Salvador lembra-se de Mafra, do Casal Vistoso, de ir a Almada atrás da versão do Sporting com a bola peganhenta, a colar-se às mãos dos jogadores e ele, ferrenho leão desde o berço, colado à equipa para a ver medir-se contra adversários europeus arcando com a casa às costas, sem poiso fixo. Não parece dado o corpanzil, mas ele é jovem, 23 anos de pêlo na venta e por baixo do nariz, e recorda-se bem de ver “os últimos bicampeões” de andebol do clube “a baterem de frente contra o Vezprem na época em que a Champions se estreou no João Rocha”. Foi ocasião recente, em 2019, na primeira época do duplo Salvador no plantel sénior, tão gaiato que viu de fora essa aventura até aos oitavos de final no novo e ansiado pavilhão do clube.

O atual capitão do Sporting lembrar-se-á daqui em diante de Płock, cidade no coração da Polónia onde no frio da noite de quinta-feira, no quente do pavilhão do Wisła, os leões cravaram as garras fundo na história, antes passando-as no afiador do épico: faltavam cinco segundos no relógio, o adversário tinha a bola, acabara de pedir um time-out e, regressados à ação, o espanhol Mamadou Gassama intercetou um passe, de pronto deu a bola a Orri Thorkelsson e o braço armado do islandês atirou para golo, fazendo o apressado 29-29. A urgência bateu os jogadores em retirada, todos ainda correram para trás e atrás do adversário polaco que ainda teve tempo de rematar o desespero a uns 15 metros da baliza, sem lhe acertar.

Soou a corneta, explodiram as emoções. Com a braçadeira visível a apertar-lhe a fisga direita, Salvador Salvador correu campo dentro, frenético no entusiasmo, agitando os membros sem controlo, abraçando companheiros de equipa. “Faço parte de um grupo de sonhadores, cheios de ambição, que acabam de fazer história pelo meu clube”, escreveria mais tarde, serenada um pouco a festa, no seu Instagram. O empate contra o Wisła Płock garantiu ao Sporting a qualificação direta para os quartos de final da Liga dos Campeões, inédito feito para uma equipa portuguesa no formato atual da competição maior do andebol.

NurPhoto

Farta foi a farra, repleta de pulos dados na arena polaca assim que confirmado o resultado enquanto Ricardo Costa, o treinador cheio de sucesso - uma vez campeão nacional, duas Supertaças e três Taças pelo Sporting desde 2021 - deixou-se tombar no chão, caído de frente, aliviado e feliz. “Mais importante do que nunca, era não virarmos a cara ao jogo. Acabámos por, na parte final, ter a sorte do jogo, mas também fomos em busca dessa sorte”, elogiou o pai do destro Martim Costa, bombardeiro que cada vez menos antídotos concede a adversários, com 10 golos deixados na Polónia, e do mais novo ‘Kiko’, canhoto ausente à força desta noite histórica, arredado por uma (ao que parece) lesão no joelho.

Embrulhadas 14 jornadas da fase de grupos, o Sporting apurou-se no segundo lugar, só aquém dos húngaros do Veszprém, de quem Salvador²bem se lembra e quis dizer que se recorda, vincando também como ciente está de que integra uma memória coletiva a ser construída. “Sou ‘apenas’ mais um no meio disto, agradeço a todos os que se alinham ao meu lado, aos que dão indicações do banco, aos que ajudam no tratamento do nosso corpo, aos que me ajudam em casa, e aos nossos adeptos, que em cada jogo em nossa casa fizeram parecer que jogávamos com um a mais!”, elogiou o capitão dos leões, por detrás do seu bigode.

Farfalhuda tal e qual esse adorno tem sido a caminhada desta equipa. No pavilhão João Rocha que aquietou as mudanças de casa, o Sporting colecionou finca-pés: ganhou por 11 golos ao Paris Saint-Germain, uma das potências do andebol europeu; suplantou o Fuchse Berlin, vice-campeão alemão e equipa de Mathis Gidsel, o melhor jogador do mundo; prevaleceu também com nove golos sobre o Veszprém. Factual e numericamente, a turma de Ricardo Costa, quarto ataque mais profícuo (454 golos) e terceira defesa menos batida (399), é um dos faróis desta edição da prova.

O esfomeado andebol português

A viver entre gigantes, o treinador não esmorece na ambição: “Temos dois jogos para nos metermos na final four e já que chegámos aqui, queremos dar mais esse passo.” Seria uma passada larga, com paralelo em Portugal, mas distante, que obrigada a rebobinar ao antigamente.

Há 24 anos, o ABC chegou aos ‘quartos’ da Liga dos Campeões, perdendo para os espanhóis do Portland de San Antonio, eventuais vencedores da prova nessa temporada. Era o grito que restava ao amarelo da equipa de Braga, a que mais raiava a luz do andebol português lá fora nessa era. Então limada pelo mítico Aleksander Donner a partir do banco, liderada no campo pelas mãos de Viktor Tchikoulaev ou Carlos Galambas, essa foi a derradeira das versões europeias do ABC.

Eram outros tempos, assentes noutros formatos. Em 2001, o ABC precisou de oito partidas para alcançar os quartos de final, que foram 10 em 1997 e 1998, quando repetiu essa presença. A proeza máxima aconteceu em 1994, quando chegou à final em meia dúzia de encontros, perdendo para o TEKA Santander. Com as sucessivas atualizações ao esqueleto da Liga dos Campeões, a provação de hoje submeteu o Sporting a 14 jogos para alcançar os quartos de final. “Hoje a pintura é outra”, escreveu Salvador Salvador com os dedos de umas mãos já históricas. E sem tremores quanto a serem ambiciosas: “Quanto a nós, o nosso caminho mantém-se, os limites não são impostos nesta competição, mas Colónia está à espreita, e deserta de nos cumprimentar.”

A referência do capitão do Sporting à cidade alemã para onde está marcada a final da Champions é ousada, não descabida. Fresca nas suas palmas, na sua alma, estará igualmente a epopeia de janeiro no Mundial de andebol, onde Portugal prevaleceu até às meias-finais, apenas perdendo com a tricampeã Dinamarca e a França, na decisão do terceiro e quarto lugares. “O Sporting é muito grande, e por muito pequena a percentagem que seja, estamos em busca de o fazer maior a cada dia que passa”, assegurou o jogador, de 23 anos, olhando para o umbigo que defende. Mas a fome de feitos está espalhada pelo andebol nacional: também esta semana, FC Porto e Benfica seguiram para o play-off da Liga Europeia, onde vão disputar o acesso aos ‘quartos’ da segunda prova continental mais importante.

Ainda na noite da glória em Płock, o capitão do Sporting não sabia "se alguém" ia "aparecer no aeroporto" à chegada da equipa a Lisboa. "Apareçam", pediu Salvador Salvador. Porque como o seu nome exemplifica, a repetição de feitos está a invadir o andebol português.