
Em causa está o licenciamento de uma obra para a construção de um parque de autocaravanas na freguesia de Montenegro, junto ao Aeroporto de Faro, num terreno agrícola abrangido pelo Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Vilamoura-Vila Real de Santo António.
No despacho de acusação, datado de outubro de 2023, o Ministério Público (MP) pede que seja aplicada aos dois autarcas a pena acessória de proibição do exercício de função pública, alegando que as suas condutas "revelam manifesto e grave desrespeito dos deveres inerentes às funções exercidas".
Além dos autarcas, foram constituídos arguidos o chefe de Divisão de Gestão Urbanística e o diretor de Departamento de Infraestruturas e Urbanismo da Câmara de Faro, na altura dos factos, uma sociedade comercial e o seu gerente e o coordenador do projeto de arquitetura e especialidades da obra.
Após a dedução de acusação, todos os arguidos requereram a abertura de instrução, tendo o presidente da autarquia alegado, nessa fase processual, que "não praticou qualquer crime" e que apenas deferiu a emissão do alvará de obra "com base em pareceres técnicos favoráveis".
Já a vereadora com o pelouro do Urbanismo alegou ter deferido o projeto de arquitetura "em função de informações técnicas dos vários intervenientes do processo", invocando, ainda, que a compatibilização entre o POOC e o Plano Diretor Municipal (PDM) de Faro "apresenta erros e imprecisões".
Segundo o despacho de pronúncia, datado de dezembro de 2024 e a que a Lusa teve acesso, por "considerar que foram recolhidos indícios suficientes", o Tribunal de Faro decidiu pronunciar todos os arguidos para serem submetidos a julgamento.
O início do caso remonta a 2017, altura em que a sociedade Yourset2go -- Atividades Turísticas Unipessoal, Lda., gerida por Justino Ramos, pediu à Câmara de Faro a emissão de licença para a obra, tendo o alvará de construção sido emitido em julho de 2019.
Em setembro desse ano, já com a obra avançada e na sequência de reclamações de moradores, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) questionou a Câmara sobre a existência do projeto, sobre o qual "tinha total desconhecimento", acabando por emitir em novembro parecer desfavorável ao mesmo.
Segundo o despacho de pronúncia, mesmo depois do parecer desfavorável da APA, tanto Rogério Bacalhau como Sophie Matias "não diligenciaram no sentido de interromper a construção até esclarecerem definitivamente a questão, o que revela que [...] sabiam, porque tinham de saber, que a ASA [Área de Serviço para Autocaravanas] encontrava-se em área cuja edificação se encontrava interdita".
Nas declarações que prestaram, os autarcas fizeram crer que aprovavam licenciamentos e projetos de arquitetura sem analisar a respetiva legalidade, "limitando-se à mera declaração de 'concordância' com os fundamentos de anterior parecer, informação ou proposta", lê-se no documento.
"Como sabemos, vereadores e presidentes de Câmara dispõem do poder de elaborar e aprovar os planos de ordenamento do território e de regulamentar a sua aplicação, ou seja, o poder de decidir em matéria de urbanização, alteração do uso do solo e licenciamento de obras, pelo que não é crível que o tenham feito, no presente caso, com a leveza que quiseram transparecer em sede de instrução", acrescenta.
Por outro lado, sublinha o MP, o licenciamento da obra teve desde o seu início "uma tramitação atípica", uma vez que a emissão da licença de construção obrigaria ao pedido de parecer prévio à APA, já que o terreno está classificado como agrícola e se encontra dentro dos limites do POOC, "o que não foi feito".
Assim, para o Ministério Público, "é por demais evidente que "todos os arguidos sabiam que o imóvel [...] encontra-se em área cuja edificação se encontra interdita e ainda assim, quiseram que fosse construída a Área de Serviços de Autocaravanas, cientes da desconformidade com as normas aplicáveis".
O MP investigou ainda se o dono da obra, o antigo presidente da concelhia social-democrata de Faro Justino Ramos, teria sido beneficiado pela autarquia de maioria PSD, mas não foram encontrados indícios de corrupção ou prevaricação por titular de cargo político.
MAD // JLG
Lusa/Fim