Tem sido um desafio intelectual ver tanta gente concluir que a vitória de Trump foi a derrota do “wokismo”. No fundo, ele ganhou por culpa da esquerda woke. Esses analistas sabem que estão a falar da vitória de um criminoso, assumidamente antidemocrata, mentiroso compulsivo, instigador de um golpe de estado, amigo orgulhoso de ditadores que nos ameaçam a todos, desumano e cruel para com imigrantes (gente com “sangue envenenado”), sexista sem remorsos, um homem que apelidou Kamala Harris de prostituta e que dorme bem com o fim dos mais elementares direitos reprodutivos conquistados há décadas e décadas, conivente com a morte de mulheres em vários Estados por falta de apoio médico, um homem que espalha ódio e desinformação sobre gente que não é certamente a causa do que falta aos bolsos das pessoas, até porque no meios dessas pessoas com bolsos vazios também estão pessoas LGBTI e pessoas negras e mulheres, essa “agenda woke”.
Onde ia eu?
Já sei. Tem sido um desafio intelectual ver gente, tanta gente, que assistiu à vitória da barbárie sobre a decência, à vitória da tirania sobre a democracia a concluir que o foco do acontecimento está no “wokismo”. Ou seja, mais de meia América, milhões e milhões de pessoas adultas, que não menorizo, ouviram dos crimes, ouviram do repúdio por mais eleições, ouviram dos insultos, ouviram do apelo à violência, ouviram do racismo e da misoginia e ouviram de um plano económico amigo de milionários e terão pensado:
- Eu não gosto disto. Sou adulto, não gosto disto, mas a esquerda anda a falhar com a classe trabalhadora e a pensar demasiado na agenda “woke”, logo vou votar no fim da América como ela foi concebida.
A sério? Tenho muita dificuldade em acompanhar quem põe o peso desta transformação brutal, civilizacional, no que a esquerda “não fez” e não no que o povo, composto por gente adulta e capaz, quis. Porque são muitos, mas muitos milhões de votantes para podermos fazer uma simplificação e dizer: “a esquerda abandonou a classe trabalhadora”.
Tenho muita dificuldade em acompanhar quem põe o peso desta transformação brutal, civilizacional, no que a esquerda “não fez” e não no que o povo, composto por gente adulta e capaz, quis
Sim, a crise inflacionista foi real, os dados económicos estavam a melhorar, as pessoas ainda não os sentiam no bolso, mas penso que o capitalismo não espera o mesmo que se espera de um estado social robusto e também penso que não é “woke” combater uma das armas da extrema-direita, essa de ter direitos humanos elementares como “causas fraturantes” ou coisas “woke “de uma esquerda “que já cansa”.
A verdade é que este horror pegou porque anda meio mundo a defender um outro mundo que não conheço em que a defesa da classe trabalhadora exclui a defesa das causas identitárias ou mesmo que elas não se cruzam. Como se na classe trabalhadora não existissem negros, mulheres que são discriminadas no acesso à IVG, gays e lésbicas ou trans.
Acontece que a história lembra sempre a história.
Quando se debatia o fim da proibição do casamento inter-racial nos EUA (decisão do Supremo de 1968) mais de sessenta por cento dos americanos tinha o tema por irrelevante e não querida mudar a lei. Mudava as suas vidas em quê? Isto da igual dignidade pode ser de facto “uma chatice", pelo que muitos dos analistas de hoje postos nos anos 60 e nos que se seguiram poderiam estar a fazer o mesmo discurso, mas onde agora se ouve “woke”, ouviríamos “Rosa Parks” aquela “chata” que insistiu em não mudar de lugar, não é, ou ouviríamos das mulheres que quiserem o aborto, e a PMA, e a casarem umas com as outras e divórcios simples, talvez tenha sido tudo uma... “falta de foco”.
É como os trans. São tão poucos. Não serão culpados pelas crises económicas, então não falem deles, não sigam a ciência e não lhes confiram direitos. Qual a consequência? A sua morte. Mas ninguém dará por isso. E não se “perde” tempo a falar de uma realidade que é difícil de explicar e fácil de caricaturar.
Sim, a crise inflacionista foi real, os dados económicos estavam a melhorar, as pessoas ainda não os sentiam no bolso, mas penso que o capitalismo não espera o mesmo que se espera de um estado social robusto
Foi isso que ganhou. Lá e cá. O mundo da tranquilidade da maioria. Que não gosta de ser incomodada por quem foi historicamente silenciado, oprimido, preso, morto. Que bem que se estava.
E o grande tema que está na base de todas estas novas direitas não são os gays, nem as lésbicas, nem os trans. Esses são usados para agitar quem por associação é racista e xenófobo. Sim, o foco destas direitas extremadas é mesmo o racismo e a xenofobia, a repulsa pelo outro, no caso o regresso à América proibida, à América branca, suprema, fechada e para alguns. E é por isso que se acena com a “teoria da substituição”. Lá e cá.
Era terem-se focado no dinheiro e Kamala “não era uma boa candidata”, ouço, aliás ainda hoje é frequente ser-se veloz a explicar cada defeito de Hillary Clinton. Como não dar a vitória ao homem que simboliza o racista puro e misógino com uma tal perfeição que gente ora decente cai na esparrela? Refletir sobre o facto de ter sido mais fácil eleger um negro do que uma mulher para a presidência dos EUA? Para quê?
Foi isso que ganhou. Lá e cá. O mundo da tranquilidade da maioria. Que não gosta de ser incomodada por quem foi historicamente silenciado, oprimido, preso, morto. Que bem que se estava
Era ter feito silêncio quanto a direitos fundamentais. Ou wokismo, essa chatice. E de certeza que todos aqueles milhões veriam que o plano económico de Kamala Harris era mesmo melhor do que o de Trump (e era), mas desistiam de um criminoso e votariam em força numa mulher que lhes tinha feito o favor de meter uma multidão no armário.
A tese está ótima. Sobretudo quando se verifica que os mais esquerdistas não votaram em Kamala Harris por ela ter centrado o discurso.
Eu prefiro aceitar o que aconteceu. Mais de metade dos americanos rejeitou a terra da liberdade. A barbárie venceu. E tenho de me juntar a quem quer pensar nisso e lutar pela decência e pela dignidade de todas as pessoas. De todas. Não estou disposta a deixar alguém para trás.