
Em circunstâncias normais, o facto de o vice-presidente dos Estados Unidos da América ter sido a última pessoa a ter uma audiência com o Papa seria irrelevante. Ou ficaria como uma pequena curiosidade. Mas alguém atento ao que se passa no mundo dificilmente deixa de notar o enorme contraste entre as duas personagens daquele último encontro e o simbolismo no seu confronto. E é irremediável perguntar qual deles marcará o próximo futuro.
Francisco ficará para a História da Igreja contemporânea como o papado do Amor. O amor ao próximo, ao outro. O amor absolutamente cristão. “No fim da nossa vida teremos de prestar contas do amor que demos e do amor que reprimimos” disse em Novembro do ano passado.
Pode-se discordar do que o Papa Francisco disse e defendeu, tanto em temas políticos como até em questões de Religião. Há, de resto, muitos católicos que se acham conservadores que não lhe perdoam a abertura. Mas não se pode ignorar que Francisco chegou onde poucos líderes católicos chegam: a milhares de agnósticos e ateus que se sentiram tocados pela sua bondade cristã. O que não é pouco, porque a Igreja cresce junto dos que não fazem parte do rebanho.
Os dois, o Papa Francisco e J.D. Vance não podiam ser mais distantes. O que seria normal se um, o vice-presidente americano, tal como muitos outros dirigentes da nova administração, não fosse católico, o que é pouco comum, e se metesse pelo tema da Fé, da Religião e da política com excessiva frequência. E com muito pouco espírito cristão.
Vance não chegou ao catolicismo nem por Cristo nem pelo amor, chegou por uma ideia de tradição, como o próprio explicou numa conferência do Instituto Napa, a propósito da sua conversão: “eu realmente gostei que a Igreja Católica fosse muito antiga”. E acrescentou: “senti que o mundo moderno estava em constante mudança. As coisas em que se acreditava há 10 anos já não eram aceitáveis para acreditar 10 anos depois”. É essa a sua visão da religião: um lugar de resistência contra a modernidade. Absolutamente distante da Igreja deste último Papa. Tal como a sua ideia de amor ao próximo.
Tudo isto continuaria a ser irrelevante se o catolicismo de J.D. Vance fosse uma questão sua com Deus, que enformasse a sua vida pública, naturalmente. Mas é muito mais do que isto.
“Vance afirmou que é um conceito da teologia católica medieval — “ordo amoris” em latim —que justifica a repressão à imigração do governo Trump. Ele afirmou que o conceito delineia uma hierarquia de cuidados - para a família em primeiro lugar, seguida pelo vizinho, a comunidade, os concidadãos e, por último, aqueles de outros lugares”, recorda a Associated press. Numa definição muito peculiar do conceito. E, de resto, o oposto do que o Papa Francisco escreveu aos Bispos americanos, a propósito, precisamente, da forma como a Administração trata imigrantes e refugiados: “a família de Nazaré no exílio, Jesus, Maria e José, emigrantes no Egito e refugiados lá para escapar à ira de um rei ímpio, são o modelo, o exemplo e o consolo de emigrantes e peregrinos de todas as idades e países, de todos os refugiados de todas as condições que, por perseguição ou necessidade, são forçados a deixar sua terra natal, família amada e queridos amigos para terras estrangeiras”, disse, citando uma encíclica de Pio XII.
Na Adminsitração Trump há uma confusão intencional entre uma ideia de país e uma versão da ideia de religião católica. “Um certo tipo de visão de mundo que valoriza uma sociedade tradicional e orientada para a família acima das liberdades individuais - e até mesmo da democracia. É uma filosofia orientadora de uma nova facção do movimento conservador que extrai de elementos da esquerda e da extrema direita, que defende a economia populista e as políticas sociais radicalmente conservadoras, e que promete uma revolução em toda a ordem política: a direita pós-liberal”, como resume um bom artigo sobre o tema na revista Slate.
Nos próximos dias falar-se-á muito sobre a sucessão do Papa Francisco. E o seu impacte no mundo. O Vaticano não tem um exército, como recorda a anedota de Stalin quando teria perguntado quantas divisões tinha o Papa, mas houve momentos em que teve uma enorme influência na política internacional. O caso de João Paulo II e do fim da Guerra Fria é exemplar, como se conta num livro sobre a contribuição de Reagan, do Papa, e de Thatcher para o triunfo do Ocidente. É, portanto, natural que a ideia de uma igreja Católica mais próxima da visão do mundo de Trump, Vance, Órban, e da ala integrista, uma igreja que acompanhasse Trump e condenasse a Igreja aberta aos outros, de Francisco, preocupa liberais, conservadores (não reaccionários) e progressistas.
A bonomia, a abertura, o sorriso, também são marcas que ficam deste Papa e que dificilmente têm expressão em Vance. Mas isso é, enfim, pode ser que seja, um detalhe.