Havia que ter em conta as circunstâncias, o velho contexto amigo, quando um Lamine Yamal a rir-se, toda a dentura presa pelo aparelho pintado com as cores do Barcelona, foi a trote em direção a uma das bancadas do Santiago Bernabéu com ingenuidade dos 17 anos, mas sem ser ingénuo, apontou o dedo da mão à relva. Eu estou aqui, gesticulou, ao que fez seguir um rodopio para se virar de costas ao público e indicar, com os polegares, o seu nome estampado nas costas. Este sou eu, mostrou depois o rapazote.

Yamal é muito novo e mais novo era em 2017, mas já tinha idade, deve ter-se lembrado naquele momento do instante, no mesmo estádio, protagonizado pelo lendário Lionel Messi quando serviu a humanidade de um pedaço da sua antologia: ao destroçar o Real com um golo nos descontos, ousou, na própria casa dos merengues, despir a camisola, segurá-la no alto e mostrar o seu nome estampado aos adeptos, gladiador a domar a plateia num coliseu feito seu. Tantos anos desde a descida a Madrid do semideus em Barcelona, as suas brumas sentidas com saudade, o adolescente que atrevidas línguas estimam ser melhor do que o argentino era com o mesmo tempo de vida emulou o ato, imberbe mas nunca inocente.

A noite deste sábado, embarcando em previsões que possam envelhecer mal, será recordada como um trauma para o Real enquanto o se deu a ressuscitação do Barcelona. Sem hesitar, jamais abdicando um milímetro do pregado por Hansi Flick, o treinador alemão que em Lisboa cravou vários pregos no caixão de num dos últimos Barças de Messi, os catalães estamparam a sua chuteira na alma do maior rival com um 0-4 sem dó. Foram quatro golos na segunda parte, um par do velho Robert Lewandowski, um do adulto Raphinha e o outro do menino Lamine Yamal, a desfaçatez de talento de que o clube precisava para liderar o restauro de confiança que tenta promover esta época.

Cada vez parece menos uma tentativa, mais uma certeza, um plano concertado com certeza no que uma equipa pretende fazer e, sobretudo, como o quer fazer. Essa marca de água costumava ser do Barça, a fé cega no processo, a inamovível crença no caminho houvesse intempéries ou não. Primeiro o jogo posicional de Johan Cruyff, mais tarde a versão 2.0, em esteroides de passes, do seu discípulo Pep Guardiola e depois a sustentação de um estilo às costas de Messi. Agora surgiu no Bernabéu, confiante na versão trazida por Hansi Flick, a amálgama moderna de um Barcelona fiel à sua natureza.

Na goleada que desmantelou o Real Madrid caótico houve a magia de Yamal, discreta e esporádica além do golo, mas a representar o líder por talento de uma equipa que começou com seis jogadores com menos de 21 anos. Dois tinham 17, o prodigioso Lamine e Pau Cubarsí, o central dos passes soberbos lá de trás, onde o treinador alemão manda os jogadores colarem a linha defensiva ao equador do campo. O estilo de risco máximo, quase kamikaze a deixar quilómetros de espaço entre eles e a baliza para asfixiar o que concedem ao adversário, exige a coordenação que evidenciaram no jogo, a destreza dependente de pormenores, mas se é assim que se querem impor então foi assim que se impuseram.

Neste El Clásico flagrante nas diferenças entre os rivais como há tanto não se via, o Real Madrid teve 12 foras de jogo assinalados - na liga espanhola, até esta partida, tinham 10. A presa repetente, e mais fácil, foi Kylian Mbappé, inofensivo na frente mas menos inócuo do que Vinícius Júnior, o previsível Bola de Ouro quando a ressaca deste jogo chegar à próxima segunda-feira, dia da gala da FIFA em que tudo se fará para não mencionar as últimas impressões, essas que costumam ficar. No Santiago Bernabéu ficarão, frescas na memória de quem assistiu ao peito inchado por um novo Barça.

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Neste renascido projeto catalão, a confiança, apesar da goleada e da forma como foi imposta, ainda não será definitiva. As feridas recentes são várias no Barcelona, a casa do seu futebol, aquele a que pretende volver, continua em obras (literalmente), por demais majestoso o talento há que manter presente de que Cubarsí e Yamal, o prometedor médio Casadó e a certeza metrómana de Pedri, um Gavi em recuperação e Fermín López ou Álex Baldé são miúdos, apenas miúdos, condenados a aprenderem com os erros nas vezes em que as absurdas qualidades de cada um se distrair.

No meio deles, de uma época para a outra, renascem os golos de Lewandowski, até há meses um aparente perdedor do comboio da elite, agora goleador sem espinhas aos 36 anos; surgiram os 33 de Iñigo Martínez, defesa central secundário, quase peça de mobília na temporada passada; há a forma incrível de Raphinha, um dos novos capitães do Barça (com Frenkie de Jong, neerlandês que assenta sem atrito no estilo), feito atacante letal a correr nos espaços para ser quem dá esticões aos ataques.

Eles e os rapazotes, atinados no método Hansi Flick, deram uma prova - outra mais, porque há dias tinham destroçado o Bayern de Munique, por 4-1, na Liga dos Campeões - de como futebol parece estar a trazer de volta o velho Barcelona, o Barça que ganha por 0-4 em casa do Real Madrid e faz a questão não ser sobre isso - mas acerca da forma como o fez.