Um gesto institucional, era o que se exigia. Um mínimo de cortesia e distinção. Naquela uniformidade tola que o nosso consenso é especialista. Que repete para enjoo matinal de nós todos. E eu, néscia criatura de Nosso Senhor que não sabe a quantas anda, por momentos tiritei. Num instante soturno e desinspirado, considerei no meu espírito a vitalíssima ideia que todos os de ontem, hoje e amanhã não cansam de reforçar: o Benfica devia ter endereçado condolências ao Porto.

Fiquei a ruminar no assunto. Deus constitui-nos de tal forma que ficamos num torpor quando alguém morre. Um transe temporário, digamos assim. Quando, por exemplo, se dá o caso de alguém denunciar o elogio hipócrita de enterro, está a passar ao lado de uma humaníssima autenticidade: o mistério e o fulgor do fim abunda-nos tanto que nos faltam os meios. Por isso, quando morrem, todos são belos. É contra o nosso próprio estado natural a perspectiva de uma indelicadeza nessas ocasiões. Como se não houvesse força para isso. Assim mesmo, como a mais elementar terminação de um conto de Tchékhov.

Foi preciso libertar-me da embriaguez mortuária que me invadiu pelos jornais e pelos vidros dos ecrãs, colorida a Pantone 655 CP. Só assim pude contemplar o óbvio que rugia: o ponto não é se o Benfica fez bem ou fez mal em não ter enviado condolências. O ponto é: o Benfica devia ter lá estado. Tal como os Super Dragões, tal como o Dr. Póvoas, tal como D. Américo. O Benfica (espero que a esferográfica aguente o que vou escrever a seguir) também faz parte daquilo. Também é uma das figuras daquele acrílico. Não vale agora, numa dissimulada mudez de Conselheiro Acácio, querer ostentar as virtudes de uma moralidade que desde Jorge de Brito já só serve para ilustrar os postais da Marina Tavares Dias: como a Farmácia Franco, o Ciclismo ou o Estádio das Amoreiras.

Pois o nosso Benfica não sossegou enquanto não alinhou pela batuta do maestro. Assim mesmo escancarou-se numa degenerescência anímica de que ainda hoje seguimos o rasto. Ainda não se livrou da peçonha. Vamos contar: Damásio (1), Vale e Azevedo (2), até o pobre Vilarinho (3), presidente-trampolim, e finalmente Vieira (4), o Salteador, foram todos a versão de feira do modelo de marca: Pinto da Costa, Presidente dos Presidentes; porque Presidente deles todos. Rui Costa (5) - que por nós inventou o passe e o golaço, que por nós foi a soma de todas as lágrimas da nossa inocência - converteu-se em golfinho do golfinho de Jorge Nuno: Luís Filipe, o homem que aprendeu a gostar de futebol no camarote das Antas.

Dizia eu, a semana passada, que Pinto da Costa foi o Futebol Clube do Porto e vice-versa. Eufemizava para efeitos de estilo. Regressando agora ao ponto sem artifícios: o homem foi muitíssimo mais do que o clube da sua cidade, o homem foi o somatório de toda a modernidade do futebol português. Quando rosno aos quatro ventos “odeio futebol moderno”, é uma bola de golfe que atiro contra os desenxabidos e os tecnocráticos. Em suma: contra os que sabendo nada de futebol e tudo de finanças, levaram-me a bola que em miúdo chutava contra a porta da garagem. Mas não só: também o faço contra a peculiar modernidade do futebol português, inaugurada, construída e alimentada por Jorge Nuno Pinto da Costa.

Contando a partir de 74, o Portugal redondo conheceu dois traumatismos: Cristiano Ronaldo, como flor, e Pinto da Costa, como putsch. O primeiro impôs-se como economia, o segundo tornou-se norma. O primeiro sustenta as figuras, o segundo escolheu-as. O primeiro é o léxico, o segundo a gramática.

Tudo o que correu mal desde então: a corrupção, as autarquias, a ligação directa entre bas-fond e alta roda, é da gesta de Pinto da Costa. Por respeito aos que ainda trepidam com a sua partida, não entro em detalhes. E foram tantos.

Para a perfídia se consagrar, basta estar vivo. E contemplar. Eis todo o primeiro capítulo do Livro da Sabedoria. Eis todo o Ricardo III. Pinto da Costa foi uma ideia de sucesso que se tornou irremediável para todos: grandes, pequenos, capitalistas, pés-rapados. Não foi nem mal menor, nem singularidade nortenha, mas todo o veneno possível dentro de um frasco de veneno. O problema talvez seja meu. Não me parece possível amar o sublime futebol antigo (ou o sublime futebol, ponto), sem também rejeitar este lodaçal de manha e virose. Rejeitar Pinto da Costa. O Benfica dos nossos dias não pode agora, do alto do seu fragilíssimo banquinho de vidro, fingir que não foi nada com ele. Foi; e por enquanto continua a ser.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.