafios e dissabores, especialmente quando se vive uma realidade tão pesada como se fosse a sua. Enquanto escritora prefere que as suas personagens femininas não reflitam quem é na vida real.
"É muito importante não me revelar por inteiro. Nem lá perto aos leitores, porque isso deixa-me numa posição muito desconfortável, de demasiada exposição ".
Nas últimas páginas d'A Cicatriz, dedicadas aos leitores, Maria Francisca Gama confessa que o seu livro é um "relato profundo e íntimo" daquilo que não viveu. Mas isso não a parece impedir de se "confundir" com as personagens que constrói durante várias horas.
Não esconde que lhe passou pela cabeça "não ter o direito" de escrever sobre algo que nunca experienciou. Enquanto escritora defende que é importante deixar claro que a história que conta não é sobre si e não tentar "colher a pena dos leitores".
"Nós escritores podemos escrever sobre o que quisermos e podemos pôr-nos noutras peles."
"Acho que a literatura por encomenda não é especialmente boa"
O livro "A Cicatriz" foi lançado no início deste ano e já vai na sua 7.ª edição. Desde então que é difícil não encontrá-lo em destaque numa qualquer livraria do país e quando isso não acontece é porque está esgotado. "Normalmente os livros não estão muito tempo nas livrarias, a menos que vendam muitos exemplares ou que sejam de autores estrangeiros". A forma como o seu livro se tornou um fenómeno nas redes sociais elevou ainda mais a fasquia para projetos futuros e por isso a autora garante não vai publicar nada nos próximos meses.
"Não vou publicar nos próximos meses porque é preciso calma e escrever de um lugar tranquilo, centrado, sem pensar no que os outros vão pensar . Acho que a literatura por encomenda não é especialmente boa", conta Maria Francisca Gama.
Muito do sucesso d'A Cicatriz deve-se aos seus leitores - mais novos ou mais velhos, do sexo feminino ou masculino - que têm partilhado o livro"sem pedir nada em troca e de forma bastante simpática".
Para Maria Francisca Gama "a literatura está a ficar na moda" e o conceito de escritor/a tem vindo a mudar ao longo do tempo. Se antigamente os leitores se fechavam na sua própria bolha, agora são frequentadores assíduos de eventos como Feiras do Livro.
"Sinto que está a mudar e, na minha opinião, acho que faz sentido mudar. Os leitores, na nossa profissão em particular, são os nossos patrões digamos assim, porque se eles não comprarem os nossos livros, nós temos que fazer outra coisa. G osto de estar fora de casa com os leitores e agradecer-lhes a oportunidade que me estão a dar dos meus livros estarem nas suas estantes."
"O Clube das Mulheres Escritoras" e a luta pela desigualdade literária
Este projeto, fundado em março do ano passado por Filipa Fonseca Silva, nasceu da necessidade de existir uma "plataforma para outras mulheres escritoras em Portugal" e tem como objetivo contribuir para que exista cada vez menos desigualdade no mercado literário.
"O objetivo do clube é que ela [desigualdade de género] termine. E quando a desigualdade terminar, o clube também termina, porque é esse o seu escopo", conta.
Atualmente Maria Francisca Gama é uma das 24 autoras portuguesas que integram o "Clube das Mulheres Escritoras".