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Em Amesterdão há parcerias público-privadas pujantes, Barcelona promove a intermediação entre inquilinos e proprietários, Paris está a transformar escritórios em casas. As soluções praticadas pela Europa são diversas e várias poderiam ser usadas em Portugal, para ajudar a resolver a crise de habitação que vivemos, fruto da quase inexistência de políticas de habitação desde os anos 90. Nos sucessivos governos do PS, foram sendo prometidas e reprometidas novas casas, com o então primeiro-ministro, António Costa, a garantir 26 mil portas abertas até ao final de 2024; perto do final do prazo, tinha entregado menos de 1.500 casas. Agora, o governo da AD revogou normas polémicas criadas no programa Mais Habitação, como a ocupação de casas privadas, e criou outras que visam atacar a crise da habitação. Mas talvez a resposta esteja à vista, nos exemplos de outras cidades europeias.
A diversidade de abordagens destinadas a debelar estes problemas é trazida por Álvaro Santos, especialista no tema, coordenador da Pós-Graduação em Reabilitação do Património Construído na Universidade Fernando Pessoa e com mestrado em Planeamento do Território e Ambiente pelas Faculdades de Engenharia e de Arquitetura da Universidade do Porto. No livro Políticas de Habitação Acessível: no Norte de Portugal e na Europa, que lançou com Miguel Branco-Teixeira, o engenheiro procura "extrair conclusões e recomendações para o contexto português, a partir de uma análise de boas práticas nacionais e internacionais". As Politicas de Habitação Acessível estarão em palco nesta quarta-feira, em Braga, numa apresentação que conta com a presença do ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz. Em entrevista ao SAPO, o autor do livro e CEO da Agenda Urbana explica que melhorar a oferta e começar a resolver a crise da habitação não é uma tarefa tão complexa quanto parece... desde que se tome os caminhos certos.
Durante décadas, construiu-se pouco, acabou-se com programas que facilitavam a "primeira morada" dos jovens e de famílias recém-formadas, como os da EPUL, e abandonou-se quaisquer políticas de habitação. Quantas casas seriam necessárias para desbloquear o efeito disto no mercado?
A viragem de milénio coincidiu com uma diminuição acentuada do volume de construção de habitação, em Portugal. Com efeito, depois de um boom na década de 90, em que se chegou a ultrapassar a marca dos 100 mil fogos construídos anualmente, nos anos seguintes verificou-se uma queda abrupta da construção de habitação, que atingiu o seu ponto mais baixo em 2015, com uns escassos 7 mil fogos. Do lado público, depois do PER - Programa Especial de Realojamento – que, durante a década de 90, permitiu resolver os problemas de habitação de cerca de 48 mil famílias carenciadas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto –, a promoção pública de habitação social praticamente desapareceu. Em termos práticos, esta enorme redução do número de fogos construídos teve fortes consequências no mercado habitacional, provocando a escassez e o desajustamento da oferta, o aumento da especulação imobiliária e a subida muito significativa dos preços.
E esses problemas já estão a ser endereçados?
Chegados a este ponto, é importante reconhecer que as novas políticas públicas para a habitação, inscritas no programa do atual governo, preconizam o aumento significativo das ofertas privada, pública e cooperativa. E não creio que esta ordem seja aleatória. Creio, aliás, que é intencional. E muito bem. A este propósito, importa ter presente que o parque público de habitação é constituído por cerca de 120 mil fogos, a esmagadora maioria na posse dos municípios, o que representa, uns escassos 2% de todo o parque habitacional nacional. Mesmo com o financiamento do PRR, este parque público não vai aumentar significativamente, porque a principal aposta que está a ser desenvolvida pelos municípios é na reabilitação dos fogos já existentes, porque o seu estado de conservação e de eficiência energética assim o exige. Por outro lado, creio ser consensual considerar que o Orçamento do Estado não chega para satisfazer todas as necessidades do país – o que, aliás, tem sido legitimamente reivindicado por largos setores da sociedade portuguesa. Daqui se conclui que o parque público de habitação, mais direcionado para apoiar as famílias e indivíduos em situação mais vulnerável, não irá sofrer grande incremento nos próximos anos.
Só com a mobilização do investimento privado é possível recuperar os níveis de produção de casas a preços acessíveis para satisfazer as necessidades da população e contribuir para uma diminuição dos preços atuais da habitação.
Terá então de se apostar no privado?
Resulta óbvio que só com a mobilização do investimento privado é possível recuperar os níveis de produção de casas a preços acessíveis para satisfazer as necessidades da população e contribuir para uma diminuição dos preços atuais da habitação. Nos anos mais recentes, o país já produziu cerca de 20 mil fogos anualmente, mas enquanto não for capaz de produzir algo semelhante a 50 ou 60 mil fogos por ano, a crise habitacional vai continuar e os preços vão continuar a ser inacessíveis para muitas famílias portuguesas. Não tenhamos dúvidas disso.
A Lei das Rendas, que as manteve congeladas durante décadas, também contribuiu para agravar o problema?
Sem dúvida que sim. E enquanto o país tiver memória, seria bom que esse erro dramático não se repetisse. O mercado de arrendamento precisa, fundamentalmente, de confiança. E essa confiança escasseia. Caso contrário, não tínhamos 723 mil fogos vagos (sem qualquer tipo de utilização), no país, de acordo com os últimos censos. É verdade que, deste contingente, metade está no mercado de venda ou arrendamento, mas a outra metade, cerca de 375 mil fogos está fora por outros motivos (por exemplo, heranças indivisas, laxismo, falta de confiança no arrendamento, etc.). E sublinho que deste grupo, cerca de 250 mil fogos estão em bom estado de conservação e, portanto, poderiam ser facilmente mobilizáveis para o mercado de arrendamento, se, creio eu, os seus proprietárias sentissem essa confiança. No setor imobiliário, a confiança é algo que demora muito tempo a conquistar, mas pode-se perder num ápice.
Há cerca de 250 mil fogos em bom estado de conservação que poderiam ser facilmente mobilizáveis para o mercado de arrendamento. Mas é preciso que os seus proprietárias sintam confiança para arrendar. Seria bom que o erro dramático (das rendas congeladas) não se repetisse.
O que é preciso para trazer nova energia ao mercado do arrendamento?
No domínio do arrendamento, é importante devolver a confiança a todas as partes intervenientes (proprietários e inquilinos) que foi o que aconteceu, por exemplo, com a revogação do arrendamento forçado, garantindo assim o respeito pelo direito de propriedade. Ou ainda, o que se pretende fazer com a correção das distorções introduzidas ao Regime de Arrendamento Urbano, nos últimos anos. Fundamentalmente, é importante assegurar a estabilidade legislativa e a previsibilidade para quem quer investir e apostar no mercado de arrendamento. Os proprietários, os promotores e os investidores imobiliários não gostam de incerteza ou insegurança. Aliás, ninguém gosta. É importante estimular a adoção de medidas de incentivo ao investimento privado, designadamente fiscais, legislativas e de acesso ao financiamento. É igualmente importante incrementar uma política fiscal mais justa, equilibrada e competitiva no domínio da habitação. É importante simplificar e reduzir a excessiva morosidade dos processos de licenciamento. É importante promover o acesso à concessão de financiamento, de médio e longo prazo, para a construção de habitação em regime de custos controlados.
A redução do IVA para a taxa mínima de 6% para as obras de reabilitação e construção de habitação, é outra medida que considero fundamental para aumentar a oferta de habitação a preços acessíveis para as famílias de rendimentos intermédios e, em particular, os mais jovens.
E na construção, faria sentido apostar numa espécie de PPP para casas a preços acessíveis (uma espécie de ALD, em que se fosse pagando rendas e no final do prazo decidir se se queria entregar o remanescente e ficar com a casa), de forma a garantir que existem?
Claro que sim. Aliás no programa do atual governo estão previstas várias medidas para dinamizar o aumento da oferta privada de habitação, como a disponibilização de imóveis públicos para habitação a custos acessíveis, em regime de parcerias público-privadas, a criação de um bónus construtivo para aumento dos índices e limites de densidade urbanística para habitação a custos controlados ou arrendamento acessível ou ainda a criação de linhas de crédito para a promoção do build-to-rent. A redução do IVA para a taxa mínima de 6% para as obras de reabilitação e construção de habitação, é outra medida que considero fundamental para aumentar a oferta de habitação a preços acessíveis para as famílias de rendimentos intermédios e, em particular, os mais jovens. Uma palavra também para o setor cooperativo que, à semelhança do seu contributo no passado, também poderá ter novamente um papel de relevo num futuro próximo para o aumento do stock habitacional nacional.
O mapa de edifícios públicos devolutos continua a ser desconhecido. Como pode desatar-se esse nó para pôr milhares de fogos no mercado – com efeitos óbvios na habitação e nos preços do imobiliário?
De facto, o Estado possui uma vasta gama de imóveis que vão desde edifícios históricos e administrativos até terrenos baldios e antigos complexos industriais. Muitos desses imóveis estão localizados em áreas urbanas centrais ou em regiões estratégicas que, se bem aproveitadas, poderiam servir para o desenvolvimento de habitação de interesse social. Transformar esses imóveis em unidades habitacionais não só maximizaria o uso dos recursos públicos, como também contribuiria para a revitalização de bairros e o aumento da oferta de habitação para quem mais precisa. A verdade é que o Estado já começou a dar os primeiros passos nesta matéria. Exemplo disso é a publicação de uma lista atualizada do património imobiliário público sem utilização que identifica, por município, os imóveis do domínio privado do Estado ou dos institutos públicos e os bens imóveis do domínio público do Estado que se encontram devolutos ou abandonados.
E já teve algum efeito?
Até agora, os resultados da utilização destes ativos para fins habitacionais são manifestamente escassos e constituem raras exceções. Aguarda-se agora com expectativa a operacionalização de algumas medidas previstas no programa Construir Portugal que podem contribuir para incentivar a transformação desses ativos em projetos habitacionais, com o envolvimento ativo dos municípios e a colaboração com o setor privado ou com organizações da sociedade civil que podem ajudar a superar os desafios, de modo a garantir que os projetos sejam viáveis financeiramente e atendam às necessidades da comunidade. Por exemplo, o anunciado regime legal semiautomático de aproveitamento de imóveis públicos devolutos ou subutilizados para projetos de habitação ou a disponibilização de imóveis públicos para habitação (build-to-rent) com renda/preço acessível, são duas medidas que podem demonstrar como o património do Estado pode ser um recurso poderoso para melhorar a oferta habitacional.
Lei dos solos? Gerou-se uma tempestade num copo de água. Mas o amplo consenso que se gerou na Assembleia da República, com 90% dos deputados a não se oporem à nova legislação, é um sinal claro de que esta medida pode ter os seus méritos.
Faz sentido que se culpe o crescimento do segmento de luxo pela crise da habitação?
Obviamente que não.
Pode a Lei dos Solos, que tanto tem sido debatida, ser uma ajuda para desbloquear construção onde ela hoje não existe (respeitando, naturalmente, os critérios ambientais e de ordenamento), sobretudo em áreas próximas dos grandes centros urbanos e fora de Lisboa e Porto?
A alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão do Território (vulgarmente designada por Lei dos Solos) é positiva, aliás como positivas são as medidas que possam contribuir para a diminuição do preço dos solos que, indiscutivelmente, têm impacto no preço final a habitação. Aliás, esta medida vem na sequência de uma outra lançada no âmbito do pacote Mais Habitação, do governo anterior, em que já se previa a reconversão de solos rústicos, de propriedade pública, para solos urbanos, em condições em tudo semelhantes às agora apresentadas. Lamento apenas que se tenha gerado uma tempestade num copo de água. Mas, creio que o amplo consenso que se gerou na Assembleia da República, com 90% dos deputados a não se oporem à nova legislação na discussão deste diploma, é um sinal claro de que esta medida pode ter os seus méritos. Vejamos agora como vai ser aplicada pelos municípios.
Os programas complementares locais que têm sido adotados, nomeadamente para as rendas sociais mas também direcionados para a classe média (professores, enfermeiros, polícias…), por exemplo em Lisboa ou no Barreiro, são úteis ou faria mais sentido centralizar soluções? Ou, antes pelo contrário, elas deviam ser maioritariamente geridas a nível local?
Eu sou apologista de um papel cada vez mais ativo e relevante dos municípios na implementação de políticas de habitação que contribuam para o bem-estar da população. Isto porque, creio ser consensual que os municípios têm um contacto direto e privilegiado com a população, sendo os autarcas e os técnicos municipais quem melhor conhece o território e as suas necessidades, portanto estão em melhor posição para encontrar as respostas mais adequadas para resolver os problemas habitacionais. Aliás, em 2023, lancei o livro Políticas Locais de Habitação, com mais dois colegas, no qual analisamos e desenvolvemos a ideia do papel de fundamental relevância que os municípios podem desenvolver em prol da provisão de habitação para as suas populações. Contudo, e nos últimos anos, apesar de o poder local ter ampliado consideravelmente o conjunto de instrumentos dedicados à habitação, seja através do alargamento dos seus objetivos às necessidades dos estratos intermédios (por via do arrendamento acessível) seja enquadrando as políticas de habitação em estratégias mais amplas, frequentemente centradas na reabilitação urbana, a verdade é que existe ainda um longo caminho a percorrer em direção a um modelo de provisão da habitação mais acessível para a generalidade da população.
Os municípios têm um contacto direto e privilegiado com a população, sendo os autarcas e os técnicos municipais quem melhor conhece o território e as suas necessidades, portanto estão em melhor posição para encontrar as respostas mais adequadas para resolver os problemas habitacionais.
Poderia também, por exemplo, garantir-se um piso por edifício de habitação construído nestas condições ou uma solução semelhante, durante um tempo? Isso seria útil?
Todas as medidas são positivas. A ideia que sugere, de certa forma, já está prevista na nova estratégia do governo para a Habitação, designadamente, tem que ver com a criação de um bónus construtivo para aumento dos índices e limites de densidade urbanística para habitação a custos controlados ou arrendamento acessível. Naturalmente que isso só se consegue com a adaptação dos instrumentos de planeamento territorial (PDM, PU ou PP) para esse fim e depende da vontade de cada município per si. A título de exemplo, podemos referir que o novo PDM do Porto já permite a possibilidade de "densificação" da capacidade construtiva desde que seja para habitação acessível. É um bom exemplo.
Lá fora existem também bons exemplos, como a venda com usufruto sem custos até à morte dos proprietários, que é estimulada no caso de pessoas mais velhas, permitindo-lhes beneficiar da sua morada mas também de um rendimento nos últimos anos e fazer a renovação das propriedades a médio prazo. Esse tipo de medidas poderia ajudar também aqui?
Creio que sim, mas admito algumas dificuldades na sua implementação em Portugal devido à cultura de propriedade enraizada na nossa sociedade. A ideia que refere surge na cidade de Helsínquia, onde existe um inovador "direito à ocupação", um regime que constitui um meio termo entre a propriedade e o arrendamento. De acordo com este modelo, os residentes pagam um valor inicial para morar no alojamento (geralmente 15 % do seu valor patrimonial), que será devolvido no caso de se mudarem. Adicionalmente, pagam uma mensalidade inferior ao arrendamento a valores de mercado, que cobre os custos de manutenção e operacionais da propriedade. Deste modo, beneficiam de uma estabilidade que dificilmente encontrarão em qualquer modalidade de arrendamento. Nunca serão proprietários da casa (que geralmente pertence ao município ou a associações sem fins lucrativos), mas poderão vender o seu direito a terceiros. Existem critérios de elegibilidade para este modelo, relacionados essencialmente com o rendimento e património pessoal do requerente. Sendo a oferta de alojamentos neste regime limitada, existe uma longa lista de espera.
Que exemplos observados noutras cidades europeias melhor podiam adaptar-se aqui e ajudar a resolver a crise da habitação?
O livro Políticas de Habitação Acessível: no Norte de Portugal e na Europa, que tive o gosto de lançar, recentemente, com o meu colega Miguel Branco-Teixeira, procura extrair conclusões e recomendações para o contexto português, a partir de uma análise de boas práticas nacionais e internacionais no domínio das políticas de habitação. Os estudos de caso internacionais abordados (Amesterdão, Barcelona, Berlim, Helsínquia, Paris e Viena) evidenciam a diversidade de abordagens destinadas a debelar estes problemas. Por exemplo, em Amesterdão, os recursos públicos aliam-se aos privados e ao terceiro setor no fomento da habitação a preços acessíveis, recorrendo a parcerias público-privadas. Em Barcelona, foi criado um observatório de âmbito metropolitano mandatado para o recenseamento exaustivo de fogos devolutos e do parque habitacional do Estado, além de se promover mecanismos de intermediação entre inquilinos e proprietários. Em Berlim, há uma aposta deliberada no estímulo a cooperativas de habitação que beneficiam do direito de preferência em áreas previamente definidas. Além da criativa reabilitação de edifícios, o que permite ampliar o número de alojamentos reduzindo a dimensão média de cada um.
E Paris e Viena, que têm para mostrar?
Em Paris, escritórios considerados obsoletos são transformados em residências e há a figura do Fundo Fundiário e Cooperativo, para apoiar construção a custos controlados, coexistindo com experiências socialmente inovadoras, como a co-habitação, as eco-habitações ou as habitações modulares. E em Viena mais de metade dos fogos insere-se em modelos de habitação social ou acessível, correspondendo à forte tradição que há muito ali vigora. São prioritários os apoios dirigidos à oferta, não à procura. Começando por uma política fundiária eficaz, baseada numa elevada dotação de solo público.