
E a literatura e não só a de produção por médicos, ao longo de alguns séculos, além de estimular a curiosidade aumenta o conhecimento, contribuindo como um guia fundamental para a compreensão do ser humano nas suas múltiplas e indissociáveis vertentes – psíquica, orgânica, social e espiritual.
E citei a literatura porque creio que o médico sempre foi um indivíduo de cultura, sem a qual na verdade, para a sua actividade clínica e relacional, estaria condenado a um exercício de forma bem menos nobre de expandir o seu conhecimento e saber e, sobretudo privado da capacidade de compartilhar a solidariedade e a natureza humana.
Mas o apelo e o fascínio da Medicina Geral e Familiar tem muito a ver com a disparidade, a complexidade e a riqueza da sua prática.
Não tenhamos ilusões, uma parte substancial das reclamações, insatisfação ou das queixas de médicos, decorrem do alheamento dos receios e preocupações dos doentes, dos seus problemas e sentimentos.
E certamente da falta de comunicação ou das falhas na mesma comunicação.
Não basta ser um técnico sabedor, com capacidade teórica e imensa sob o ponto de vista científico.
É preciso, diria essencial, ter maturidade, desenvolver também a cultura de que falava atrás, de gostar de ver e conversar com os utentes e doentes e familiares e cuidadores, de esquecer as horas e os sacrifícios físicos, de gostar de ser médico!
Não tenho a certeza quanto às verdadeiras razões que estão a levar os jovens colegas à sua escolha e opção para a vida profissional.
Mas leio, ouço e avalio os argumentos que hoje, para muitos dos médicos mais novos, se centram sobre a falta de condições de trabalho, as condições remuneratórias ou as dificuldades que podem sentir no equilíbrio das suas vidas pessoais com a profissão.
Não posso deixar de recordar e estabelecer comparações com as gerações de médicos que há 50, 40 ou 30 anos atrás se formavam nas escolas médicas portuguesas, em particular quanto ao que, pela mesma altura das suas vidas, tomavam para suas opções.
Havia claramente uma primeira nota e diferença.
O título de médico especialista chegava bem mais tarde do que hoje. A idade e a experiência clínica acumulada eram maiores.
Numa outra vertente, o Estado Português e a Administração Pública não pagavam melhor nem muito mais aos seus quadros, designadamente aos médicos. Daí o facto de sermos profissionais que acumulávamos funções em vários locais e pontos de exercício e actividade, somando horas de trabalho semanal, incluindo noites e fins de semana, bem para além das 40, 45 ou mais horas.
E as condições de trabalho não eram diferentes, seguramente não eram mais apelativas.
Bastaria por exemplo evocar as dificuldades e as vicissitudes que os médicos de então viviam durante dois anos nos seus internatos gerais (“de policlínica”), integrando estágios de 8 meses de saúde pública, em concelhos espalhados pelo país.
E em seguida mais um ano de autêntico serviço médico e cívico, dito Serviço Médico à Periferia, distribuídos por um país que então não tinha auto-estradas, em um tempo que não oferecia telemóveis nem computadores, vilas que tinham pequenos e velhos hospitais de Misericórdias, “centros de saúde” muitas vezes em Casas do Povo, sem acesso a meios complementares de diagnóstico, sem apoio de ambulâncias para transportes nocturnos, sem INEM nem emergência pré-hospitalar…
E mesmo assim, tantas vezes ainda com o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório que, não havendo igualdade entre homens e mulheres, só convocava os primeiros para de dezoito a vinte e quatro meses de serviço algures em quartel longe de tudo quanto eram os respetivos domicílios desses jovens médicos e a troco de um punhado de escudos, a moeda da época!
Não falo de saudosismo ou porque estou bem mais velho…
Os problemas do SNS são muitos e gigantescos.
Os médicos devem reflectir sobre o cenário vivido e no modo de contribuir para um outro paradigma, certo sendo que demorará anos a virar estas páginas e Era.
Mas é tempo de assumir que as escolas médicas, diria até que todas as escolas da área das profissões da Saúde, deveriam envolver e exigir uma entrevista motivacional no processo de admissão antecipando desilusões e fracassos, confrontando os candidatos em tempo útil com uma realidade que não conseguem desejar, nem por ela saber sentir o que os poderia – verdadeiramente compensar – bem acima do que poderiam imaginar!
Autor: Rui Cernadas,
Especialista em Medicina Geral e Familiar
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